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C.2.2 - A REUNIFICAÇÃO PARA BRASILEIRO VER.

A análise do material permite a interpretação de que a principal função da reportagem de dez minutos de duração apresentada no Globo Repórter do dia 9 de outubro de 1990 - onze meses após a queda do Muro e seis dias depois do novo feriado nacional alemão - é mostrar que a Alemanha reunificada deixava o socialismo para trás, tornava-se uma nação poderosa e que o nascimento desta nova potência preocupava o resto do mundo.

Para tratar da transição de um sistema apresentado como obsoleto pela narrativa para um dos mais desenvolvidos do planeta ("...adaptar o sistema falido do leste à uma das mais prósperas economias da história."), o filme é elaborado em linguagem eletrônica moderna. A musicalização é feita com uma versão remixada da Sinfonia número 9 de Beethoven, "An die Freude" (Ode à Alegria), combinando tradição germânica à tecnologia dos sintetizadores da era da música tecno. A reportagem é aberta com uma metalinguagem: o repórter Pedro Bial é entrevistado por alunos alemães que fazem um trabalho escolar sobre a reunificação. O ambiente é a praça pública, ou melhor, a Pariser Platz, reformada e recém reinaugurada no centro de Berlim, à frente do Portão de Brandemburgo, o símbolo nacional (e internacional) da reunificação. De

microfone na mão, a estudante aparentando uns doze anos de idade lança a pergunta: "o que o senhor acha da Alemanha Reunificada?" Resposta do brasileiro: "Um grande país muito poderoso". A conversa vai ao ar em alemão, com tradução simultânea para o português feita no local.

A metalinguagem (a televisão é usada para descrever a própria televisão) parece servir para dois propósitos imediatos: primeiro, mostrar a dimensão internacional do evento, para onde o mundo inteiro voltava os olhos e inclusive os estrangeiros tinham direito a voz, idéia reforçada pelo texto do repórter: "Entre as centenas de equipes de televisão cobrindo a reunificação, esta resolveu nos entrevistar", e mais adiante, invertendo os papéis: "Agora sou eu quem pergunto. O que ela acha que está fazendo, jornalismo ou história?", e a resposta é satisfatória, neste sentido: "Acho que mais história do que jornalismo". Segundo, mostrar que reunificação era um fato raro - não é todo dia que um país se reunifica - e que, a exemplo do mundo inteiro, os próprios alemães estavam preocupados diante da incerteza de pertencerem a uma nação nova (ou renovada), perguntando-se como seria este novo país que nascia com o novo feriado nacional criado no dia 3 de outubro e celebrado pela primeira vez naquele dia, naquela praça.

Neste sentido, a reportagem brasileira tem um raro momento de proximidade com o documentário alemão, que despende grande esforço em estudar os fatos da reunificação - numa tarefa que tem muito do fazer

historiográfico - para talvez lançar sugestões para o futuro - como é próprio do fazer jornalístico - de tentar adianta como pode ser, no futuro, o país que nasce agora, já que ele está nascendo nestas determinadas molduras. Os dois trabalhos se vêem envolvidos na questão do conceito de nação, desenvolvido por Benedict Anderson e já citado no primeiro capítulo de que a nação é uma "comunidade política imaginada - e imaginada como implicitamente limitada e soberana". A continuação do texto de Anderson também é significativa:

Ela [a nação] é imaginada porque nem mesmo os membros das menores nações jamais conhecerão a maioria de seus compatriotas, nem os encontrarão, nem sequer ouvirão falar deles, embora na mente de cada um esteja viva a imagem de sua comunhão.24

Pois, no caso da Alemanha, os limites, tão decisivos no conceito de Anderson, acabavam de ser alterados, territorialmente, populacionalmente e até conceitualmente, já que a nova nação assumia - ou nascia prometida para assumir - uma nova função no cenário das relações mundiais. A parte nova da República Federal, composta pelos cinco estados que antes formavam a República Democrática, passa, por decreto e de uma hora para outra, do bloco hegemônico do Pacto de Varsóvia, de influência soviética, para o Tratado do Atlântico Norte, liderado pelos Estados Unidos.

24

BENEDICT, Anderson. Nação e Consciência Nacional. São Paulo: Ática, 1986. Pag 14.

Quais os efeitos destas mudanças, qual a dureza do amalgama que cimentava a união (Pedro Bial escreve que o dinheiro [o marco alemão] é a primeira aliança deste casamento")e, sobretudo, quem é o novo alemão, o novo morador do novo território, o novo eleitor, o novo vizinho, o novo homem que vai decidir os destinos do país daqui prá frente? A reportagem brasileira mostra estas indagações e repórter e edição destinam boa parte da matéria para indagações neste sentido.

Em entrevista concedida a este trabalho de mestrado, na redação da Rede Globo no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, em setembro de 2000, o jornalista Pedro Bial diz que o grande artifício usado por ele para fazer a ponte entre os acontecimentos da Alemanha e a compreensão deles pelo público brasileiro foi "o povo nas ruas" que, segundo o repórter, "povo nas ruas é igual na Alemanha, no Brasil ou em qualquer lugar do mundo." Para enfocar a questão da consciência nacional, Bial usa também o artifício das massas: o esporte: "A Alemanha deixa de ser um país ocupado e os alemães correm juntos a maratona [de Berlim]". E dentro dos esportes, usa o mais popular deles no Brasil, que funciona como um catalisador para a compreensão dos brasileiros: o futebol: "Logo depois da unificação monetária, os alemães dos dois lados torcem para o mesmo time e são campeões mundiais", enquanto as imagens mostram a Copa do Mundo de Futebol de 1990, assistida por uma multidão de pessoas em um telão montado numa praça pública, no momento de uma cobrança de pênalti.

A queda do Muro em si, enquanto fato registrado nos dias 9 e 10 de novembro de 1989, ocupa relativamente pouco tempo, cerca de um minuto ou menos de dez por cento do total da reportagem. Entra na narrativa com texto próximo e imagens repetidas dos programas jornalísticos já apresentados pela emissora - usa, como novidade, o trabalho dos estudantes no registro das mudanças - e logo dá espaço para questões internas do país: a dolorosa abertura dos arquivos da STASI, a polícia secreta do regime socialista do primeiro ministro Erick Honecker, a questão ecológica da agressão da natureza pelas indústrias do leste, o desemprego crescente, a oposição dos jovens de esquerda, o desafio empresarial das indústrias bem sucedidas no socialismo que agora precisam dar lucro para sobreviver na economia de mercado, e, com certo destaque, o grande desafio doméstico: a necessidade dos alemães controlarem os alemães que traduzem Alemanha inteira como "Alemanha grande".

Os perigos do neonazismo são apresentados como um desafio que os alemães precisam vencer para desarmar a desconfiança dos estrangeiros. O texto "que acompanha as imagens de um braço erguido no gesto típico da saudação nazista, sem revelar o autor, com a queima de fogos do feriado ao fundo é claro: "Esta cena, na noite da reunificação, onde alguém faz a saudação nazista, é o tipo de imagem que assusta todo mundo. Os alemães talvez nunca sejam absolvidos do passado".

Para demonstrar que o assunto é relevante, o repórter vai para a cena e grava uma participação falando diretamente à câmera. Introduz o bloco que segue e encerra a matéria: a nova imigração de judeus vindos de Leningrado (ainda na União Soviética) para a Alemanha reunificada. O repórter reserva os minutos finais da reportagem para contar a história e acompanhar os primeiros dias de uma família de judeus russos em Berlim. E este pode ser entendido como o trabalho de reportagem em si, já que a maior parte do restante do vídeo pôde (e precisava) ser feita a partir da redação, com o vasto material colhido ao longo de um ano de cobertura da reunificação pelos repórteres brasileiros e recebido das agências internacionais. Faz, com o drama das relações humanas, algo similar ao que seu colega (e chefe de escritório, durante a cobertura) Sílio Boccanera fez com a curiosidade do consumo dos alemães orientais no primeiro final de semana sem fronteiras em Berlim. No lugar do banco e das lojas visitadas pela família Kuling, na matéria de Boccanera, Bial acompanha a visita da família Livet à seção do Holocausto do Museu Histórico de Berlim e ao Monumento dos Soldados Soviéticos da Segunda Guerra Mundial. A narração é construída com elementos dramáticos. O pai, Ylya Livet, lutou no exército vermelho contra o nazismo e declara numa cena grave, com as mãos na cabeça, em frente aos vagões que transportaram judeus para os campos de concentração: "Ninguém tem o direito de esquecer o Holocausto". O filho, Alexei, desempregado, procura uma vida melhor na Alemanha para ele,

para a mulher e o filho, ainda na barriga da mãe, Katia. O texto sentencia a intenção do repórter: "É inevitável. Em qualquer festa de celebração do futuro, os alemães serão sempre obrigados a se debruçar sobre o passado". A imagem que encerra o programa é emblemática: a câmera deixa o senhor Livet e o filho perplexos, de olhos para baixo e segue em direção a uma pequena janela no vagão do trem visitado. Por ela, a câmera mostra o saguão do museu, o lugar reservado para se pensar sobre a História.

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