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Em Baudelaire, Benjamin capta a figura do flâneur em sua plenitude, como vimos no primeiro capítulo. Ao falar dos redatores de folhetim, Benjamin compara-os ao flâneur: “Era nos cafés, durante o aperitivo, que se recheava a informação. […]. A atividade dos cafés treinou os redatores no ritmo do serviço informativo antes mesmo que sua maquinaria estivesse desenvolvida.” (BENJAMIN, 1994, p. 24). Os cafés funcionam como ambiente de segurança para o flâneur, que se sente em casa, ao observar as pessoas em seus encontros ou as pessoas que passam pelo outro lado da vitrine.

A flânerie também foi praticada, a partir da observação através janela ou da rua, tomadas como pontos de observação para se pensar a vida urbana. A janela passou a ser percebida a partir de O homem da multidão, de Edgar Allan Poe, e a rua, observada nos

poemas, em especial, de O spleen de Paris e As flores do mal, de Charles Baudelaire (GOMES, 2012). Ao analisar o conto “A janela de esquina de meu primo”, de E.T.A. Hoffmann, que tem como enredo a troca de informações entre um escritor paralítico (pela força do adoecimento) e seu primo, Renato Cordeiro Gomes observa a dualidade do olhar entre a janela e a rua. O personagem escritor mora em um prédio de esquina e olha o mercado, com acuidade, da sua janela, enquanto o primo tem sua percepção a partir do andar pelo chão, de forma reduzida.

Essa dualidade do olhar é típica da modernidade, mas se estende aos dias contemporâneos: “o contraste entre sua imobilidade contemplativa (a paralisia) e a vida que muda sem cessar (a que se pode relacionar à modernidade captada pelas alegorias urbanas poetizadas por Baudelaire).” (GOMES, 2012, p. 7). A janela é imobilidade e ao mesmo tempo aguçamento do olhar, e propicia a reordenação do espaço urbano através da visibilidade transmitida pelo sujeito observador. O texto então funciona também como moldura através do qual o sujeito partilha suas vivências.

Dessa forma, o sujeito tem sua percepção baseada na temporalidade, tanto por observar os efeitos dela nas construções e nas pessoas da cidade, quanto por registrar e compartilhar a experiência em forma de memória, a fim de que esta não se apague com o tempo. Na cidade, o cruzamento de elementos e experiências diversas concebem um emaranhado de narrativas e aspectos visuais, já que esta é um imbricamento de tempo e espaço: “A cidade é sempre um lugar no tempo, na medida em que é um espaço com reconhecimento e significação estabelecidos na temporalidade; ela é também um momento no espaço, pois expõe um tempo materializado em uma superfície dada” (PESAVENTO, 2007, p. 15).

Os sujeitos das poesias de Mayrant Gallo e Gonçalo M. Tavares lançam um olhar que retoma, de certa forma, a modernidade: o olhar pela janela ou o olhar enquanto caminha pelas ruas, captando o que se esconde em meio ao trivial. No entanto, o sujeito de “esconderijo”, poema de Gonçalo M. Tavares, elege um ambiente no qual possa olhar a cidade isolado, com certa proteção.

esconderijo

Do teu esconderijo vê, e no teu esconderijo constrói, sai dele apenas quando puderes dar algo aos outros. Antes, é cedo demais, muito depois, é excessivo egoísmo. Mas mesmo esta convicção não ajuda, não sei

Onde intervir, para onde olhar, ouvir o quê? Há tantas coisas que falam ao mesmo tempo.

(TAVARES, 2005a, p. 166)

Presente na seção “Autobiografia”, o poema expõe o olhar que constrói a realidade a partir do caos da cidade, mas que também se nega a essa construção, por possível medo da precipitação ou egoísmo. O esconderijo é o aparente espaço da imobilidade na urbe que fervilha. O sujeito desnorteado (“Onde intervir, para onde olhar, ouvir o quê?”) está em conflito entre a proteção da edificação e o saber o momento de se expor, olhar, ouvir, quiçá intervir no espaço urbano, uma vez que a cidade é para ele confusa. As múltiplas vozes e as inúmeras imagens não permitem um foco específico desse sujeito que não sabe para onde olha, nem para onde vê, tampouco sabe onde intervir, por isso permanece em seu esconderijo, provavelmente escrevendo, como Tavares nos aponta nos versos de “O idiota”:

[…] Um café, outro,

o caderno preto à minha frente, o tempo, nada para fazer a não ser por dentro,

os sentimentos tranquilos. […]. Os empregados de um lado para o outro,

a atender à sede dos outros, aos caprichos. Ao meu lado direito um vidro: vejo os vivos

em passo apressado

a cumprimentarem-se;

[…] Como aproveitar o esconderijo?

Esconde-te, que o exterior não te descubra: só sabe dar ordens. E como aproveita o homem escondido a dádiva do esconderijo?

Escreve, o idiota.

(TAVARES, 2005a, p. 36).

Percebemos que o ambiente do café é também o recolho para a atividade da observação e da escrita. O sujeito cultua a ociosidade inerente ao flâneur, que utiliza seu tempo livre, com “nada para fazer”, para observar o movimento das pessoas dentro e fora do café. No ambiente do café, a satisfação aos desejos que o capital pode pagar. Do lado de fora, através do vidro, o ritmo contrário ao do flâneur, um exterior que vive na cadência de ordens e passos apressados. Benjamin entende que o olhar do homem que está no café possui uma certa limitação semelhante ao do olhar da janela, porque está emoldurado. No entanto, “quão penetrante o [olhar] daquele que a fita através das vidraças do café!” (BENJAMIN, 1994, p. 46). Para Benjamin (2011), ao criar espaços em que predominam o aço e o vidro, como as

vitrines, os arquitetos dificultaram a existência de vestígios, porque a transparência apaga os rastros.

No entanto, a transparência não apaga o que o flâneur observa e, provavelmente, anota em seu caderno preto como matéria de sua criação poética. No poema “O adultério”, presente na seção “Observações”, o flâneur transforma a experiência alheia, na medida em que não só observa, mas permite que sua imaginação interfira na história que nos conta.

O adultério

A mulher hesita entre o adultério e uma conversa. Percebo: na mesa fala baixo e sorri muito

para um homem que não é o seu marido.

Mas ainda há tempo. Por enquanto nada foi feito. Os pensamentos, felizmente, são reversíveis. A mulher ao sair do café

poderá ser atropelada: um embate violento, vamos supor. Poderá, então, quem sabe, permanecer seis meses no hospital, com o marido ao lado, e revistas;

todos os dias no horário permitido.

E, se tal acontecer, esta mulher não será adúltera.

O homem que não é seu marido tem um fato escuro, uma gravata cinzenta atravessada por uma subtil linha branca. Está contente consigo próprio, é evidente, e com a gravata. Vejo-os sair do café. Despedem-se. Faço uma pausa, suspendo os meus projectos, e observo-a a

atravessar a rua para o outro lado. Um carro passa a grande velocidade, mas ela já se encontra no passeio, protegida. Do outro lado diz adeus ao homem de fato escuro, sorri muito, abana a mão com um movimento excitado. Ela desaparece por um lado, ele pelo outro.

Encontrar-se-ão de novo: isso é certo. Num outro dia. Num sítio menos óbvio.

De regresso a mim penso no que é o destino, e no que é o tempo,

e sei, tenho uma certeza clara: aquela mulher vai sofrer. (TAVARES, 2005a, p. 31)

O flâneur, sentado a uma mesa de café, observa a conversa de um casal e presume ser o princípio de um adultério. Percebe-se que o flâneur presta atenção aos mínimos detalhes, como o tom da voz da mulher, o terno escuro e a gravata cinzenta do homem, “atravessada por uma subtil linha branca”, a velocidade do carro que passa lá fora e a excitação do aceno de despedida do homem, bem com seu sorriso abundante. Há uma suspensão na vida imediata do sujeito lírico flâneur para imaginar o que vive(rá) essa mulher, cujo limite do possível adultério ainda não foi ultrapassado. A pausa e a suspensão dos projetos desse sujeito que

direciona o olhar para os outros, fazem-no refletir acerca do tempo e do destino e, colocando- se como um mensageiro do destino, conclui pela sua observação que a mulher sofrerá.

Percebe-se que esse sujeito fica tão imerso em olhar para o casal que parece estar fora de si por alguns instantes, como se tivesse ocorrido uma suspensão temporal. Enquanto as pessoas da cidade se encantam com as mercadorias nas vitrines, ou os letreiros luminosos, o flâneur fica entorpecido em observar os outros: “tanto a flânerie quanto o êxtase da droga cumprem, em última instância, um único propósito: adotar a “errância” como instrumento catalizador de uma certa desordem produtiva, fundamental para uma posterior reorientação espácio-temporal da experiência histórica” (BRETAS, 2008, p. 185-6).

Em outro poema, “A natureza”, mais uma vez o sujeito se encontra no café a observar a vida alheia.

A natureza

As raparigas falam, baixo, sobre a importância dos homens; São duas, no café, frente a frente.

Aguardam calmas, quase neutras, o desejado alvoroço. Como são diferentes, em tudo, dos machos.

Na espera os homens tornam-se atletas, deitam óleo nos músculos; não se envergonham do poder que obrigam a surgir à superfície. Sem pressa nem exibições, as raparigas esperam.

O primeiro homem delas já veio, certamente; já foi. Agora são cordiais face a cada novidade.

Não são audazes em demasia; não mostram a ansiedade (talvez exista, não sei).

O corpo sereno, uma árvore; a natureza a esperar, delicada,

que as estações decidam o que fazer às folhas.

(TAVARES, 2005a, p. 12)

É no café que o flâneur tem à sua disposição os acontecimentos e boatos. Ao observar a conversa entre duas mulheres, mais uma vez projeta a cena vista na imaginação e supõe o que elas sentem, pela forma como se comportam. A aparente tranquilidade, quase neutralidade das moças, contrapõe-se ao comportamento masculino. Elas estão “frente a frente”, e por isso, provavelmente, encarem uma a outra, enquanto aguardam pela ação do tempo na natureza.

Se a flânerie é o antídoto contra o tédio, o sujeito excita-se em observar o que depois irá converter em imagens. Em “As duas mulheres” (2005a, p. 14) ele percebe que estas já não possuem mais “a idade dos risos”. No café, encontram-se “frente a frente”, apesar de encararem o vazio ou o tabaco. Ao saírem, sequer estão “lado a lado” ou têm a coragem para

serem efetivamente tristes. Em “As duas velhas”35, as senhoras estão“lado a lado, no café” (2005a, p. 15), a fim de não cruzarem os olhares e reconhecerem, uma na outra, seu reflexo.

Nos versos de “A notícia”, mais uma vez surpreendemos o sujeito de Tavares no ambiente do café.

[…]

Começa a chover.

A cidade é variada: um homem peregrina sentado, escrevendo.

Quatro homens jogam cartas;

uma mulher profunda, civilizada, esvazia uma garrafa de vinho; porque está só.

[…]

(TAVARES, 2005a, p. 73)

Através do impulso narrativo, o sujeito não apresenta a toponímica da cidade. No momento em que chove é possível ver o flâneur a escrever. O oximoro produzido pelo poeta em relação ao homem que “peregrina sentado” remete-nos, mais uma vez, para os campos de observação da cidade, oriundas da poesia moderna: o desassossego entre a imobilidade e a mobilidade do flâneur. Seu passeio é com os olhos. A cidade multiforme volta a ser descrita, com os homens que jogam cartas e a mulher que bebe por estar só, mas principalmente por ser profunda e civilizada. Nelson de Oliveira insere Gonçalo M. Tavares no grupo de poetas que:

revelam o mesmo gosto cosmopolita pela deambulação pela cidade, pelas praças e pelos quintais, por vezes também pela memória, precisamente como em Cesário Verde. Deambulação ou errância que é acompanhada pela linguagem extremamente transparente e até mesmo carregada de simplicidade. (OLIVEIRA, 2009, p. 107).

A errância está no prazer do sujeito em captar informações através do olhar, como se fosse uma espécie de detetive, de abandonar-se à histórias alheias como se estivesse a investigar um crime. Tal como em Edgar Alan Poe, em O homem da multidão, o sujeito de Tavares busca nos cafés um refúgio para observar seu entorno. Benjamin vê nessas construções um ótimo ponto de observação da dinâmica da cidade: “Os cafés são verdadeiros laboratórios desse grande processo de interpenetração. Neles a vida não tem tempo de se estabelecer para se estagnar” (BENJAMIN, 2011, p. 144). Em Tavares, os cafés são ambiente

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para observação do comportamento humano, mas, também, proporciona observar a si mesmo, como vemos em “A água”:

A água

No café trazem-me um copo com água como se ele resolvesse todos os meus problemas.

É ridículo ‒ penso ‒ não há saída. No entanto, depois de beber a água

fico sem sede.

E a sensação exclusiva do organismo acalma-se por momentos.

Como eles sabem de filosofia ‒ penso ‒ e regresso, logo a seguir, à angústia.

(TAVARES, 2005a, p. 24)

No café, o corpo físico está presente porque sente necessidade fisiológica. A partir do momento em que a sede é sanada, o sujeito volta a observar e pensar, o que o leva à angústia. Santos (2014, p. 178) analisa a poesia de Tavares: “No espectro de um espaço ideológico, em que o desconforto do homem se faz pensamento, emerge, da escrita tavariana, um estado de urgência como se, no limiar do agora, a possibilidade de encontrar, ou mesmo de desvelar, um caminho, um norte, para o ser, se estivesse a exaurir”. O ambiente do café não é a solução para as angústias do sujeito, sua observação permite depreender mais do sujeito do que do entorno. Aqui, o sujeito assemelha-se ao flâneur de Edgar Alan Poe, em O Homem da multidão, aquele que prefere observar na segurança da edificação: “com um charuto na boca e um jornal nas mãos, eu tinha me divertido a maior parte da tarde, ora percorrendo anúncios, ora observando o grupo heterogêneo do salão, ora sondando a rua através dos vidros enfumaçados” (POE, internet), ao mesmo tempo em que se afasta desse homem da multidão pelo fato de olhar para si próprio.

Enquanto o sujeito de Tavares está de forma recorrente sentado no café, o sujeito de Gallo percorre a cidade e a observa, em especial, na sua precariedade. Em Tavares, o sujeito encontra-se no que Bauman denomina de “templo de consumo bem supervisionado” que,

apropriadamente vigiado e guardado é uma ilha de ordem, livre de mendigos, desocupados, assaltantes e traficantes – pelo menos é o que se espera e supõe. As pessoas não vão para esses templos para conversar ou socializar. Levam com elas qualquer companhia de que queiram gozar (ou tolerem), como caracóis levam suas casas (BAUMAN, 2001, p.114.).

Entretanto, para os caracóis que não possuem casa, a cidade figura não mais como experiência coletiva, memória narrada, mas como experiência vivida de choque. O correspondente aos cafés, em Tavares, são os bares, em Mayrant Gallo. Em “Crônica”, a observação do ambiente do bar aumenta a descrença do sujeito.

CRÔNICA

No bar parado Baço de cigarros

A vida vinha aos goles...

Uma menina disse, mais tarde: – Salvem-me...

Mas ninguém entre os homens Quis salvá-la...

A menina enforcou-se.

Ao saberem, os homens Foram vê-la pendurada...

(GALLO, 2005, p. 24)

O bar aparece como lócus da cidade, ambiente onde pessoas tentam refugiar-se do dia- a-dia. “A vida vinha aos goles...”, pois não se percebe a passagem do tempo dentro de um bar, estático, enevoado pela fumaça do cigarro, que confere um ar fantasmagórico ao ambiente. Um elemento surge para modificar essa aparente harmonia, porém a indiferença do homem contemporâneo não permite que ele tenha tempo para se dedicar aos outros, por isso “a menina enforcou-se”, sem testemunhas. O sufoco da própria vida enforca os homens. A vida sofre um engasgo. E, “ao saberem” da tragédia “os homens/ foram vê-la pendurada...”, como um bando de moscas, conforme afirma o próprio poeta em outra composição: “a multidão são moscas”; um ser que se alimenta de despojos, restos, nesse caso, humanos. O sujeito lírico também está parado, tal qual os homens a quem a garota pediu socorro. Ele manteve a ociosidade necessária à observação do flâneur. O alegorista aqui assemelha-se, ao mesmo tempo, aos homens que foram ver o corpo pendurado e às moscas: é através da observação do cadáver que ele pode captar as potencialidades que ali existiram, ou seja, se alimenta dos restos para construir novas significações e fazer sua crônica.

Benjamin extrai de Edgar Allan Poe essa sensação de excitação perante a observação da vida alheia: “Nunca antes me sentira em condições semelhantes, como àquela hora da tarde; e saboreava a nova excitação, que me sobreviera ante o espetáculo de um oceano de

cabeças, encapelado. Pouco a pouco deixei de observar o que acontecia no recinto onde me achava. Perdi-me na contemplação da cena da rua.” (POE apud BENJAMIN, 1994, p. 119).

Em “O milagre dos copos”, de Nem mesmo os passarinhos tristes, um texto fronteiriço, cuja narratividade predomina, o bar é mais uma vez cenário observado pelo flâneur. Na primeira parte, “Tarde da noite, no bar quase vazio, dois amigos conversavam” e um revela ao outro o fato dele e a mulher do amigo se amarem. Na segunda parte, “O garçom a recolher os cacos”. (GALLO, 2010, p. 32), sobras da noite no bar vazio. No poema “Álcool”, uma reflexão a partir do bar que se encontra fechado.

Álcool

Os bares fechados na noite Os bares fechados na vida Seguem na noite suas dores Seguem na vida sua vida.

O homem parte, o bar fica Portas fechadas, mesas vazias Lá dentro a noite mais noite Mais preta a noite vizinha:

A noite que todo bar fecha A noite que todo bar fica A noite fechada noite... A noite fechada vida...

(GALLO, 2000, p. 14)

A noite volta como atmosfera propícia à observação e reflexão do sujeito. O título do poema, “Álcool”, é a “síntese da água e do fogo. [...] É a comunhão da vida e do fogo. [...] O álcool faz convergir mil experiências íntimas” (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2015, p. 28). E são essas experiências observadas pelo sujeito lírico que percebe que o bar é também alegoria da existência, fechados na noite, até que uma noite feche a vida.

Se os bares e cafés, desde a modernidade, são ambientes propícios para o desenvolvimento da flânerie, quando o sujeito caminha pela cidade, ele percebe de forma mais aguda a temporalidade presente nas coisas.