• Nenhum resultado encontrado

O humano não tem células: o corpo é todo destino; e a Primavera está tão feliz sobre as ervas como sobre o rei. (TAVARES, 2005, p. 59)

[...] o mundo é uma grande loja/ Um posto aduaneiro da morte/ Em que o homem é a mercadoria que circula/ A morte, a extraordinária negociante,/ Deus, o contador mais consciencioso,/ E a sepultura, um armazém credenciado. (MÄNNLING apud BENJAMIN, 2013, p. 181).

O RELÓGIO

Diante de coisa tão doída/ conservemo-nos serenos.// Cada minuto de vida/ nunca é mais, é sempre menos.// Ser é apenas uma face/ do não ser, e não do ser.// Desde o instante em que se nasce/ já se começa a morrer. (Cassiano Ricardo)

O olhar alegórico sabe que na imagem há sempre algo que se perde, mas tenta encontrar e salvar, porque tem a consciência de que naquilo que olha está faltando algo. Se antes olhamos para o corpo em sua relação com o tempo, nas poesias de Gallo e Tavares, há que se pensar nesse tempo através das imagens de fim que transfiguram esses corpos. Como vimos anteriormente, no período barroco estudado por Benjamin há o processo de “produção” do corpo morto que se concretiza através dos rejeitos, da sua condição primordial, que é a de

ser um cadáver. Na modernidade baudelaireana, esse cadáver é visto em suas entranhas e também em relação à transitoriedade. Portanto, a morte não só é tema, como é própria do processo de construção alegórica.

Benjamin, em Origem do drama trágico alemão, ao afirmar que “as alegorias são, no reino dos pensamentos, o que as ruínas são no reino das coisas” (2013, p. 189) e, ainda, “quanto maior a significação, maior a sujeição à morte” (2013, p. 18), lembra-nos que o processo de significação alegórica está atrelado às falhas e perdas produzidas, sobretudo, pela inerente característica do transitório. As alegorias são vestígios de significações de tempos outros ‒ cronológicos ou anacrônicos.

O alegorista está, a todo tempo, confrontado com a transitoriedade. Por este motivo, atribui-se à alegoria a figura de uma caveira. A caveira é a ruína que pressupõe uma história, faz referência à morte, mas deixa vestígios de sua existência: “Suas órbitas vazias permitem olhar o obscuro, que elas já olharam, mas elas mesmas não olham mais. Possibilitam olhar o que viram, só olham o olhar de quem as olha, são a ruína do acontecido” (KOTHE, 1976, p. 43). A princípio, a caveira exprime a ideia de mortalidade, no entanto, ela é também a constatação de que houve vida. Há vida ‒ histórias de vida ‒ na caveira. A História é ruína alegórica, o que nos possibilita pensar na caveira também como essa ruína alegórica e, consequentemente, enquanto resto das possibilidades ou possibilidades de restos.

A figura da caveira, tão associada à ideia de morte, lembra ao homem a impossibilidade de aceder imediatamente à transcendência, uma vez a prova material da existência (os ossos do crânio) expõe uma memória palpável. A caveira era uma figura constante nos textos do século XVII, e representava a máxima memento mori (“lembra que és mortal”), comum ao contexto de luta entre a valorização dos potenciais humanos e a busca pela redenção. Basta lembrar Hamlet, ao segurar a caveira de Yorick e declarar “Vai agora aos aposentos de minha dama e diz-lhe que, por mais grossas camadas de pintura que ela ponha sobre a face, terá de chegar a isto: vai fazê-la rir com essa ideia...” (SHAKESPEARE, 1995, p. 153), ou pensar nos sermões de Vieira, como o “Sermão do demônio mudo”, no qual ele critica a vaidade humana, especificamente a feminina:

Que coisa é a formosura, senão uma caveira bem vestida, a que a menor enfermidade tira a cor, e antes de a morte a despir de todo, os anos lhe vão mortificando a graça daquela exterior e aparente superfície, de tal sorte, que, se os olhos pudessem penetrar o interior dela, o não poderiam ver sem horror? (VIEIRA, 2001, p. 360)

O que vemos no trecho do Sermão de Vieira é a lembrança de que toda vaidade é vã, quando, ao despir dos anos, a graça torna-se uma caveira. Vieira faz remissão ao Eclesiastes (12: 7,8), o qual diz “E o pó volte à terra, como o era, e o espírito volte a Deus que o deu. Vaidade de vaidades, diz o pregador, tudo é vaidade”. A efemeridade foi bastante explorada pela arte do século XVII, através de imagens (denominadas Vanitas) que provocavam repugnância por escancarar o futuro orgânico do homem, a “aparente superfície” dando lugar ao que não se pode “ver sem horror”. É possível, ainda, lembrar Baudelaire, mais adiante, no século XIX, ao falar da carniça como a ilustração futura de sua amada, como podemos exemplificar com a primeira e as três últimas estrofes do poema:

Uma carniça

Lembra-te, meu amor, do objeto que encontramos Numa bela manhã radiante:

Na curva de um atalho, entre calhaus e ramos, Uma carniça repugnante.

[...]

– Pois hás de ser como essa coisa apodrecida, Essa medonha corrupção,

Estrela de meus olhos, sol de minha vida, Tu, meu anjo e minha paixão.

Sim! Tal serás um dia, ó deusa da beleza, Após a bênção derradeira,

Quando, sob a erva e as florações da natureza, Tornares afinal à poeira.

Então, querida, dize à carne que se arruína, Ao verme que te beija o rosto,

Que eu preservei a forma e a substância divina De meu amor já decomposto! 43

(BAUDELAIRE, 2006, p. 175-177)

Em “Uma carniça”, o sujeito lírico de Baudelaire, ao passear com a namorada, encontra um corpo em decomposição, e compara a beleza de sua amada à “medonha corrupção”. “A deusa da beleza”, o sol da vida, o “anjo” terá uma nova beleza que o sujeito

43

Une charonge. Tradução de Ivan Junqueira. “Rappelez-vous l’objet que nous vimes, mon âme,/ Ce beau matin d’été si doux:/ Au détour d’un sentier une charogne infâme/ Sur un lit semé de cailloux,// [...]//- Et pourtant vous serez semblable à cette ordure,/ A cette horrible infection,/ Etoile de mes yeux, soleil de ma nature,/ Vous, mon ange et ma passion!// Oui ! telle vous serez, ô la reine des grâces,/ Apres les derniers sacrements,/ Quand vous irez, sous l'herbe et les floraisons grasses,/ Moisir parmi les ossements.// Alors, ô ma beauté ! dites à la vermine/ Qui vous mangera de baisers,/ Que j'ai gardé la forme et l'essence divine/ De mes amours décomposés!”.

guardará em sua lembrança: será uma “carne que se arruína”. O amor, tal qual o corpo, também entrará em decomposição. Baudelaire apropria-se da ideia romântica do passeio idílico no jardim (símbolo do paraíso, da eternidade, da transcendência) e a transgride, ao comparar o amor e a amada a uma carniça, o que ressalta os efeitos do tempo, a constituição das ruínas, a destruição e não permanência dos valores clássicos. E a carniça será o fundamento para o surgimento de outras histórias. A obsessão pelo cadáver é proveniente de períodos anteriores. Vale ressaltar que, no período barroco, as caveiras estavam presentes também nas imagens religiosas, advertindo os homens dos perigos do afastamento de Deus. Aléxia Bretas, ao estudar a obra de Benjamin, lembra-nos que:

a relação do século XVII com o cadáver é análoga à do século XIX com respeito às mercadorias. Por isso, tanto o trapeiro quanto o próprio poeta significam, para a modernidade, aquilo que o alegorista representara para o Barroco: a possibilidade de “redenção”, precisamente a partir de suas ruínas. (BRETAS, 2008, p. 130).

Tal obsessão está atrelada ao fetiche do acúmulo, ao sujeito que mantém um comportamento patológico em relação ao corpo, que perece, e/ou ao objeto, que logo é substituído pelo consumo desenfreado. Com isso, o desgaste dos objetos, bem como a degenerescência do corpo levam à desvalorização do que se tem, o que gera melancolia. O objeto deixa de ter valor de uso e a vida se torna presente em sua negação, na caveira, nos ossos, no cadáver, partes de um todo.

Ao relacionar à alegoria a figura da caveira, Benjamin enfatiza o registro das possibilidades, os restos do que se foi. “Possibilidades possíveis”, mas não prováveis, uma vez que a caveira ratifica a condição temporal. Desejáveis pelo fato de a caveira permanecer como apontamento para uma história que precisa ser ressignificada. Pensar em possibilidades e ter a consciência de não poder concretizá-las torna o tom do alegorista melancólico.

A melancolia advém porque “a expressão alegórica é retrospectiva, minada ‒ em si mesma, enquanto modo de expressão ‒ pela fragmentação e pela descontinuidade” (MARTELO, 2009, p. 17; grifos do original), mesmo que este modo de expressão esboce resignação à brevidade, como no verso do poema “Sobre a beleza que passa”, de Gonçalo M. Tavares (2005, p. 136), “Eis que o tempo, porque não pára, determina quem ganha”, quando o sujeito lírico admite a impossibilidade de ganhar do tempo, uma vez que seu devir não cessa. Ainda podemos perceber essa resignação nos versos do poema “Tempo e homem”, de Mayrant Gallo (2000, p. 60), nos quais o sujeito lírico joga com o ir e vir dos termos que

intitulam o poema, enfatizando o ininterrupto movimento cíclico da destruição-renovação, do ganhar e perder tempo:

Tempo e homem

Corre o homem, corre o tempo Corre o homem ganhando tempo Corre o tempo corroendo o homem Corre o homem atrás do tempo

Corre o homem, corre o tempo Corre o homem perdendo tempo Corre o tempo sem o homem Não corre o homem sem o tempo.

A imagem de tempo é a fragmentação e consequente atmosfera de perda. Não há possibilidade de volta, a não ser através dos vestígios, pois o tempo dissipa-se e dissipa os homens. A imagem poética, quando alegórica, funciona como denúncia contra um mundo antes iluminado pela imagem de Deus.

Como a imagem é sempre fragmento, a consciência da perda atrelada ao desejo de eternidade torna o sujeito alegorista melancólico. É preciso lembrar que a visão alegórica tem seu ponto de partida na morte, ou melhor, na percepção de que tudo é fugidio, instável, inclusive os sentidos: “a morte alegórica do objeto consiste na total aniquilação de sua unidade, no estilhaçamento que o transforma em uma multiplicidade caótica de elementos” que o alegorista recolhe para reviver, através da montagem desses estilhaços, os instantes que se perderam. E essa multiplicidade de significados possíveis acentuam a melancolia do sujeito (COLI, 2014, p. 8).

Na Antiguidade, a melancolia era considerada uma patologia dos olhos que, “danificados por algum trauma, impedia a saída dos raios visuais, acarretando o surgimento de alucinações.” (GAMA, 2006, p. 103), ou seja, de alguma forma o olhar adoecia para fora, mas aguçava a sensibilidade por dentro. Em Benjamin (2013), a melancolia assemelha-se à paradoxal divindade Saturno que, apesar de ser eternamente estéril, gera e devora seus próprios filhos. Para o autor, a melancolia congrega os extremos apatia e preguiça, de um lado, e do outro inteligência e contemplação. A melancolia é um jogo de forças contrárias que tanto prejudica quanto beneficia o sujeito, adoecendo-lhe o olhar e, ao mesmo tempo, apurando-o. Nos estudos freudianos os conceitos de melancolia e luto estão interligados. Apesar de possuírem características comuns, os conflitos diferem, sobretudo em relação à intensidade e à duração.

No entanto, a melancolia, produção do conhecimento. pautado pela ausência, pode emerge como possibilidade

MA Figura

Fonte: https://www.historiadasartes.com/sala

O famoso quadro de Saturno, que representa o medieval representava coxo p. 36). A imagem permite- Ricardo Reis faz alusão a esse

Mestre, Todas Que Se no Qual

melancolia, por apurar o olhar do sujeito, torna conhecimento. Ginzburg (2012, p. 109) afirma que “o

pode ser constitutivo de momentos propositivos”, possibilidade de elaboração do silêncio e do luto, como veremos

MATERIALIDADE ALEGÓRICA XVI Figura 25- Saturno devorando um filho. Goya, 1820-3.

https://www.historiadasartes.com/sala-dos-professores/saturno-devorando francisco-de-goya/

de Goya remete à mitologia já aludida no capítulo “demônio meridiano”, “deus canibal e castrado coxo e empunhando a foice ceifadora da morte”

-nos pensar no caráter devorador da alegoria esse quadro em um poema cujo interlocutor é

Mestre, são plácidas Todas as horas Que nós perdemos,

no perdê-las, Qual numa jarra,

torna-se condição para “o saber melancólico, propositivos”, nesse caso, a poesia

veremos adiante.

devorando-um-de-seus-filhos-

capítulo anterior, a de castrado que a imagerie morte” (AGAMBEN, 2012, alegoria que produz sentidos.

Nós pomos flores.

[…]

O tempo passa, Não nos diz nada. Envelhecemos. Saibamos, quase Maliciosos, Sentir-nos-ir.

Não vale a pena Fazer um gesto. Não se resiste Ao deus atroz

Que os próprios filhos Devora sempre. […]

(PESSOA, 1969, p. 253)

O melancólico é, como nos apresenta Reis, um sujeito resignado, mas que se propõe olhar para a passagem de tempo de uma outra forma. Já o luto, para Freud (2010), é a reação a uma perda, em que se busca a memória do que foi perdido, mas é superado com o tempo. Há, no luto, um empobrecimento e esvaziamento temporário do mundo, que se apresenta sem sentidos para o sujeito. A melancolia, por sua vez, inibe a autoestima e, com isso, provoca diminuição do interesse pelo mundo exterior, que tende a durar por muito tempo, por isso o sujeito de Reis sugere a malícia de tornar as horas plácidas. Quando o sujeito encontra-se melancólico, perde os ideais e empobrece seu eu.

No entanto, o adoecimento pela melancolia aproxima o sujeito do autoconhecimento. No melancólico pode-se destacar “uma insistente comunicabilidade que acha satisfação no desnudamento de si próprio” (FREUD, 2010, p. 131). Há, na melancolia, um devassar do sujeito. Por isso a alegoria é melancólica: ela comunica os vazios, as possibilidades que não foram nem poderão ser concretizadas, e expõe a sensibilidade de não poder voltar. O objeto do fetiche, na melancolia, ou o fragmento ao qual o alegorista observa, é a constatação da presença de uma ausência, porque remete para algo que não é material, portanto impalpável, e ao qual nunca se poderá ter a efetiva posse. (AGAMBEN, 2012).

Assim, podemos inferir que a alegoria é melancólica pela referência negativa que permanece sem que se possa reverter a temporalidade, e pelo fato de o fragmento remeter sempre para algo além de si mesmo. A memória do que se perde eterniza-se e emerge através de fragmentos que se desdobram em imagens. Segundo Rosa Maria Martelo (2009), a