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A flexibilização nas relações trabalhistas: instabilidade e precarização do servidor público e trabalho docente

CAPÍTULO I – A REFORMA DO ESTADO E SEUS REBATIMENTOS NO TRABALHO E REMUNERAÇÃO DE PROFESSORES DA EDUCAÇÃO BÁSICA

1.2 A REFORMA DO ESTADO BRASILEIRO: CONCEPÇÕES E AÇÕES DO MARE PARA A SOLUÇÃO DA CRISE FISCAL

1.2.1 A flexibilização nas relações trabalhistas: instabilidade e precarização do servidor público e trabalho docente

Na nova fase de expansão do capital em escala global, o modelo de produção que passa a ser adotado é o toyotista, ou modelo flexível, que traz como princípio a flexibilidade dos processos de trabalho, das relações trabalhistas, nos mercados dos produtos e dos padrões de consumo. No mercado de trabalho, surge a necessidade de novas formas de gerenciamento mais flexíveis e eficientes em substituição ao trabalho com divisões rígidas e com tempos padronizados. Essa flexibilidade, em grande parte, deve-se aos avanços da ciência aplicados ao modo de produção que, segundo Cabral Neto (2001), esses avanços na ciência seriam necessárias ao capital para encontrar novas condições de acumulação que substituíssem as anteriores. Os avanços científicos, como a microeletrônica e, em especial, a informática, foram fundamentais na construção

de um novo padrão de acumulação que potencializou setores como a indústria e a agroindústria, superando os limites impostos pela natureza (CABRAL NETO, 2001 apud MACEDO, 2006).

Leher (1998) comenta que, nesse contexto, os efeitos da política neoliberal se apresentam na forma de flexibilização dos direitos do trabalho e na sua precarização. Isso acarreta a redução acentuada dos salários e, de modo geral, a redução dos direitos dos trabalhadores. Como exemplo específico da situação da América Latina, o autor apresenta o impacto de ajustes neoliberais sobre a renda dos trabalhadores no período compreendido entre 1985 e 1992, uma vez que, enquanto o salário mínimo real decresceu profundamente, o número de pobres aumentou em quase 50%.

Ao tratar da nova forma de organização da produção, Antunes (1991) destaca que, entre as consequências percebidas por esse modo de produção, há diversos prejuízos para os trabalhadores, como: a diminuição do número de operários que trabalham manualmente; o agravamento da precarização do trabalho em face à expansão do trabalho parcial, temporário e terceirizado; o crescimento do trabalho feminino, caracterizado por salários mais baixos; o aumento do trabalho assalariado no setor de serviços; a exclusão de jovens e de idosos do mercado de trabalho, com a exigência de maior especialização e atualização com as novas tecnologias; a maior exploração do trabalho infantil; o crescimento do desemprego estrutural, originado pela substituição de mão de obra humana por máquinas e a diversificação na produção de mercadorias em escala mundial.

A flexibilização das relações trabalhistas também se fez presente no setor público, uma vez que um dos objetivos do MARE, para promover a modernização e a eficiência da administração pública, passava pela aprovação do fim da estabilidade dos servidores das áreas de atuação do Estado que não fossem considerados de sua competência exclusiva, como é o caso da educação pública. Bresser-Pereira defendeu que esse tema da reforma administrativa, no que tange aos servidores públicos, seria positivo, pois a flexibilização da estabilidade do funcionalismo pretendia “[...] valorizar o servidor público, com motivação profissional, remuneração condizente com o mercado de trabalho nacional, além de razoável segurança no emprego” (BRASIL, 1995, p. 7). Essa razoável segurança no emprego, a que se refere o ex-ministro, diz respeito à mudança ocorrida nas relações de trabalho dos servidores públicos com o fim do Regime Jurídico

Único e com a aprovação da permissão de contratação de pessoal pelas instituições públicas pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), de acordo com a Lei nº 9.962/2000. Dessa forma, o ingresso de servidores na administração pública se tornou mais flexível, para se aproximar do desejado modelo de caráter gerencial defendido na reforma.

Essa mudança não valoriza o servidor público em nenhum aspecto, pois o coloca em uma situação de insegurança em relação à sua permanência no exercício do trabalho. Diferente de um trabalhador amparado por um regime estatutário, que goza de estabilidade no cargo, os empregados públicos estão sujeitos à demissão, conforme critérios estabelecidos – por falta grave, por acumulação ilegal de cargos, por empregos ou por funções públicas, por necessidade de redução de despesas ou por desempenho insuficiente. As alterações na estabilidade dos servidores públicos deixam-nos à mercê de conjunturas de crises econômicas que eventualmente possam ocorrer na área pública e que podem incorrer em demissões, para que se obtenha o ajuste quantitativo do quadro de pessoal. Essa vulnerabilidade a que os servidores públicos começam a ser submetidos passa a ter amparo legal com a aprovação da Emenda Constitucional nº 19, de 04 de junho de 1998 (publicada no Diário Oficial da União de 05 de junho de 1998), como explica Melo (2003, p. 6):

A partir da aprovação da EC n° 19/98, regulamentam-se a mudança do caráter jurídico das instituições e a flexibilização das relações de trabalho e emprego nelas estabelecidas, perante as quais o trabalhador perde direitos e torna-se mais vulnerável às pressões dos gestores. Essa vulnerabilidade atinge todos os servidores: os antigos estatutários; os novos celetistas ou inseridos no regime misto e, em menor grau, os exclusivos de Estado. Todos poderão vir a ser demitidos sem justa causa, ante a necessidade de redução de gastos ou a insuficiência de desempenho. Suas remunerações passam a ser alteradas somente por lei, cuja proposta deve emanar do Poder Executivo.

No caso específico dos professores do setor público, Souza (2011, p. 81) comenta que eles “[...] foram submetidos a diferentes medidas de flexibilização que provocaram mudanças substantivas na legislação do direito do trabalho, diversificando ainda mais o, deteriorado, quadro salarial desses profissionais”.

A implementação das reformas tanto no Brasil quanto na América Latina, a partir da segunda metade da década de 1990, prejudicou, segundo análise de Oliveira,

Gonçalves, Melo, Fardin e Mill (2002, p. 8), os profissionais da educação, sobretudo os que atuam no setor público, pois “[...] foram submetidos a uma política de arrocho salarial sem precedentes na história, implicando grandes perdas salariais. Tais perdas decorreram, simultaneamente, da política de contenção salarial entre outros diferentes mecanismos que corroboraram para essa deterioração”. Também entendem que as medidas de flexibilização que alteraram substancialmente a legislação trabalhista brasileira levaram ainda mais ao agravamento do quadro salarial desses profissionais. Para os autores, o aumento significativo do número de professores contratados temporariamente, em geral, em condições precárias nas redes públicas de ensino, são exemplos mais evidentes dessas mudanças.

Os autores também destacam que a política salarial do setor público no Brasil tem se caracterizado por uma grande diversidade,

[...] marcada por medidas diferenciadoras e flexibilizadoras das relações de trabalho. Dessa forma, os vencimentos dos docentes se diferenciam em função da carreira, do contrato de trabalho – efetivo ou temporário – do cargo, do regime de trabalho, do nível e da classe, do tempo de serviço, da investidura em cargos de confiança, das gratificações incorporadas, da titulação (OLIVEIRA; GONÇALVES; MELO; FARDIN; MILL, 2006, p. 8).

A diversidade de vínculos dos professores no país, segundo Souza (2011), tem relação, entre outros fatores, com o processo de descentralização que, em muitos casos, ocorreu em condições econômicas adversas e que, de certo modo, justificou a decisão de vários gestores públicos em darem preferência para contratos temporários por terem menor ônus para os entes federados. O autor afirma ainda que, “[...] no caso do magistério, isto é agravado pelo fato do sistema de ensino ser muito descentralizado; fazendo com que os docentes se submetam a legislações municipais, estaduais e federais” (Ibidem, p. 81).

Dessa forma, as mudanças nas leis trabalhistas prejudicaram os professores do setor público e não favoreceram a valorização profissional, produzindo, nas palavras de Oliveira (2004, p. 1140), um cenário de dificuldades para esses trabalhadores bem sintetizado.

O aumento dos contratos temporários nas redes públicas de ensino, chegando, em alguns estados, a número correspondente ao de trabalhadores efetivos, o arrocho salarial, o desrespeito a um piso salarial nacional, a inadequação ou mesmo ausência, em alguns casos,

de planos de cargos e salários, a perda de garantias trabalhistas e previdenciárias oriunda dos processos de reforma do Aparelho de Estado têm tornado cada vez mais agudo o quadro de instabilidade e precariedade do emprego no magistério público.

Cabe destacarmos que esse cenário educacional não surge por acaso, mas decorre, em certa medida, da influência dos organismos internacionais (Banco Mundial, FMI e Banco Interamericano de Desenvolvimento) e da imagem negativa da categoria docente, construída em seus documentos de orientação da reforma educacional que deveria ser desenvolvida pelos países da América Latina para melhorarem seus indicadores educacionais.

A participação do Governo brasileiro na efetivação das reformas em consonância com as propostas advindas dos organismos internacionais indica o envolvimento orgânico com esse pensamento, ou seja, são pensamentos compartilhados e de interesse da elite política no poder e não simplesmente impostos sobre o processo de reforma da administração pública brasileira. Nessa direção, entendemos o Estado como mediador na efetivação de propostas de reforma que, de modo geral, se tornaram consenso nos países capitalistas mais desenvolvidos. A respeito disso, Gentili afirma que as diretrizes do ajuste neoliberal “[...] não só encontram base de apoio nas elites econômicas, políticas e culturais latino-americanas, mas que elas são, em si mesmas, parte constitutiva e indissolúvel na construção dessa nova hegemonia” (1998, p. 32).

Destacamos o papel exercido pelo Banco Mundial, por ser a “[...] principal agência de assistência técnica em matéria de educação para os países em desenvolvimento, a fim de sustentar tal função técnica, em fonte e referencial importante de pesquisa educativa no âmbito mundial” (TORRES, 2007, p. 126). Assim, a orientação desse Banco para desenvolver a educação nos países que apresentam dificuldades nessa área foi a de investimento em infraestrutura, como a instalação de computadores nas salas de aula, e material didático que orientasse o trabalho dos professores. O Banco Mundial tem uma visão negativa da atuação dos professores e os responsabiliza pelo fracasso dos programas e políticas educacionais que não conseguem ter êxito. Dessa forma, a autora destaca que, a partir dessa visão negativa, “O fracasso de determinada política ou programa, portanto, é atribuído mais à falta de vontade ou à incapacidade de quem o implementa (geralmente os professores) do que aos erros em sua concepção e em seu desenho” (TORRES, 2007, p. 179).

Essa mesma visão negativa da participação dos professores é apreendida por Gentili (1998, p. 20). Para ele, os professores são considerados meros insumos no processo educativo e também responsabilizados “[...] pela crise de eficiência, eficácia e produtividade dos sistemas educacionais latino-americanos”, tal como foi diagnosticado pelos signatários do Consenso de Washington. Acerca disso, o autor expressa que, na construção do discurso neoliberal sobre os responsáveis pela crise fiscal dos Estados e nos problemas na área educacional, as organizações sindicais são consideradas responsáveis por essa situação nos seguintes termos:

[...] é relativamente fácil avançar na identificação dos culpados da crise. [...] os grandes sindicatos – especialmente as organizações de trabalhadores e trabalhadoras da educação – também são indicados pelo neoliberalismo como um dos principais culpados da crise educacional. De fato, os sindicatos justamente exigiram, do Estado, aquilo que, na perspectiva neoliberal, gera a própria crise: mais intervenção, aumento dos recursos, critérios igualitários, expansão da escola pública, etc. (GENTILI, 1998, p. 20).

A respeito dessa visão negativa sobre os docentes, Evangelista e Shiroma (2007), com base na análise de três grandes projetos para a Educação na América Latina e no Caribe – a) o Proyecto Regional de educación para América Latina y el Caribe (PREALC), realizado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO); b) o Plan de Cooperación, patrocinadas pela Organização dos Estados Íbero-Americanos (OEI); e c) os Proyectos hemisféricos em educación, patrocinados pela Organização dos Estados Americanos (OEA) – concluíram que os organismos internacionais apresentam os professores como culpados pela crise dos sistemas educativos dos países latino-americanos e também os consideram como obstáculo ao desenvolvimento das reformas educativas. Nessa perspectiva, as autoras esclarecem que a escola e os professores são alvos de um processo de desqualificação política e profissional, principalmente nos documentos do Banco Mundial, nos quais se argumenta que o professor é caracterizado como sendo:

[...] corporativista, obsessivo por reajustes, descomprometido com a educação dos pobres, um sujeito político do contra. De outro, que é incapaz teórico-metodologicamente, incompetente, responsável pelas falhas na aprendizagem dos alunos, logo – em última instância – por seu desemprego (EVANGELISTA; SHIROMA, 2007, p. 536).

É possível identificar nesses projetos, segundo Evangelista e Shiroma (2007), a construção de uma imagem da categoria docente que serve ao propósito de minar ou de desgastar a importância social e profissional desses trabalhadores, ao ponto de afirmarem que o perfil do docente consiste em ser “[...] corporativista; avesso às mudanças; acomodado pela rigidez da estrutura de cargos e salários da carreira docente; desmotivado, pois não há diferenciação por mérito, por desempenho, ou seja, como obstáculo às reformas” (p. 536). Podemos observar aqui a proposta neoliberal de Milton Friedman de promover políticas salariais que tenham como base a meritocracia e a competição entre os professores em detrimento de carreiras bem estruturadas e salários condizentes com a importância do cargo.

Com isso, os projetos educacionais, financiados pelos organismos internacionais, anunciam os responsáveis pelos fracassos na área da educação, sem cogitarem outras possibilidades explicativas, como a falta ou a diminuição de investimentos na construção de carreiras profissionais atrativas para os professores com condições de trabalho adequadas. Para esses organismos internacionais, o professor luta apenas por melhores salários, embora seja profissionalmente desqualificado, porque:

[...] está na profissão só quem não foi aceito em carreiras de maior prestígio; é incapaz para outras funções e a docência foi o que lhe restou; acomodou-se na carreira porque não há incentivos para desempenhos diferentes; não se preocupa com a qualidade do que faz porque seu salário é irrisório (EVANGELISTA; SHIROMA, 2007, p. 537).

Em relação ao salário dos professores, os documentos elaborados pelo Banco Mundial dão pouca importância para essa questão, uma vez que defendem sempre o menor investimento possível. De acordo com as ideias veiculadas por especialistas que atuam para o Banco Mundial, não se acredita que aumentar os salários irá resultar em melhor qualidade do ensino. Partem do princípio de que os salários devem ser revistos, mas como uma espécie de incentivo negativo, como forma de punição para os profissionais com baixo desempenho. Com isso, o reajuste salarial não deve ser uma política de estímulo ao exercício da docência, mas “[...] os salários dos professores devem se vincular ao desempenho e esse deve ser medido através do rendimento do aluno” (TORRES, 2007, p. 166).

A questão salarial por parte dos organismos internacionais, de acordo com Evangelista e Shiroma (2007, p. 538-539), tem como foco a diminuição de recursos,

como no caso do UNICEF que recomendou em seus documentos “contratar professores baratos”, e o Banco Mundial sugere oferecer apenas gratificações por desempenho, introduzindo um sistema de salário diferenciado, voltado para a “produtividade de cada professor, produtividade essa baseada nos escores alcançados em termos de rendimento do alunado”.

Ao abordarem sobre a atuação do Banco Mundial na educação básica do Brasil, Silva, Azzi e Bock (2008) afirmam que o Governo brasileiro se alinhou à concepção educacional defendida por esse Banco. Isso pode ser percebido no plano de governo de FHC, em 1994, que apresentava propostas de reformas educacionais alinhadas com as diretrizes do referido Banco, como:

[...] a redução das taxas de responsabilidade do Ministério da Educação como instância executora; o estabelecimento de conteúdos curriculares básicos e padrões de aprendizagem; a implementação de um sistema nacional de avaliação do desempenho das escolas e dos sistemas educacionais para acompanhar a consecução das metas de melhoria da qualidade do ensino (Ibidem, p. 32).

As orientações dos organismos internacionais se materializam na educação brasileira, em grande parte, devido à relação de condições impostas para o governo brasileiro para poder receber recursos a serem aplicados na melhoria da educação. Haddad (2008) analisa essa situação e revela que o FMI apresentava como condição para liberar financiamentos cortes de despesas com gastos públicos e ajustes estruturais. O Banco Mundial, por sua vez, elegeu como prioridade de investimentos na educação o nível fundamental, em razão de defender que essa seria a melhor lógica de custo- benefício para obter investimento com menor custo se comparado aos valores necessários para o Ensino Fundamental com outros níveis de ensino e oferecer condições de empregabilidade aos alunos para o mercado de trabalho.

Na área econômica, o Consenso de Washington promoveu, de acordo com Gentili (1998), ajustes que se tornaram consenso nos países capitalistas; também foi explícita a intenção de realizar um ajuste educacional que, na dimensão das relações trabalhistas, pretendeu desarticular os mecanismos unificados de negociação com as organizações associativas dos trabalhadores da educação como estratégia de questionar a validade das organizações sindicais em nível nacional e regional, conseguindo a flexibilização das formas de contratação e de retribuições salariais das categorias docentes. O autor declara que, de modo geral, os impactos dos programas de ajuste

estrutural, promovidos pelo Banco Mundial na América Latina, tiveram como consequência reduções progressivas dos gastos com educação, que se refletiram na deterioração das condições de infraestrutura dos sistemas educacionais e do gasto com despesas correntes, “[...] principalmente uma diminuição crescente do salário real dos docentes e do pessoal que trabalha nas instituições escolares” (p. 34).

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