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A Fonologia Entoacional Autossegmental Métrica (ou simplesmente Fonologia Entoacional, termo mais comumente utilizado na literatura brasileira para a referida teoria) considera que a entoação tem uma organização fonológica. Considerando a entoação em níveis

24 cf. Hayes; Lahiri, 1991; Jun, 1996; 1998; Frota, 2000; Tenani, 2002; Hellmuth, 2007; Fernandes, 2007a; 2007b;

de altura tonal, seguindo uma linha de análise utilizada inicialmente por Pierrehumbert (1980), a teoria tem como principais objetivos identificar os elementos contrastivos da estrutura entoacional e fornecer ferramentas que sejam capazes de descrever universalmente as gramáticas entoacionais das línguas naturais (PIERREHUMBERT, 1980; BECKMAN; PIERREHUMBERT, 1986; PIERREHUMBERT; BECKMAN, 1988; HAYES; LAHIRI, 1991; LADD, 1996; 2008; GUSSENHOVEN; 2004; JUN, 2005; 2014; FROTA; PRIETO, 2015).

Neste trabalho, entendemos entoação como o uso da variação de altura (periodicidade da onda do sinal acústico da fala25) relacionada ao uso de tons fonológicos no nível da sentença, com a finalidade de transmitir informações como a atitude do falante, tipo frásico, o agrupamento dos elementos do discurso, a estrutura informacional, assim como a marcação de estrutura frasal (cf. GUSSENHOVEN, 2004; LADD, 2008).

Segundo Ladd (1996; 2008), a entoação apresenta uma organização fonológica própria, de modo que um contorno entoacional se constitui, fonologicamente, de uma sequência de unidades discretas, denominadas eventos tonais, que por sua vez se originam a partir de dois níveis de altura distintos, ou tons primitivos: alto (H - high) e baixo (L - low). Foneticamente, a representação da cadeia de eventos tonais é dada pelo contorno da frequência fundamental (F0 do sinal acústico).

De maneira geral, assume-se que os eventos tonais são definidos localmente, um em relação ao anterior, de modo que é considerado suficiente o uso de somente dois tons, conforme mencionado, para a descrição dos contornos, mesmo sendo ampla a variação de altura de F0 (cf. LADD, 2008 [1996], p. 72). Assume-se também que os eventos tonais formam blocos de contorno e estão associados a pontos específicos na cadeia segmental (cf. BECKMAN; PIERREHUMBERT, 1986; PIERREHUMBERT; BECKMAN, 1988; HAYES; LAHIRI, 1991; LADD, 1996; 2008; FROTA, 1997; 2000; VIGÁRIO, 1998; VIGÁRIO; FROTA, 2003; TENANI, 2002; FERNANDES, 2007a; 2007b; TENANI; FERNANDES-SVARTMAN, 2008; entre outros).

De acordo com Ladd (1996; 2008) e com os trabalhos realizados para as variedades de PE, PB, PGB e também o PST26, os eventos tonais mais relevantes na descrição da variação da

25 Cf. Gussenhoven, 2014.

26 Cf, para o PE: Frota (2000, 2014), Frota e Vigário (2000), Vigário e Frota (2003), Cruz (2013), Frota et al.

cadeia tonal de F0 são os acentos tonais (pitch accents) e os tons relacionados a fronteiras (boundary tones) de constituintes prosódicos.

Os acentos tonais são os eventos tonais que aparecem associados às sílabas proeminentes da cadeia segmental, ou seja, a mudança de altura tem como alvo a sílaba portadora de acento lexical. Os acentos tonais podem ser monotonais (simples, L* ou H*) ou bitonais (complexos, H*+L, H+L*, L*+H ou L+H*), sendo indicado com um asterisco o tom que estará alinhado à sílaba tônica do item lexical. Dessa forma, a notação utilizada para acentos bitonais indica casos em que estes sejam caracterizados por um movimento rápido de F0, isto é, acentos tonais ascendentes (L*+H ou L+H*) ou descendentes (H*+L ou H+L*) (cf. LADD, 2008 [1996], p. 87-88).

Já os tons relacionados a fronteiras são associados às fronteiras de domínios prosódicos (tratados na seção 3.2, a seguir), ou seja, a mudança de altura tonal tem como alvo uma fronteira de um dado constituinte prosódico. Os tons relacionados a fronteiras podem ser de dois tipos: acentos frasais27 (L ou H), que se associam às fronteiras de constituintes prosódicos mais baixos que o sintagma entoacional (HAYES; LAHIRI, 1991), e tons de fronteira28 (L% ou H%), que podem se associar às fronteiras de sintagmas entoacionais (PIERREHUMBERT, 1980).

A teoria não exclui a possibilidade da existência de acentos tritonais ou tons de fronteira bitonais, embora esse tipo de marcação não tenha sido necessário na análise de nossos dados.

Além dessas anotações, os tons marcados como H podem vir acompanhados de diacríticos: ‘!’ para processos de downstep (degrau abaixo), e ‘¡’ para processos de upstep (degrau acima). O primeiro indica que um tom H está sendo realizado relativamente mais baixo do que o tom H realizado anteriormente; já o segundo indica que um tom H está sendo realizado relativamente mais alto do que o tom H que o precedeu. De acordo com Ladd (2008 [1996], p. 77), ocorre em algumas línguas africanas de o segundo tom H de uma sequência H L H ser realizado em um nível mais baixo do que o primeiro H, se configurando como H L !H, sendo o nível desse último H o novo parâmetro de altura para a realização dos próximos Hs que estejam

Fernandes-Svartman (2010); Frota et al. (2015); para o PGB: Santos e Fernandes-Svartman (2014), Santos (2015), Fernandes-Svartman et al. (a sair); para o PST: Braga (2017).

27 Do inglês, phrasal accents. 28 Do inglês, bondary tones.

sendo realizados dentro de um determinado constituinte prosódico. Isso também pôde ser observado em nossos dados de PST, conforme discutiremos no Capítulo 5.

Outro tipo de notação que também pode ser utilizada para descrever minuciosamente os acentos tonais é o uso de ‘>’ e ‘<’ para representar se um acento tonal está sendo realizado antes (>T) ou depois (<T) da posição da sílaba tônica na representação da curva entoacional. Se o acento tonal estiver sendo realizado antes da sílaba proeminente, diz-se que ele está adiantado, podendo ser anotado como ‘>T*’; caso ele se mostre, na curva de F0, sendo realizado após a sílaba que carrega o acento lexical, diz-se que ele está atrasado, recebendo a notação ‘<T*’ (GONÇALVES, 2011, p. 36).

Ainda segundo Ladd (2008 [1996], p. 131), um contorno entoacional é dividido em três partes, denominadas cabeça29, núcleo e cauda. Apenas o núcleo é obrigatório, de modo que em um enunciado formado por uma única sílaba (como “Sim.”, numa resposta à pergunta “Choveu hoje?”, por exemplo), o contorno consiste apenas do núcleo (contorno nuclear). Em um enunciado composto por mais sílabas, o núcleo desse contorno estará na sílaba acentuada mais proeminente, que normalmente também é a última sílaba acentuada30.

Considerando novamente as variedades de PE, PB, PGB e PST, de forma geral, observa- se que o contorno entoacional nuclear das sentenças declarativas neutras apresenta dois padrões tonais principais distintos entre si. À guisa de ilustração, no primeiro padrão, uma queda final na curva de F0 é realizada na sílaba tônica da última palavra da sentença (um acento tonal nuclear H+L*), e o tom permanece baixo até o fim do enunciado (um tom de fronteira L%). No segundo padrão, o contorno na sílaba tônica da palavra fonológica nuclear se realiza baixo (um acento tonal L*), e o tom também permanece baixo até o fim do enunciado (um tom de fronteira L%).

29 ‘Cabeça’, nessa concepção, não equivale à cabeça de constituinte prosódico. Durante nossas análises

utilizaremos o termo ‘cabeça’ na concepção da Fonologia Prosódica (cf. seção 3.2 desta dissertação).

30 Tradução nossa. No original:

“an intonation contour is divided into three parts, called head, nucleus, and tail. Only the nucleus is obligatory, so that on a monosyllabic utterance the contour consists of the nucleus alone. In an utterance with more syllables, the nucleus occurs on the most prominent stressed syllable, which is normally also the last stressed syllable.” (LADD, 2008 [1996], p.131)

A Figura 2 ilustra esses principais contornos nucleares encontrados para as sentenças declarativas neutras nas variedades de português já descritas na literatura. Em cada um deles, encontramos (da esquerda para a direita): a sílaba pré-nuclear (faixa branca mais à esquerda), a sílaba nuclear (portadora do acento lexical), à qual o acento tonal nuclear associa-se (faixa cinza claro), a sílaba pós-nuclear (faixa branca mais à direita) ‒ nos casos em que há mais sílabas entre aquela a que se associa o acento tonal nuclear e a do tom de fronteira ‒, e a sílaba a que se associa o tom de fronteira (faixa cinza escuro).

Figura 2: contornos nucleares de sentenças declarativas neutras (foco amplo) encontrados nas variedades de português já descritas na literatura sobre Fonologia Entoacional (adaptado de Frota et al., 2015, p. 248).

Conforme dito no início deste capítulo, a perspectiva de análise entoacional que assumimos neste trabalho, dentro do quadro teórico da Fonologia Entoacional, prevê a integração entre entoação e domínios prosódicos (HAYES; LAHIRI, 1991; FROTA, 2000; TENANI, 2002, entre outros). De acordo com essa abordagem, a atribuição de eventos tonais à cadeia segmental dependerá de relações de constituência e proeminência definidas na estrutura prosódica. A estrutura prosódica relevante para a entoação em português, de acordo com a literatura específica, é fornecida pela hierarquia prosódica, da qual trataremos na próxima seção.