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2. Apresentação das fontes

2.2. Fontes de cariz doutrinal

Ficando caracterizadas, nas suas grandes linhas as fontes centrais deste estudo, vai-se agora proceder à apresentação de um resumido conjunto de outras fontes entendido como complementar àquelas para uma cabal consideração do tema em apreço. Interessa a este estudo conjugar as várias perspetivas, presentes nos diversos estratos da sociedade, sobre os casos e enfermos de possessão. Com o propósito de verificar as conceções sociais sobre a possessão e os possessos, recorremos a fontes de cariz doutrinal e legislativo, na tentativa de encontrar referência aos possessos/ endemoniados nestas mesmas. Pretende- se verificar como seriam retratadas estas personagens nos tratados de moral, como os penitenciais e, a causa atribuída à sua enfermidade. Procura-se, de igual forma, averiguar as consequências que a legislação atribuiria a quem sofresse deste mal.

Entre as primeiras, destacam-se dois textos - o Tratado de Confissom117 e Libro

de las Confessiones de Martim Pérez118. Ambos possuem caraterísticas de cariz

doutrinário e moral, procurando estabelecer normativas, quer para os clérigos que

114 Idem, p. 44. 115 Idem, p.36. 116 Idem, p.38.

117 MENDES, Andreia Cláudia da Silva, Bruxaria Mitos Afins …, 2015.

118 PÉREZ, Martín, Libro de las Confessiones: Una Radiografia de la Sociedad medieval española, Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 2002.

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necessitavam de guias de conduta e de esclarecimentos acerca dos seus deveres, quer para uma sociedade que buscaria uma noção sobre o que seria o correto e o repreensível. Recorrendo às observações de Pierre Bordieu, podemos falar sobre a existência de um poder invisível presente nas exercido através da cumplicidade daqueles que lhes estão sujeitos e dos que os sujeitam, chamado de poder simbólico. É um poder de construção da realidade que tenta estabelecer uma ordem e um sentido para o mundo119. Com base nas afirmações do autor pode-se verificar este simbolismo nos Livros de Milagres.

Proceder-se-á, primeiramente à apresentação do Tratado de Confissom120. De acordo com o seu editor, José Barbosa Machado, esta obra, impressa em Chaves em 1489, cujo único exemplar conhecido foi descoberto em 1965 por José V. Pina Martins, representa a primeira obra de língua portuguesa (conhecida), impressa em Portugal121. Trata-se de um pequeno in-quarto com trinta fólios, cinquenta e nove páginas impressas [a última a branco], divididos em três cadernos com a assinatura ai-ax [tendo numeração explicita até aiiii], bi-bx, ci-cx.122 Uma das problemáticas que levanta a presente fonte

prende-se com a falta da respetiva encadernação e folha de rosto, onde seria apresentado o autor. Tendo em consideração os trabalhos realizados sobre esta obra, aponta-se a hipótese que o autor ter sido português e, que se baseou em alguns trabalhos de cariz penitencial redigidos em castelhano, tendo escrito o texto entre 1378 e 1417, período em que ocorreu o Grande Cisma123.

O Tratado de Confissom é como um manual de normas para os fiéis, que retratava os comportamentos considerados desviantes, nomeadamente violações, heresias, incestos, entre outros. Serviu igualmente o propósito de instruir os membros da Igreja na cura das almas, nas normas confessionais e nas práticas clericais mais adequadas. Nesta

119 Para o autor, existem vários universos simbólicos do poder, nomeadamente o mito, a língua, arte e ciência. Estes símbolos são instrumentos de integração social, tornam possível o consenso sobre o sentido do mundo social, que contribui, fundamentalmente, para a reprodução da ordem social. Cf. BORDIEU, Pierre, O Poder Simbólico, 2ªed., Lisboa, Edições 70, Coleção História & Sociedade;6, 2011, pp. 3-6. 120 MACHADO, José Barbosa, Tratado de Confissom (Chaves, 1489): Edição Semidiplomática, Estudo Histórico e Informático-Linguístico, 1ºV., Braga, APPACDM, 2003.

121 É o primeiro livro impresso em língua portuguesa conhecido, tirando a Vita Christi de Lindolfo de Saxónia, impresso em Lisboa em 1495. Cf. MACHADO, Tratado de Confissom…, p. 13.

122 In Idem, p. 27.

123 A opinião respeitante ao autor da obra não se apresenta convergente. Pina Martins afirma que terá sido um frade franciscano, pertencente a uma Ordem estabelecida em Chaves. Cf. MACHADO, Tratado de Confissom …, pp. 27-28.

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obra ficam espelhadas as preocupações da época para a confissão, onde avultam as lacunas na forma de inquirir o penitente, o que reprimir e como o aconselhar124.

Segundo José Barbosa Machado, é possível dividir o Tratado de Confissom em duas partes distintas. A primeira parte inicia-se com o prólogo, terminando na página 60, com o último título referente à penitência. A segunda parte enceta nesse local com a apresentação dos artigos da fé e termina com a listagem dos casos reservados125. Usando o argumento de José V. Pina Martins, embora o Tratado se dirija principalmente aos confessores, também tem a função de se dirigir aos penitentes, o que explica a presença da segunda parte126. Em termos de temáticas, o Tratado de Confissom não contém novidades marcantes, em relação ao tipo de escrita em que se insere. Sendo um manual de confissão, apresenta o habitual capítulo sobre o melhor modo de exercer esta prática, comenta os sete pecados mortais, os pecados dos cinco sentidos, os dez mandamentos e as obras de misericórdia, bem como elabora uma listagem das penitências a atribuir a cada pecado. Critica-se desde os mais simples até aos mais poderosos, passando pelos religiosos127.

Passando agora a considerar a obra de Martim Peréz, importa antes de mais esclarecer o que eram os Penitenciais128. Estas obras que conheceram a sua origem no decorrer do séc. VII, foram divididos pelos seus modernos estudiosos em três modelos: irlandeses, anglo-saxões e francos129. Compreendiam as normas para os confessores, aliadas a uma panóplia de pecados e as suas respetivas penas, tendo em conta a gravidade

124 O autor demonstra uma preocupação em enumerar os pecados mortais e os que provêm dos cinco sentidos, juntamente com forma de os expurgar. Faz-se uso do Direito de Graciano quanto à forma de praticar a penitência, contudo demonstra uma estranha brevidade na enunciação da mesma. Cf. MACHADO, Tratado de Confissom …, pp. 13-20.

125 Idem, pp. 141.

126 MARTINS, José V. de Pina, “O Tratado de Confissom e os Problemas do livro português no século XV”, In Idem, Tratado de Confissom, Lisboa, Imprensa Nacional -Casa da Moeda, 1973, pp. 58-59. 127 De apontar outra caraterística de relevo, nomeadamente de estar escrita em vernáculo. Esta realidade atribui-se à fraca utilização do latim. Incorretamente utilizado, destacavam-se já as línguas vulgares. Passou a ser uma língua mais conotada com o sagrado somente entendida por um restrito grupo social. O povo adulterava-o e os clérigos com cura de almas não aparentavam um domínio do mesmo, apesar de o utilizarem nas suas cerimónias. Quem pretendesse ascender a este cargo teria que se apresentar a um bispo ou seu representante e passar num exame, que consistiria em recitar o missal em latim e conhecer os sacramentos, conhecer a doutrina, direito canónico e saber que penas aplicar na confissão. Só após Trento e com a criação de seminários conciliares é que o clero secular começou a ter uma formação sistematizada e mais ou menos uniforme. Cf. MACHADO, Tratado de Confissom… pp. 108-111.

128 A literatura penitencial tem as suas raízes nos Evangelhos e nas palavras de Jesus Cristo, debatendo acerca do perdão dos pecados e da necessidade de se fazer penitência, dando concelhos de âmbito moral e se especificam algumas formas de penitência privada e pública, ou mais propriamente eclesial. Cf. MACHADO, Tratado de Confissom …, p. 122.

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daqueles130. Baseavam-se na ideia de que o perdão do pecado e a infusão de graça santificante obrigariam, salvo os casos de exceção, ao conhecimento das faltas por parte dos ministros sagrados, habilitados de jurisdição. Estas obras foram progressivamente entrando no dia a dia da sociedade medieval, toldando as consciências morais e conseguindo ao mesmo tempo evitar as arbitrariedades perigosas dos confessores. Advogavam uma reconciliação interna com Deus e externa com a Igreja, impondo a obrigatoriedade de declaração das faltas ao ministro do sacramento, bem como o cumprimento das condições para o perdão. Eram obras eram simultaneamente sacramentais (pelas suas relações com a confissão), ascéticas (pelos seus conselhos e normas de vida interior) e pedagógicas (de uma pedagogia social). Revelavam as falhas dos Homens e das sociedades, mas também os ideais dos líderes eclesiásticos, aos quais eram atribuídas as responsabilidades de guiarem as almas. Os Penitenciais seriam inicialmente, seriam destinados ao uso dos padres. Contudo, terá sido necessário dotá-los de uma língua vernácula, de forma a agilizar o seu conteúdo às populações131.

A partir da relevante bibliografia disponível sobre o Libro de Las Confessiones de Martim Pérez, principiamos por introdução desta mesma obra. Elaborada em 1316, terá sido reescrita por um monge ou clérigo no séc. XV132. De recordar que na Península Ibérica, os penitenciais tiveram uma introdução mais tardia devido à invasão muçulmana de 711133, tendo sido substituídos pelas sumas e pelos manuais após o IV Concílio de Latrão (1215) estatuir a obrigatoriedade de todos os cristãos se confessarem pelo menos uma vez ao ano134. O penitencial de Martim Perez recebe influência de outros textos da mesma natureza, mas menciona outras fontes de inspiração, como os santos padres, “[…] alguns livros […]”135, ou costumes religiosos espanhóis e a doutrina de São Teodoro e

São Bernardo. O autor começa por afirmar a importância da sua obra para a clerezia.

130 BETHENCOURT, Francisco, “Penitenciais”, In Carlos Moreira AZEVEDO, Dicionário de História …, p. 445.

131 MCNEILL, John T., GAMER, Helena M., Medieval Hand-Books of Penance: A translation of the principal libri poenitentiales and selections from related documents, Nova York, Columbia University Press, 1990, p. 3.

132 O clérigo ou monge que reescreve esta obra lega-nos a confirmação humilde das suas origens, afirmando “…tiradas estas poucas palavras do Livro de Martim Pérez.” cf. Bibi. Nac. de Lisboa, Cód. Ale. CCLXXIV a/213, II. 126 v. Cf. MARTINS, Mário, Estudos de Literatura Medieval, Braga, 1956, pp. 81- 92.

133 GONZÁLEZ RIVAS, S., “Los penitenciales españoles”, In Estudios Eclesiasticos, Madrid, nº16, 1942, pp. 73-98.

134 MACHADO, Tratado de Confissom …, pp. 127-128.

135 Martím Pérez aconselha as obras que os confessores deveriam ler, a fim de bem ouvir e aconselhar. O confessor teria que possuir algum conhecimento das tentações dos homens e dos estados da alma. S. Gregório terá aconselhado o livro Moral que fez sobre o livro de Job. Nesta obra demonstra S. Gregório que a alma passará muitas atribulações e consolações. Cf. PÉREZ, Libro de las Confessiones…, p. 371.

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Contudo, não os tem como únicos destinatários, sendo estes os penitentes em geral. Desde logo o facto de não se encontrar em latim demonstra que não se queria escrever uma obra de alcance restrito, mas sim alargado e, sobretudo, prático136. São dedicadas muitas páginas ao pecado da luxúria, entregando-se de igual forma, a questões económicas, à mediação do dinheiro e os pecados do dinheiro: “[…] os cobiçosos perseguiram e mataram Jesus Cristo mais que os luxuriosos […]”. Critica-se afincadamente a soberba, falsidade, mentira e o orgulho. Dedica-se uma especial atenção aos pobres e às obras de misericórdia137, citando-as constantemente como forma de remissão de pecados138. Segundo Mário Martins, possivelmente dos focos principais presentes na obra de Martim Pérez eram as questões relativas à propriedade, encontrando-se trechos incisivos sobre como deve proceder no arrendamento de terrenos139, debate-se ainda a regulamentação das trocas comerciais140 e refere-se a importância de se realizarem contratos e

testamentos141. Observamos nestes trechos uma Igreja que tenta mediar o conflito entre

cristãos, mouros e judeus142. Em alguns casos, verificamos menções a leis ou ordenações

locais143.

O Penitencial de Martim Pérez é assim um tratado de moral e de direito positivo, que se pode dividir em três partes: inicialmente debruça-se sobre os pecados comuns a todos os estados; passa depois aos pecados em que podiam cair especialmente algumas pessoas de alguns estados; termina, por fim, com uma exposição sobre os sacramentos. Compreende-se a densidade maciça destes capítulos, pois neles está contido um grande número de normas jurídicas, do direito eclesiástico e civil; nas páginas ressalta toda enorme complexidade da vida social, tão profundamente agitada pelas paixões humanas144. O trabalho de Martím Pérez granjeou uma elevada aceitação e seguimento por toda a Península Ibérica, como atestam as várias cópias produzidas e da sua tradução para português. Segundo o autor anónimo da obra Speculum Pecatoris et Confessoris, a

136 PÉREZ, Libro de las Confessiones…, p. XIII. 137 Idem. p. XI.

138 Pode-se verificar quando o autor menciona que as penitências corporais seriam quatro: orar, vigiar, jejuar e tomar quebrantos santos. Nos quebrantos a Deus deve-se: dando lágrimas, vestindo silício, dormindo em aspereza, ferindo os peitos, ficar de joelhos, tomar disciplinas, visitar os santos, passar enfermidades, ouvir doestos, suster os pobres e servi-los. Cf. MARTINS, O Penitencial de Martim Pérez …, p.108.

139 Idem. pp. 88-89. 140 Idem. pp. 89-93.

141 Cf. PÉREZ, Libro de las Confessiones…, p. 122.

142 Nomeadamente quando se debate sobre os bens retirados aos mouros e judeus, quando os cristãos raptavam os seus filhos para os batizar ou quando se quereria ir para a guerra santa; Cf. PÉREZ, Libro de las Confessiones…, pp. 105-277.

143 Idem, p. XXI-XXII.

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obra de Martim Pérez terá sido bem aceite pela clerezia, dada a preocupação que patenteava pela cultura dos clérigos, principalmente dos que detinham a responsabilidade do culto das almas145. Na posse do “Eloquente” rei D. Duarte, encontrariam dois livros de Martím Pérez, o que nos demonstra o contacto que a corte estabelecia com os trabalhos deste autor e a adesão aos modelos neles preconizados146. No Leal Concelheiro é fomentada a sua leitura, caracterizada como recomendável147. A mesma observação terá sido feita por D. Fernando, o Infante Santo148.

Em suma, o Penitencial de Martim Perez, que andou pelas mãos de monges e grandes do mundo, propiciaria a elaboração de um penitencial em português, o único até agora conhecido nesta lingua. O compilador ficou na sombra do anonimato, mas o seu trabalho é hoje um importante testemunho sobre a disciplina penitencial portuguesa do século XV149.