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3. Os casos de possessão presentes nos Livros de Milagres

3.4. Os espaços

Dos 24 casos relacionados com os milagres de cura de possessão demoníaca, 22 sucessos ocorrem no interior dos santuários dedicados aos santos milagrosos. Fica assim identificado os espaços privilegiados para o confronto entre os exorcistas e os demónios. Estes santuários, representados como locais imbuídos de uma atmosfera caraterística, eram para os pensadores da Igreja um espaço destinado a servir uma comunhão entre a sociedade humana, a Cristandade. Sendo as igrejas uma materialização clara dos objetivos para a salvação das almas e redenção dos pecadores, eram vistas como zonas privilegiadas para o culto dos santos e da propagação da sua fé.

Desde os séculos XI e XII que as celebrações litúrgicas viriam a sofrer alterações, com a instauração da noção da transubstanciação, dotando os espaços onde se realizasse a eucaristia da presença divina de Deus271. Com o culto dos santos o cenário seria idêntico, dotando estes santuários das relíquias dos mártires272. Estes seriam veículos da graça divina onde Deus e os seus santos se aproximariam dos homens, fazendo a ponte entre o plano terrestre e o Além. São lugares onde ocorre a comunhão entre os homens fiéis com a divindade, que após a sua manifestação sagrada resultaria nos testemunhos dos feitos milagrosos, justificando a existência de um santuário específico e incentivando a sua procura273. É nestes espaços que os peregrinos encontram o seu destino, onde estes se dirigem na esperança de encontrar uma solução positiva para o seu problema e satisfazer

271 Cf. ROSA, Maria de Lurdes, “Sagrado, devoção e religiosidade”, In MATTOSO, História da Vida Privada …, p. 388.

272 Com as sangrentas perseguições aos cristãos desencadeadas pelos Imperadores Romanos, nasceu o culto aos Mártires. Estes seriam considerados como verdadeiros imitadores de Cristo, pois, segundo S. Paulo “completaram na carne o que faltava à paixão de Jesus”. Os seguidores começaram a guardar restos dos corpos destes Mártires, cultuando-os em segredo, originando assim o culto às relíquias, abençoadas por Deus, capazes de produzir milagres. Através da intercessão de um Santo pelos seus despojos materiais quebrava-se a barreira entre vivos e mortos, podendo ser feita a mesma analogia para com os Livros de Milagres, que não sendo parte do corpo de um santo ou instituição, encontravam-se imbuídos da sua essência, sendo uma transubstanciação da obra que seria uma física representação do Santo. Cf. BEIRANTE, Maria Ângela, Territórios do Sagrado: Crença e Comportamentos na Idade Média, Lisboa, Edições Colibri, 2011, p. 77.

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os anseios que carregam. É onde também são deixados os relatos e louvores sobre as curas milagrosas e as ações graciosas que Deus realizaria por intermédio dos seus santos274.

Espaços dominados pela regra e pelo sacrifício que os pensadores da Igreja almejavam, são locais conotados com a virtude e merecedores da misericórdia de Deus, canalizada por meio das relíquias ou dos «moimentos em homenagem dos santos». É o santuário que promove intercâmbios e aglutina comunidades inteiras, proporcionando- lhes factores de identidade e de ligação na diáspora. Seriam espaços que assimilariam algum gesto ou acontecimento que tivesse marcado a vida pública da comunidade, considerados santuários aos santos pela memória que evocariam de acontecimentos com estes associados. Não seriam espaços apenas dedicados à contemplação; segundo os estudos de Aires Augusto Nascimento, eram locais onde a divindade ganharia forma por meio do Verbo, logo eram também um lugar de habitação275.

Esta é a noção do espaço onde o milagre de cura se desenrolaria, tendo por base os relatos encontrados nas fontes. Contudo, não se pode apresentar como um espaço estanque ou final, visto ser somente o local final da cura. Em certos casos os milagres apresentam-se como um processo de salvação que se inicia fora do espaço religioso. Atendendo ao milagre 161º do Livro de Milagres do Santo Condestável, é possível verificar o caso do “filho de Martim Martinz”, que sendo tentado pelo inimigo há já 6 anos procuraria saúde em várias romarias sempre sem sucesso. Posteriormente ouvindo sobre os sucessos que Deus realizava pelo Santo Condestável, e Martim Martinz dá de beber ao seu filho, água da terra onde jazia o corpo do santo, fazendo promessa de romaria caso o demónio fosse expulso276.

Outro exemplo é encontrado nos milagres atribuídos aos Mártires de Lisboa, mais concretamente no sucesso 24º, em que é narrada a «epopeia» de uma mulher endemoniada que parte de Alenquer em romaria ao santuário dos ditos santos. Neste episódio, podem- se verificar 3 fases da narrativa de cura. Primeiramente, é transmitido que a protagonista seria já vítima do demónio antes do seu casamento e, após a descoberta deste seu infortúnio pelo marido, leva ao conhecimento público do seu mal. Este acontecimento conduz a que esta seja “derrubada pela vergonha” e “atacada bravamente pelo demónio”, decidindo orar a Deus pela cura ou pela morte. Após a prece, surge S. Veríssimo que a

274 Idem, p. 36. 275 Idem, pp.28-35.

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recomenda a procurar o seu santuário e realizar uma peregrinação. Segundamente é narrada a aventura desta vítima em busca do santuário e onde o suposto confronto com o inimigo ocorre. Esta, “indo pelo carreiro a caminho do mosteiro, sai o diabo do mar e ataca-a”; lembrando-se das palavras do santo, decide orar em seu nome, acabando por vencer o seu medo e livrando-se do invasor. Por fim, a narrativa termina com a sua chegada ao santuário, onde partilha a sua história e agradece a graça que lhe teria sido concedida. Neste caso específico, o santuário não se apresenta como o espaço do milagre, mas sim um local do reconhecimento desta mesma dádiva e do culminar de todo o processo curativo277.

Nos Livros de Milagres tratados no presente estudo, verifica-se que os sucessos realizados pelos santos ocorreriam nos seus santuários específicos, sendo que cada santuário poderia possuir diferentes formas de agraciar os enfermos e necessitados. Quando estes não eram dotados dos corpos ou túmulos dos santos, os santuários viveriam do acolhimento de relíquias. Observando os relatos de sucessos obrados por S. Vicente, estes ocorreriam na Santa Sé de Lisboa após a trasladação das suas relíquias de Valência. Nos relatos transcritos por mestre Estevão, é possível observar que a cura dos males corporais e espirituais se realizaria por meio do toque às relíquias do santo e das vigílias em frente destas278.