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CONHECIMENTO DE SI MESMO E DO OUTRO

3.3 Força e amizade: os lutadores do bem

O “normal” no campo, como se pôde observar, era o aviltamento, sendo que a vítima sucumbia à opressão e à demolição. A lei da sobrevivência era esquecer a moral, a ética e os sentimentos. Existia, em contrapartida, no fundo da escuridão, uma réstia de luz, que se transformava tanto em um processo de descoberta do pró- ximo, quanto de revisão de si mesmo. Essa descida ao fundo possibilitou Levi obser- var o homem no seu limite, num lugar onde a divisão entre o bem e o mal se esfuma- çava. Havia duas parcelas: uma em que se sobressaíam pessoas duras, de coração mau e outra de pessoas íntegras, honestas, que eram capazes de ajudar os amigos, sem pedir nada em troca, sem interesse; pessoas que não perderam a capacidade de doar-se ou de amar.

3.3.1 Jean Samuel: chamado de Pikolo, era um jovem que não passava dos 17 anos. Thomson 432, na sua obra, contou que o menino tinha a incumbência de satisfazer as necessidades sexuais dos kapos. Como moço de recados e escriturário, cabiam, para ele, várias funções, como limpar o barracão, entregar as ferramentas, lavar as gamelas e manter a contabilidade das horas de trabalho dos prisioneiros em dia. Jean era um sobrevivente, que, pouco a pouco, ganhou certa confiança do comandante do campo. Também tinha relações de amizade e confiança com o kapo, Alex. Samuel era não só um bom articulador, como também sabia ser maleável, sendo ora extrovertido, ora quieto, de acordo com o momento e com os acontecimentos, características que o tor- navam um interno popular.

Ele e Levi tornaram-se grandes amigos. Ambos estudavam juntos, o que possibilitou a não descida total de Levi ao inferno e à loucura. Eles estudaram o itali-

431 LEVI, P. A trégua. Trad. Marco Lucchesi. São Paulo: Companhia das Letras, 1997 p. 339. 432 THOMSON, I. Primo Levi: a life. New York: Picador, 2004 p. 180.

ano, através da obra de Dante Alighieri, Divina Comédia, fazendo uma interpretação do canto XXVI do Inferno. Como complementou Andrea Lombardi433, “o inferno do campo de concentração se apresenta mais monstruoso e unheimlich (‘sinistro’, não familiar) do que a própria fonte literária”. Levi tentou traduzir, sentiu angústia, já que não conseguia juntar os fragmentos de sua memória. Contudo, esse trabalho de re- pensar, de forçar a memória fez com que Levi conseguisse manter a sua lucidez. “No inferno de Auschwitz, as palavras de Ulisses lançavam uma humanidade e uma dig- nidade sublime” 434. Talvez de forma inconsciente, o garoto fez com que Levi não sucumbisse, não esquecesse a sua língua materna e, junto com ela, a sua identidade, o seu passado e a esperança de um futuro longe dos campos.

“Considerate la vostra semenza: Fatti non foste a viver come bruti, ma per seguir virtude e conoscenza”.435

Era como a voz de Deus que o libertava. “Pikolo me pede para repetir esses versos. Como ele é bom: compreendeu que está me ajudando” 436. Esses versos se referem a “todos os homens que sofrem e, especialmente, a nós” 437. Samuel, Dalla Volta e Levi formavam um trio, uma espécie de “tríplice aliança” contra a desumani- zação e a decadência. Para isso, estudavam, liam, praticavam suas línguas de origem, ajudando a salvar a moral e a identidade. O estudo, o diálogo, a leitura e a tentativa de recuperação do lado “humano”, em detrimento à assimilação de que eram “coi- sas”, como o sistema hegemônico queria, tornavam Levi e Pikolo mais fortes, mais unidos, com mais resistência psicológica ao Lager e menos vulneráveis ao naufrágio espiritual. Levi e Jean Samuel não se tornaram brutos, inumanos, justamente por per- seguir a virtude e o conhecimento.

433 LOMBARDI, A. A ética da memória. CULT: Revista Brasileira de Literatura, 1999 n. 23 p. 56. 434 THOMSON, I. Primo Levi: a life. New York: Picador, 2004p. 231.

435 LEVI, P. É isto um homem? Trad. Luigi del Re. 3. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000 p. 116. 436

LEVI, P. É isto um homem? Trad. Luigi del Re. 3. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000 p. 116.

“Enquanto os outros prisioneiros conversavam amenamente ou reparavam as suas roupas, Samuel preferia discursar sobre matemática” 438. Samuel usou o seu intelecto e a ciência como armas contra a demolição. O nazismo marcaria o seu cor- po, com a cicatriz, com a exaustão, mas não a sua mente. Para ele, a mente estando livre da desumanização e da reificação, nunca perderia a consciência, a verdade, a razão e a esperança de libertação e de vida.O conhecimento salvou Levi da degenera- ção e do delírio, como concluiu Barenghi439: “o conhecimento é a única âncora de salvação, ainda que seja impossível – e justamente porque é impossível”. Os dois tentaram alcançar êxitos intelectuais, esconjurando o risco de que a memória da expe- riência extrema produzisse um efeito devastador na consciência.

Levi e Jean Samuel continuaram amigos tanto que este e sua esposa Claude freqüentavam a casa de Levi e de Lucia. Samuel notou, com o passar dos tempos, a mudança no comportamento de Levi, agora retraído, tenso, “como um homem com uma grande sobrecarga de infelicidade” 440. Os problemas se acumulavam na cabeça do escritor: a doença da mãe, da sogra, a dor de não ser ouvido e, sobretudo, a atroz preocupação sobre o avanço das correntes revisionistas. Agora, o conhecimento e o diálogo sobre cultura, artes e ciências não conseguiram salvar Levi; Jean Samuel se sentia impotente por não conseguir ajudar o amigo, que não queria mais ser um so- brevivente no mundo moderno.

3.3.2 Lorenzo: era um homem simples, bom, gostava de fazer ações boas, sem espe- rar nada em troca. Tinha um coração grande, deixava de comer para ajudar os mais necessitados. Como os prisioneiros eram escravizados, bichos na canga, sem honra, sem nome, espancados e ignorados, a revolta, a falta de fé e de esperança eram pre- senças vivas, ardentes no coração. Apesar de toda essa perversidade, Lorenzo, mesmo esfarrapado, esfomeado, não perdia a humanidade. Primo Levi devia a Lorenzo a vi-

438 THOMSON, I. Primo Levi: a life. New York: Picador, 2004 p. 180.

439 BARENGHI, M. A memória da ofensa. Trad. Maurício Santana Dias. Novos Estudos. Novembro de 2005 p. 181. 440 THOMSON, I. Primo Levi: a life. New York: Picador, 2004 p. 482.

da, a continuação dela fora do campo. Para Levi, segundo Mario Barenghi441, Loren- zo era um homem de coragem, enfrentando com determinação e persistência o sofri- mento e a possibilidade de sucumbir a cada segundo. Enfim, “Lorenzo era um ho- mem; sua humanidade era pura, incontaminada, ele estava fora desse mundo de nega- ção. Graças a Lorenzo, não esqueci que eu também era um homem” 442. Em Ausch- witz, o que os mantinha vivos era o fato de não se esquecer de que eles eram homens. Lorenzo ajudava Levi com suplementos de sopa, que conseguia nos “sub- terrâneos” do campo. Thomson443 ressaltou que foi essa ração extra de sopa, com cer- ca de 500 calorias, que permitiu Levi sobreviver. No entanto, não foi só isso que o cativou, foi, sim, o fato de ele sempre lembrar que existiam fagulhas de um mundo lá fora, de um mundo justo e que existia “algo, alguém ainda puro e íntegro, não corrup- to nem selvagem, alheio ao ódio e ao medo” 444. Através da ajuda de Lorenzo, Levi conseguiu enviar uma carta a sua mãe, usando remetente e destinatário falsos e obte- ve resposta, deixando o seu coração mais aliviado. Lorenzo, assim como Pikolo, não deixou que a desumanização tomasse conta do seu ser, permanecendo um homem digno e íntegro.

3.3.3 Alberto: companheiro inseparável de Levi no laboratório de química. Alberto era estudante do terceiro ano e, junto com Levi, que já era formado summa cum lau- de, passara no exame de química e iria trabalhar na fábrica, sob o comando do Doktor Ingenieur Pannwitz. Ambos gostavam de analisar o doutor: “eu me perguntava qual seria sua íntima substância de homem” 445. O olhar frio assustava-os, pois era um o- lhar trocado entre pessoas de mundos diferentes. Alberto e Levi mantinham uma ami- zade sincera, além de ter um pacto: “cada bocado arranjado é dividido em duas partes rigorosamente iguais” 446. Em Cério, componente de A tabela periódica, Levi contou sobre o trabalho no laboratório. Os dois conseguiram sobreviver, graças ao roubo do

441 BARENGHI, M. A memória da ofensa. Trad. Maurício Santana Dias. Novos Estudos. Novembro de 2005. 442 LEVI, P. É isto um homem? Trad. Luigi del Re.3. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000 p. 124.

443 THOMSON, I. Primo Levi: a life. New York: Picador, 2004 p. 184.

444 LEVI, P. É isto um homem? Trad. Luigi del Re.3. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000 p. 124. 445 LEVI, P. É isto um homem? Trad. Luigi del Re.3. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000 p. 107. 446 LEVI, P. A trégua. Trad. Marco Lucchesi. São Paulo: Companhia das Letras, 1997 p. 141.

cério, que tinha alto valor comercial no campo. Assim, eles faziam isqueiros clandes- tinos e, como pagamento, recebiam suplementos de sopa e de pão. O cério lhes possi- bilitara permanecer no campo, lutando pela vida.

Alberto foi uma personagem inesquecível na vida do escritor/narrador. Eles compartilharam a cama e cada grama de comida extra que conseguiam. Levi e Alber- to trocavam confidências, lembranças de casa, resistiam junto ao vento, ao frio, à ne- ve; tropeçavam, caíam, mas tinham um ao outro para desabafar nos momentos em que a saudade e a dor apertavam mais fundo o coração. “Na maior parte do tempo, o imperturbável otimismo de Alberto vencia a desolação e a incerteza e mostrava o verdadeiro significado de uma amizade” 447. Levi estava com escarlatina, quando o campo foi evacuado, e Alberto gozava de uma boa saúde, sendo obrigado a ir junto com o comboio dos alemães. “Despedimo-nos; não havia necessidade de muitas pa- lavras porque cada um já sabia tudo do outro” 448. Alberto estava confiante. Todos os saudáveis, apesar do esgotamento, “partiram na noite do dia 18 de janeiro de 1945 (...). Quase todos desapareceram durante a marcha de evacuação, Alberto entre eles”

449. Na memória de Levi, estava Alberto, com sede de liberdade, o sangue correndo

livre demais nas suas veias, “seu instinto leva-o para longe, rumo a outras soluções, ao imprevisto, ao extemporâneo, ao novo” 450. Alberto ficara na lembrança de Levi, eternamente. “Talvez algum dia alguém escreva a sua história” 451.

3.3.4 Frau Vitta: enfermeira que Levi conheceu, depois da chegada dos russos ao campo. Era amável com todos os seres humanos, olhava com carinho os esfarrapados e despedaçados meio-homens que restavam em Auschwitz, tanto que todos a chama- vam de frau Vida. Ela já sofrera muito, pois “fôra destinada ao transporte dos cadáve- res, dos pedaços de cadáveres, dos miseráveis despojos anônimos” 452. Essas imagens não saíam da sua mente traumatizada, porém continuava os seus passos, ajudando os

447 THOMSON, I. Primo Levi: a life. New York: Picador, 2004 p. 191.

448 LEVI, P. É isto um homem? Trad. Luigi del Re.3. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000 p. 157. 449 LEVI, P. É isto um homem? Trad. Luigi del Re.3. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000 p. 157. 450 LEVI, P. É isto um homem? Trad. Luigi del Re.3. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000 p. 141. 451LEVI, P. É isto um homem? Trad. Luigi del Re.3. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000 p. 157. 452 LEVI, P. A trégua. Trad. Marco Lucchesi. São Paulo: Companhia das Letras, 1997 p. 41.

outros, com olhar simples e fraterno. Era o seu jeito de ser: “ela era a única pessoa que se ocupava dos doentes e dos meninos; fazia-o com piedade frenética” 453. Frau Vitta não conseguia ficar parada, cuidava dos doentes, ajudava na cozinha, limpava as janelas, lavava o chão. Se ficasse parada, seus olhos se enchiam de lágrimas: lem- branças tristes de morte e de dor. À noite, quando não conseguia resistir à solidão, “dançava sozinha, de uma cama para outra, ao som de suas próprias canções, aper- tando afetuosamente ao peito um homem imaginário” 454. Segundo as informações de Thomson 455, o nome de Frau Vitta era Laura Austerlitz e havia sido transportada para Auschwitz em março de 1944. Através de Laura, Levi tomou conhecimento do nome verdadeiro do pobre menino Hurbinek, Heinrich Iwan. O nome verdadeiro ou fictício não importava para Levi, porque todos, independente de sexo, idade e condi- ção social, tinham a tatuagem no braço esquerdo, as roupas esfarrapadas, a face des- figurada e os olhos tristes, por causa da intensidade da dor. As mudanças de nomes das personagens nas obras de Levi tinham a finalidade de não comprometer as pesso- as, contudo acabavam ressaltando que o nome, na situação em que elas viveram, na década de 40, pouco importava; todos os sobreviventes eram números, peças da en- grenagem, bichos domesticados.

3.3.5 Leonardo: fôra médico em Buna, e agora Levi o reencontrara no campo de Bo- gucice. Ele havia sido submetido a duros trabalhos braçais, passara por três seleções e sobrevivera. “Suportava com dificuldade a fadiga e o gelo, e fôra internado diversas vezes na enfermaria, por edemas nos pés, feridas infectadas e debilitação geral” 456. Era um homem de sorte, mas, além disso, apresentava “uma ilimitada capacidade de resignação, uma coragem silenciosa (...), uma paciência viril” 457. Era um homem de caráter, persistência e organizava todas as atividades no campo russo, tentando ajudar todos os doentes, mesmo diante do caos. O trabalho era duro, porque havia muitos

453 LEVI, P. A trégua. Trad. Marco Lucchesi. São Paulo: Companhia das Letras, 1997 p. 41. 454 LEVI, P. A trégua. Trad. Marco Lucchesi. São Paulo: Companhia das Letras, 1997 p. 41. 455 THOMSON, I. Primo Levi: a life. New York: Picador, 2004 p. 206.

456 LEVI, P. A trégua. Trad. Marco Lucchesi. São Paulo: Companhia das Letras, 1997 p. 95. 457 LEVI, P. A trégua. Trad. Marco Lucchesi. São Paulo: Companhia das Letras, 1997 p. 95-6.

doentes; e ele ainda tinha que controlar as epidemias de sarna e de piolho. Parafrase- ando Caetano Veloso na música Haiti: “Haiti é aqui, Haiti não é aqui”, Auschwitz é aqui, é no campo russo, é no hoje, poderá ser no futuro.

Assim como Levi, Leonardo tinha uma vontade de comer descontrolada, devido ao fato de ter passado muita fome no campo de concentração. A comida se tornava uma obsessão, uma compulsão. As conseqüências dos maus-tratos, da condi- ção de escravo e da fome crônica no campo de Monowitz acompanhariam sempre as suas vidas. As seqüelas da dor eram incuráveis.

“Ao longo das semanas, Levi desenvolveu uma extraordinária amizade com Leonardo” 458. Foi o médico que ajudou a salvar Levi quando este, mais uma vez, teve problemas de saúde. O químico, no início, não conseguia respirar livremen- te, depois teve febre todas as noites e dores intermináveis pelo corpo em decorrência de uma pleurite seca. Leonardo “fez, então, muito mais do que normalmente espera- mos de um médico, transformou-se num comerciante clandestino e num contraban- dista de remédios” 459, percorrendo dezenas de quilômetros de um endereço a outra à procura de sulfamidas e cálcio endovenoso. Encontrou o Dr. Gottlieb, “que possuía um consultório não muito legal, mas bem aparelhado” 460. O Dr. Gottlieb era envolto de mistérios e também já estivera em Auschwitz: “era um médico dermatologista, um judeu poliglota e excêntrico, chamado Adolf Einhorn” 461. Os dois médicos trouxe- ram de volta a saúde de Levi, depois de muitas tentativas de tratamento. Ainda duran- te a convalescença, Levi fez os seus 26 anos, o seu segundo aniversário longe da sua casa e da sua família. Leonardo seguiu viagem com Levi, sofreu, cansou, mas sempre teve confiança e a transmitia aos Outros, que estavam desanimados. Todos estavam cansados, com os pés inchados e chagados. Só viam pela frente ruínas, mas Leonardo acreditava em um final feliz. Leonardo era um amigo para se guardar no coração,

458 THOMSON, I. Primo Levi: a life. New York: Picador, 2004 p. 207.

459 LEVI, P. A trégua. Trad. Marco Lucchesi. São Paulo: Companhia das Letras, 1997 p. 156. 460 LEVI, P. A trégua. Trad. Marco Lucchesi. São Paulo: Companhia das Letras, 1997 p. 156. 461 THOMSON, I. Primo Levi: a life. New York: Picador, 2004 p. 215.

como Alberto, Lorenzo e Pikolo. Enfim, como fala a canção dos brasileiros Milton Nascimento e Fernando Brandt:

Amigo é coisa pra se guardar Debaixo de sete chaves, Dentro do coração, (...)

Amigo é coisa para se guardar No lado esquerdo do peito,

mesmo que o tempo e a distância, digam não, mesmo esquecendo a canção.

O que importa é ouvir a voz que vem do coração. Pois, seja o que vier,

venha o que vier

Qualquer dia amigo, eu volto a te encontrar Qualquer dia amigo, a gente vai se encontrar.