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CONHECIMENTO DE SI MESMO E DO OUTRO

3.1 Vítimas da opressão

A opressão fez muitas vítimas que deixaram o seu lado humano e torna- ram-se animais. Os presos lutavam com todas as forças para sobreviver; “era preciso nadar contra a correnteza, travar batalha a cada dia, a cada hora, contra o cansaço, a fome, o frio e a inércia resultantes disso; resistir aos inimigos e não ter pena dos ri- vais” 409. A rivalidade tornou os homens cruéis, desumanos, numa luta extenuada de

408 LEVI, P. É isto um homem? Trad. Luigi del Re.3. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000 p. 89. 409 LEVI, P. É isto um homem? Trad. Luigi del Re.3. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000 p. 92.

cada um contra todos. Vale citar alguns homens que tiveram atitudes e comportamen- tos imprevisíveis ou, ao contrário, “normais” em uma situação extrema:

3.1.1Schespschel: vivia no campo há quatro anos e viu morrer, ao seu redor, mui- tos amigos e parentes. Ele tinha “mulher, cinco filhos e um próspero negócio de se- las” 410, tudo, no entanto, desabou quando Hitler e o seu comando subiram ao poder e condenaram os judeus à morte; sua família evaporou-se em poucos segundos. No campo, Schespschel tornou-se subumano, roubava o que podia para conseguir um complemento de ração ou a amizade de algum kapo, tendo em vista conseguir benefí- cios extras. A sua vida estava perdida, e ele já não tinha mais sentimentos ou moral:

Quando a oportunidade chegou, não hesitou em deixar açoitar Mois- chl (que fora seu cúmplice num roubo na cozinha), na vã esperança de adquirir méritos perante o Chefe do Bloco e de candidatar-se à função de lavador de panelas411.

Uma simples oportunidade de subir de cargo fazia com que o preso deixas- se de ser amigo, entregando qualquer pessoa aos superiores, pois a luta era pela so- brevivência. As suas atitudes eram instintivas – “um instinto destrutivo, instinto de dominação ou vontade de poder” 412 – que o faziam um refém dos SS sem ele ter consciência do mal que estava fazendo a si mesmo e aos seus irmãos de raça. Seu comportamento era visto, por Freud, como sádico, estando relacionado ao desejo de humilhar, subjugar ou infligir dor. Nele, o estigma darwiniano se delineava com niti- dez, porque trazia um impulso pela sobrevivência tão forte que resistiria a tudo: a possível debilitação do organismo e ao trauma moral, provocado pela falência do va- lor da civilização. Para ele, não havia mais valor (no sentido humano), ética, moral, desde que conseguisse se “safar” com expedientes miúdos e algumas regalias.

410 LEVI, P. É isto um homem? Trad. Luigi del Re.3. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000 p. 94. 411 LEVI, P. É isto um homem? Trad. Luigi del Re.3. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000 p. 94.

412 NAGERA, H. Conceitos psicanalíticos básicos da Teoria dos Instintos. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix [sd] v.

3.1.2 Elias Lindzin: era um homem pequeno, com o número 12812, tatuado no braço. Ele era quase um anão, mas que se destacava pela sua robustez: “seu corpo serviria de modelo para um Hércules” 413. Por ter uma força descomunal, trabalhava dobrado e com afinco. O trabalho, para ele, era um prazer, uma satisfação. Ele era indestrutível, um homem de aço, produto do campo. “Resistiu à aniquilação interna porque é demente. Ele é, portanto, um sobrevivente: o mais apto, o espécime humano mais adequado a esta maneira de viver” 414. Para Levi, Elias era, ao mesmo tempo, um louco e um besta, que cumpria as ordens dos carrascos com perfeição. Como os demais, ele roubava, sumia freqüentemente sem ninguém saber para onde e voltava com os bolsos salientes. Também ele recebia visitas misteriosas e vivia na sua luta diária pela vida.

Poderíamos nos perguntar: quem é esse homem? um louco, incom- preensível e extra-humano, que veio parar no campo? Ou algo atávi- co, fora do nosso mundo atual, e mais apto às primordiais condições de vida no Campo? Ou, pelo contrário, um produto do Campo: o que todos nós acabaremos sendo, se não morrermos aqui, se o Campo não acabar antes de nós? 415

O questionamento de Levi, em relação ao colega de prisão, era sobre a apa- rente felicidade diante do trabalho, a facilidade de adaptação ao lugar, à brutalidade, ao dia-a-dia de morte e de dor. Seria ele humano? Ou já era um animal? Levi acredi- tava que Elias já era um produto do campo, um ser programado para cumprir as or- dens e desobedecer quando permitido. Elias só sabia viver no confinamento, execu- tando as suas tarefas de modo organizado e servilmente, caso saísse provavelmente iria parar em um presídio ou em um hospício. No campo, mantinha-se feliz; e talvez fosse essa a forma mais adequada de sobrevivência: não pensar, não ser homem, não amar, não ter amigos. A lei do campo era a da imoralidade, da loucura e do individua- lismo. E ele se adaptou a essa vida.

413 LEVI, P. É isto um homem? Trad. Luigi del Re.3. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000 p. 96. 414 LEVI, P. É isto um homem? Trad. Luigi del Re.3. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000 p. 98. 415 LEVI, P. É isto um homem? Trad. Luigi del Re.3. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000 p. 98.

3.1.3 Henri: tinha somente 22 anos e, desde que viu o seu irmão morrer na fábrica, durante o inverno, fechou-se dentro de um casulo. Ele “fechou-se em si mesmo como dentro de uma couraça e luta pela vida sem se descuidar” 416. A tristeza fez com que ele se tornasse um homem duro, frio, sem sentimentos, “desumanamente astucioso e incompreensível como a Serpente da Gênese” 417. Na Bíblia, nos primeiros capítulos do Gênese, no Velho Testamento, ocorre a criação do mundo. E a serpente destrói a mulher por ser astuta:

A serpente era o mais astuto de todos os animais do campo que Javé Deus havia feito (...). A serpente enganou a mulher e esta comeu o fruto proibido. Então Javé Deus disse para a serpente: “Por ter feito isso, você é maldita e entre todos os animais domésticos e entre todas as feras. Você se arrastará sobre o ventre e comerá pó todos os dias de sua vida” 418.

Henri estava sempre pronto para dar o “bote” como a serpente, para conse- guir algum benefício e se dar bem, mesmo que, para isso, tivesse que se rastejar ou passar por cima de outras pessoas. Suas feições eram sempre frias, construídas na frente do espelho, para não deixar transparecer nenhum sentimento ou emoção. Ele era aço, gelo, sombra como as construções e os comandantes de Auschwitz. Henri era dissimulado, sabendo tirar vantagens dos presos e dos kapos. Ele via o ser humano como um instrumento manipulável em suas mãos, subordinado a sua indústria pesso- al. Henri recorreu “a um oportunismo intransigente, tanto mais cínico quanto menos aparente” 419.

Segundo Ian Thomson420, o nome verdadeiro de Henri era Paul Steinberg, e ele se movia habilmente tanto em um círculo de lisonjeadores e protetores como de parasitas. Henri tentava descobrir as falhas dos alemães como, por exemplo, as situa- ções de homossexualidade, para, a partir daí, tirar proveitos próprios. Sua força psí- quica era indestrutível, bruta. A sua inteligência e a sua habilidade estavam voltadas

416 LEVI, P. É isto um homem? Trad. Luigi del Re.3. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000 p. 100. 417 LEVI, P. É isto um homem? Trad. Luigi del Re.3. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000 p. 101. 418 BÍBLIA SAGRADA. Edição Pastoral. São Paulo, 1990. (cap. 3: 1-15).

419 BARENGHI, M. A memória da ofensa. Trad. Maurício Santana Dias. Novos Estudos. Novembro de 2005 p. 185. 420 THOMSON, I. Primo Levi: a life. New York: Picador, 2004 p. 182-3.

para se fortalecer e vencer a qualquer custo, tendo, como Schespschel, comportamen- tos e instintos sádicos.