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Enquanto que a lógica dos conjuntos discursivos se propõe limitar muito bem seus objetos, a lógica das intensidades, ou a eco-lógica, leva em conta apenas o movimento, a intensi- dade dos processos evolutivos. Esses processos de se pôr a ser dizem respeito apenas a certos subconjuntos expressivos que romperam com seus encaixes totalizantes. Que apela outras intensidades a fim de compor outras configurações existen- ciais (GUATTARI, 1997, p. 28).

Bastide argumenta que, para entender o Candomblé de dentro, “[...] é necessário ir a esse povo, encontrá-lo, vê-lo como realmente é, entrar solida- riamente em seus sentidos para saber o que pensa” (BASTIDE, 2006, p. 20).

Santos (1986) atribui ao axé um sistema dinâmico de poder de realização por elementos simbólicos e materiais transmitidos a cada gira. O autor argu- menta: “Para que o terreiro possa ser e preencher suas funções, deve receber àse; o àse é plantado e em seguida transmitido a todos os elementos que in- tegram o terreiro” (SANTOS, 1986, p. 39). Plantado no terreiro, o àse se expande para todos os elementos: os orixás, os membros do terreiro e o asè dos antepassados.

Pelos relatos dos pretos velhos, o passado é articulado com o presente no imaginário do povo de santo. Toda palavra, para os povos de santo, está im- pregnada de asè, de poder, de ação. Para se transmitir asè, é necessário usar as palavras apropriadas, razão de a oralidade ter importância para os povos de santo: “Cada palavra proferida é única. Nasce, preenche sua função e desapa- rece” (SANTOS, 1986, p. 47).

O território perdido na diáspora africana é celebrado por meio da oralida- de dos cânticos e do mundo simbólico dos terreiros. Na gira, os povos de santo resgatam, através dos cânticos, seu universo referencial. Para os umbandistas, o sagrado está no mundo que nos cerca (Ayê), na Macaya ou nas florestas, matas e folhas. Diz um ditado popular iorubá: “Sem folha não existe orixá e sem orixá não existe folha”.

Texto (textus em latim) tem relação com tecer, que remete a tecido. Temos entrelaçamentos de palavras. Quais verbos habitam nosso tecido, nosso texto? Felizmente, alguns órgãos oficiais e pesquisas têm valorizado os povos de san- to. Pesquisa realizada pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome concluiu o seguinte:

Já é tempo de a sociedade brasileira, em sua totalidade múlti- pla e diversa, começar a se inspirar nas comunidades de santo para desenvolver um modo de vida que seja mais autossus- tentável, baseando a reprodução da vida no cultivo de plantas alimentícias e medicinais mais variadas e sem agrotóxicos, em plantações também de pequena e média escala, ao invés de generalizar para todo o país a escala gigantesca do agronegó- cio transnacional, respeitando e preservando o meio ambien- te onde elas nascem e crescem. Já é hora também de retornar- mos ao consumo de animais mais sadios, tal como já foi nos- sa prática antes da explosão da criação de rebanhos e de aves em grande escala industrial que praticamos hoje em dia, e de voltarmos a valorizar a variedade de espécies e de tipos de animais, incentivando uma escala de produção comunitária, ou não monopolista, de criação e consumo (BRASIL, 2011). A mesma pesquisa, ao se referir ao mundo do axé e dos orixás, declarou:

É necessário iniciar uma reflexão sobre o quão vigorosa é a economia do axé e o quanto ela carrega de possibilidades de geração de trabalho e renda para os pequenos produtores fa- miliares, artesãos, artífices, extrativistas, quilombolas e outras comunidades tradicionais, entre tantos agentes que fazem parte dessa ampla rede econômica de intercâmbio de produ- tos e serviços. A economia do axé funciona como uma série de nós de uma rede e, ao mesmo tempo, ela é ponto de ou- tros nós. Existe, assim, concretamente, um grande potencial dessa rede crescer e se expandir, tendo o Estado um papel importante a cumprir para que essa expansão esperada se torne realidade. Para cada domínio do mundo natural existe um orixá cuidando das formas de vida e exigindo dos seres humanos o mesmo devido cuidado, para que a continuidade da vida, com sua variedade, esteja assegurada para as gerações futuras, as quais poderão colocar, por meio de culto aos ori- xás, a geração presente como ancestrais para seus descenden- tes (BRASIL, 2011).

Essas experiências tecidas no campo oficial têm provocado e promovido, para os povos de santo, potência para estimular as discussões e problematizar

outras lógicas não antes autorizadas. Também têm promovido o compartilha- mento e a visibilidade de temáticas e de lógicas, como as do grupo de mulhe- res, de LGBTs, das pessoas de pele negra, da educação ambiental, dos direitos humanos, das comunidades tradicionais, mobilizadas por lógicas solidárias, através do debate e de ações para pensar uma eco-lógica sem dissociá-la do humano, de modo que fortaleçam e articulem as dimensões estética, ética e política com o ambiente e as práticas sociais.

A palavra pronunciada se faz som que procura atingir um interlocutor. No terreiro, é a palavra que conduz o axé ao movimento e à sua realização. O axé é o meio pelo qual os povos de santo transmitem seus valores civilizatórios, atra- vés da orixalidade que expressa seu conteúdo estético. Em Sato e Passos (2009, p. 44) encontramos ressonância no trabalho quando colaboram para reafirmar que “a cultura talvez seja a chave de compreensão dos dilemas socioambientais desde que dela emanem as escolhas históricas da civilização humana”.

Os autores encontram na arte uma das portas de entrada para discutir a dimensão ambiental, não pelo viés da tragédia e da catástrofe tão ao gosto da mídia oficial, “[...] mas pela beleza revolucionária em questionar os modelos de vida consumista a favor de ações mais sustentáveis [...]” (SATO; PASSOS, 2009, p. 45-46), visto que “[...] os dramáticos movimentos dos impactos am- bientais podem ser postos juntos com a sensibilidade do coração, e não so- mente a sabedoria do cérebro” (SATO; PASSOS, 2009, p. 44).

As questões levantadas pelos autores colaboraram para a inclusão da sensi- bilidade no ato de trafegar pelas lógicas contrárias às oficiais, pois trouxeram reflexões sobre o modo de viver dos povos de santo, a oralidade e o axé como acolhedores de outros processos civilizatórios. Eles relembram que “[...] a dife- rença entre a ciência e mitologia é que cada qual escolheu uma metalinguagem para contar suas histórias, com jeitos particulares, interessados e instrumentos próprios” (SATO; PASSOS, 2009, p. 53). Não há imagem sem olhar, nem olhar sem sentido, concluem.

Pelo axé que propagam em suas pesquisas, através do modo como compre- endem a cultura e o ambiente, intrinsecamente conectados e investidos do co- ração e da sensibilidade, os autores potencializam nossa proposta de continuar com as narrativas que nos inspiraram na pesquisa.