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Os saberes sustentáveis de outras lógicas

Não somente as espécies desaparecem, mas também as pa- lavras, as frases, os gestos de solidariedade humana. Tudo é feito no sentido de esmagar sob uma camada de silêncio as lutas de emancipação das mulheres e dos novos proletários que constituem os desempregados, os marginalizados, os imigrados (GUATTARI, 1997, p. 27).

Exu abre e fecha lógicas

O paradigma ocidental caracteriza-se prioritariamente por uma raciona- lidade com viés científico produzido a partir das revoluções do século XVI, primeiro nas ciências naturais, estendendo-se mais tarde, somente no século XIX, às ciências sociais.

Esse paradigma constituiu-se de características totalitárias ao submeter todo o conhecimento subordinado à dimensão da razão objetiva em detri- mento da dimensão da emoção e da subjetividade.

Consolidando-se no caráter racional todos os fenômenos, ocorre a pre- ponderância do discurso da ciência moderna em detrimento de outras formas de conhecimento e lógicas não pautadas por princípios epistemológicos e por regras metodológicas. Essa dimensão cartesiana do conhecimento funda o su- jeito moderno e sua maneira de ser, estar e pensar em si e no mundo. Guattari (1997, p. 32) expõe que a ecologia social e mental enfrenta a “introjeção do poder repressivo por parte dos oprimidos”. Esse modelo repressor é atualizado em cada instância do socius através da desterritorialização do poder capitalista que se expande na vida social, econômica, cultural e ambiental.

A ciência moderna desconfia das evidências da experiência imediata. Sua perspectiva e seu discurso convertem a Terra de modo passivo, eterno e rever- sível, atributos necessários, segundo essa racionalidade, para conhecê-la, con- trolá-la e dominá-la. A natureza se descola do ser humano pela via das ideias racionais e passa a ser objeto de manipulação, opressão e recurso.

As ideias racionais presidem a observação e a experimentação. Segundo essa ra- cionalidade, pode ascender um conhecimento mais profundo e rigoroso da natu- reza. Há o predomínio das ideias matemáticas que, ao fornecerem o instrumento privilegiado de análise e a lógica da investigação, adquirem valor inquestionável.

O campo do conhecimento da matemática colocada no centro epistemoló- gico e metodológico da relação do ser humano com a natureza se estende em duas consequências: a primeira considera que conhecer é quantificar pela me- dição, desqualificando as qualidades subjacentes ao objeto (dessa forma, tudo o que não for quantificável será cientificamente irrelevante); a segunda con- sequência é metodológica. O ato de conhecer só é possível pela redução dos fenômenos. É necessário, então, dividir e classificar os fenômenos para depois determinar as relações sistemáticas entre o que se separou. O mundo então adquire características mecânicas, que podem ser determinadas por meio das leis da física e da matemática e, após a sua decomposição, mostrar a verdade.

Essa ideia de mundo máquina e de verdade absoluta se transforma na gran- de hipótese da modernidade, que é traduzida nos discursos pelas ideias de progresso como precondição da transformação do real. O pensamento meca- nicista potencializa o conhecimento utilitário e funcional de todas as relações

do ser humano e da natureza, que reverbera menos pela capacidade de com- preensão do real do que pela capacidade de dominação dos saberes.

O período conhecido como Século das Luzes criou condições para fazer emergir as ciências sociais do século XIX. Fundada em ideias positivistas, pri- vilegiou duas formas de conhecimento: o científico, materializado nas disci- plinas formais da lógica e da matemática, e o das ciências empíricas, segundo o modelo mecanicista das ciências naturais. Contudo, para o filósofo Morin, a crise engendrada do paradigma cartesiano dominante foi resultado do grande avanço do conhecimento que esse modelo propiciou (MORIN, 2005d).

Aprofundar esse conhecimento é perceber a fragilidade dos pilares em que ele se fundou. A hipótese do determinismo mecanicista é inviabilizada, uma vez que a totalidade do real não se reduz à soma das partes; essa soma é maior e menor, como preconiza a teoria da complexidade (MORIN, 2005d).

O campo epistemológico e metodológico do conhecimento complexo excla- ma que o princípio da ordem se dá por meio de flutuações no campo de incer- tezas, em sistemas abertos, sistemas que funcionam na margem da estabilidade e que desencadeiam reações não lineares, conduzindo a um novo estado, pro- duzindo auto-organização numa situação de desequilíbrio (MORIN, 2005d).

Esse novo modo de perceber as relações na sua complexidade, a partir de outra racionalidade, vem contrapor toda herança da física clássica e abalar modos de compreensão da realidade. Características como a imprevisibilidade (ao invés do determinismo), a incerteza (ao invés do mecanicismo), a auto-or- ganização, a desordem (ao invés da ordem) e a invenção recuperam conceitos abandonados. Contudo, nem sempre predominou a ideia posta pela moderni- dade. Esta se constitui de um modo histórico e socialmente produzido.

Interessa-nos a história da produção do conhecimento humano e os modos como este se relacionou com a natureza, pois buscamos uma nova perspectiva epistêmica, ontológica e praxiológica para a pesquisa em educação ambiental. A partir da revisão bibliográfica realizada sobre algumas questões da África antiga (KI-ZERBO, 2010), pudemos perceber que outros modos de raciona- lidade promovem condições discursivas que ressoam à reflexão rica e diversa do tempo em que vivemos e do modo como conhecemos e nos constituímos, principalmente de como os povos africanos se relacionam entre si e com a cultura e a natureza.

As virtualidades e o modo complexo como os povos daquele continente se relacionam entre si e com a natureza engendram um conhecimento de modo transversal, sem dissociar as condições sociais e ambientais em relação aos seus contextos culturais. Contudo, essa racionalidade será alijada pela plataforma fixa produzida pelo edifício da ciência moderna que herdamos.

Compreendendo que outras tendências surgem a partir da experiência do ser humano com o conhecimento produzido, a precisão perseguida pelo mo- delo representacional que marca toda a história do pensamento moderno será abalada por narrativas não autorizadas, que resistem e criam zonas de abertura que atravessam o discurso pelas margens, nas fronteiras das experiências insti- tuídas e instituintes30.

Muitas experiências no campo da educação ambiental não se apoiam nem são afeitas aos discursos e às práticas instituídas. Nosso interesse crescia ao questionar as práticas que faziam aliança com uma dimensão nascida às mar- gens das existências infames para a desconstrução de slogans e clichês simplistas e reducionistas da complexa realidade. No processo da pesquisa, produzimos um diálogo no campo da educação ambiental complexa que se conjugava com outros espaços e lógicas, a fim de que outros mundos pudessem ser gestados longe das amarras dominantes.

Logo, fizemos composição com as orixalidades e a lógica dos povos de ter- reiro, mais especificamente com os que frequentam os terreiros da Umbanda, e pudemos, nessa trajetória, problematizar como a verdade-céu, postulada na ciência moderna demonstrativa, provocaria a verdade-raio mais próxima da ciência da criação e vice-versa. Algumas pistas surgiam para provocar, a partir da experiência dos povos de santo, nas giras, novos sentidos que desafiam os modos degradantes da crise socioambiental em que vivemos.

Deleuze contribui para pensar as linhas de forças que acionam dispositi- vos e que configuram linhas de naturezas diferentes. Sampaio e Guimarães, por exemplo, quando discutem acerca das narrativas “postas em circulação na cultura” sobre a sustentabilidade, consideram que um dos desafios que se coloca para a educação ambiental é a articulação dos dispositivos “[...] através dos quais se possam proliferar práticas não mercantis no cotidiano das nossas vidas, nem que para isso seja preciso rasgar a própria noção de sustentabilidade” (SAMPAIO; GUIMARÃES, 2012, p. 397). No trabalho de pesquisa, buscamos, através das práticas de resistência presentes nas ori- xalidades, as linhas de força31 que nos mobilizam e nos interpelam para

outros lugares ou lógicas.

30 Essa noção teve inspiração em leituras de textos da professora Célia Linhares, a qual consi- dera que as experiências instituintes e instituídas não portam uma redoma incomunicável, mas são ações políticas historicamente construídas.