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Uso da força em legítima defesa

11. Obrigações das empresas de segurança privada e dos seus funcionários

11.1. Uso da força em legítima defesa

11.1.1. Problematização

Em primeiro lugar, é necessário ter em conta que os funcionários de uma ESP a bordo de um navio não têm estatuto especial. São civis, tendo assim os mesmos deveres e obrigações de qualquer outro cidadão417. Não existindo nenhuma norma

internacional sobre o uso da força por um guarda privado em legítima defesa ou defesa de outros418, a fonte principal será a legislação penal de cada Estado419.

Ora, em termos gerais, constitui legítima defesa, o ato necessário e proporcional praticado por uma pessoa para proteger interesses juridicamente relevantes seus ou de terceiro contra agressão atual e ilícita420. O princípio da legítima defesa está

presente na maioria dos regimes jurídicos nacionais421.

Parece assim haver um entendimento geral de que os guardas privados poderão usar a força somente em caso de legítima defesa422, ficando com o ónus de demonstrar a

416 DUBNER et al., “On the Effectiveness…”, p. 1049.

417 CARBONE, “The Use of Private …”, p. 11; DUTTON, “Gunslinger on …”, p. 125–126; PRIDDY e CASEY-

MASLEN, “Counter-Piracy Operations …”, p. 844–845.

418 DUTTON, “Gunslinger on …”, p. 125; PETRIG, “The Use of Force …”, p. 681. RODDEN, WALSH III, “The

Legal Issues …”, p. 32.

419 PETRIG, “The Use of Force …”, p. 688.

420 MARIN, Jasenko et al., “Private Maritime Security Contractors and Use of Lethal Force in Maritime

Domain”, p. 198; PETRIG, “The Use of Force …”, p. 688.

421 Guia sobre RUF, p. 2.

422 HESPEN, Ilja Van, “Protecting Merchant Ships from Maritime Piracy by Privately Contracted Armed

Security Personnel: A Comparative Analysis of Flag State Legislation and Port and Coastal State Requirements”, p. 377; Petrig, “The Use of Force…”, p. 688.

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necessidade das medidas defensivas e assegurar que estas foram proporcionais à ameaça, tal como qualquer outro civil423.

Um dos problemas já referidos sobre a presença de ESP nos navios mercantes é o facto de haver uma maior probabilidade de uso de força excessiva424. Há quem

defenda também que a presença no navio de profissionais armados de ESP irá encorajar os piratas a serem mais violentos425. Outros têm a opinião de que a

presença destes seguranças a bordo pode realmente impedir os piratas de atacar os navios426, salientando-se que os próprios piratas já recorrem ao uso de armas como

lançadores de foguetes, armas automáticas e pistolas427.

A preocupação com a intensificação da violência pela presença de guardas armados a bordo é bem ilustrada pelos seguintes dois casos.

O primeiro é o caso do navio Almezaan, de bandeira do Panamá, onde, em março de 2010, foi registada a primeira morte de um pirata às mãos de guardas de uma ESP428. Os guardas atiraram contra os piratas, durante um ataque, resultando na

morte de um destes. No dia anterior, os guardas já tinham repelido dois ataques do mesmo gangue429. A ESP argumentou que se tratava de legítima defesa430, embora o

caso não tenha sido levado a tribunal.

O segundo exemplo é o caso Enrica Lexie. A 15 de Fevereiro de 2012, dois fuzileiros navais italianos que prestavam serviços de segurança governamentais431

no navio MV Enrica Lexie (um navio petroleiro que arvorava a bandeira italiana), alegadamente deram tiros e mataram dois pescadores indianos, que estavam a bordo do navio de bandeira indiana, St. Antony, confundindo-os com piratas432. Este

incidente decorreu a 20,5 milhas náuticas da costa da Índia, gerando discussão sobre

423 MARIN et. al. “Private Maritime …”, p. 198. 424 DUTTON, “Gunslinger on …”, p. 123.

425 “Tenth Report of Session 2010-12 - Piracy off the Coast of Somalia” (UK, 2012), § 27 DUTTON,

“Gunslinger on …”, p. 123.

426 “Tenth Report of Session 2010-12 - Piracy off the Coast of Somalia,” § 28. 427 DUBNER et al., “On the Effectiveness …”, p. 1054.

428 Idem, p. 1056.

429 LOUGH, Richard, “Somali Pirate Killed in Cargo Ship Hijack Shooting”. 430 DUBNER et al., “On the Effectiveness …”, p. 1056.

431 Vessel Protection Detail (VPD).

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o exercício de jurisdição sobre o incidente, entre a Índia e a Itália433. O processo está

ainda a decorrer no Tribunal Permanente de Arbitragem.

Por enquanto, não há registo de casos de ataques de piratas a navios com guardas privados a bordo que tenham resultado em danos humanos para os guardas ou para o resto da tripulação.

Em conclusão, o Direito, em geral, permite o uso da força como medida defensiva, apenas quando é absolutamente necessário e sirva para prevenir um dano igual ou maior do que a ameaça434. É difícil definir através de regulamentação o que constitui

excesso de uso de força, dependendo muito das circunstâncias de cada caso435.

11.1.2. Condições da legítima defesa contra ataques de pirataria

Na avaliação dos pressupostos do recurso à legítima defesa, importa ter em conta que os guardas privados estão armados e encontram-se num ambiente hostil, logo em condições diferentes das de um civil numa situação do quotidiano. Os guardas das ESP são civis com armas e, muitas vezes, obtiveram treino militar, sendo espectável que atuem de forma correspondente, afastando a ameaça antes de esta chegar ao navio436. Deste modo, será necessário incrementar o treino e a formação

dos guardas no sentido de desenvolver a função defensiva, em detrimento da ofensiva.

É necessário, ainda, ter em atenção o contexto em que estão inseridos. Nas áreas de alto risco, os guardas das ESP não são os únicos que têm uma posição defensiva (defesa própria, da tripulação, da carga e do navio) contra ataques de piratas e outros ofensores. Nestas áreas, há pescadores que têm consigo armas para se protegerem de potenciais ataques de piratas437. A mera presença destas armas num

navio de pesca, para sua defesa, não pode constituir justificação suficiente para o

433 Idem.

434 MARIN, et. al., “Private Maritime”, p. 198. 435 Idem, p. 195.

436 HOHENSTEIN, “Private Security …”, p. 10–11. 437 MARIN et al., “Private Maritime …”, p. 201.

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imediato uso de força letal, a não ser que haja uma razão forte para acreditar que constitui uma ameaça438.

Para além disso, o facto de estarem num contexto marítimo levanta novamente a questão de o navio poder estar em contato com várias jurisdições, logo com várias conceções diferentes sobre a legítima defesa439. Isto é, dependendo da situação, e da

localização do incidente, os guardas das ESP poderão ter a obrigação de respeitar a lei do Estado de bandeira, a lei territorial (se o navio se localizar no mar territorial de algum Estado) e até a lei da sua nacionalidade440. É pertinente considerar também

esta última, pois o Estado de nacionalidade tem jurisdição normativa sobre os seus nacionais onde quer que estes estejam e passa a ter jurisdição de aplicação e judicial se os nacionais se encontrarem neste Estado441. Assim sendo, os guardas nacionais

podem ser julgados pelo Estado da sua nacionalidade se este considerar que o mesmo usou a força fora dos parâmetros da legítima defesa consagrados por este Estado.

Alguns instrumentos de soft law sobre as ESP, que já foram referidos442, contêm

regras substanciais sobre o uso da força, ao mesmo tempo que indicam que esta deve ser consistente com o direito aplicável443. No geral, as regras destes

instrumentos referentes ao uso da força são muito similares.

Assim, quando um barco de potenciais atacantes é visto a seguir um navio, em primeiro lugar, os guardas devem fazer sinais para que o barco mude de percurso444.

Estes sinais podem ser auditivos (altifalantes, avisos verbais, dispositivos de sinalização acústica de longo alcance…) ou visuais (mostrar a presença, mostrar armas, lasers…)445. O soar do alarme do navio, para além de informar a tripulação

438 Idem.

439 RODDEN, WALSH III, “The Legal Issues…”, p. 32; CARBONE, “The Use of Private …” p. 11; PRIDDY,

CASEY-MASLEN, “Counter-Piracy Operations …”, p. 845.

440 PRIDDY, CASEY-MASLEN, “Counter-Piracy Operations…”, p. 844.

441 Aqui, o Estado de nacionalidade pode ser visto como “todos os outros estados” na perspetiva do DM,

Petrig, “Looking at the Montreux …”, p. 6, nota de rodapé n.º 32.

442 RUF, Guia sobre RUF e Contrato GUARDCON. 443 PETRIG, “The Use of Force …”, p. 689.

444 PRIDDY e CASEY-MASLEN, “Counterpiracy under …” p. 22.

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de que está a ser alvo de um ataque de piratas, também demonstra a qualquer atacante que o navio está ciente do potencial ataque e está a reagir446.

Se o navio de piratas continuar a seguir o navio mercante, este deve fazer tentativas de afastamento, como, por exemplo, aumentar a velocidade ou dirigir-se para uma rota longe do navio de piratas447.

Se estas tentativas falharem, pode-se recorrer aos tiros de aviso para o ar e para o mar e só depois para o motor do navio, tendo sempre em conta o princípio da necessidade448.

Se, ainda assim, o ataque continuar, os guardas poderão, então, recorrer ao uso da força, como último recurso, contra o navio e os piratas449. O principal objetivo dos

guardas é proteger a vida da tripulação, impedindo que os atacantes embarquem no navio. Para o efeito, devem usar o mínimo de força possível, de forma gradual e sem ultrapassar o que é estritamente necessário e razoável, com o mínimo de danos materiais e humanos450. O uso da força só pode ser feito sob legítima defesa própria

ou defesa de outros451.

Ainda assim, pode haver situações de iminência de ataque em que a fase de avisos pode ser ignorada, como, por exemplo, no caso de navio que carrega petróleo e que se depara com um navio de piratas prestes a disparar452. Aí poderá ser necessário

disparar primeiro453.

Estes instrumentos revelam, assim, a necessidade de articular as regras sobre o uso da força nos vários Estados envolvidos na operação, de modo a que os seguranças das ESP não tenham dificuldade em perceber o que é deles esperado454. Deixar para

os seguranças a interpretação das leis poderá levar ao seu não cumprimento e à

446 PRIDDY e CASEY-MASLEN, “Counterpiracy under …”, p. 22. 447 Idem.

448 TIDM, Caso M/V “Saiga”, n.º.2, 1.7.1999, § 156; Guia sobre RUF, § 7, f); RUF, Regra 102. 449 TIDM, Caso M/V “Saiga”, n.º 2, 1.7.1999, § 156; Guia sobre RUF, §. 7, g); RUF, Regra 103. 450 PRIDDY, CASEY-MASLEN, “Counterpiracy under…”, p. 22.

451 Guia sobre RUF, § 7, g); RUF, regra 103; Contrato GUARDCON, Parte II, secção 4, § 8, d). 452 PRIDDY, CASEY-MASLEN, “Counter-Piracy Operations …”, p. 848.

453 Idem.

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ocorrência de acidentes graves de teor internacional455. É necessário um plano claro,

conhecido por todos, tendo em conta as jurisdições de cada Estado que está em causa.

Infelizmente, perante uma situação em concreto, pode não ser tão claro se o uso da força é razoável e necessário.

Com a análise deste tipo de casos, consegue-se reconhecer a importância de preparar um plano claro e que sirva de padrão para o maior número de Estados possível, de forma a evitar situações de excesso de força e para que as ESP não tenham as dificuldades provenientes do contacto com várias jurisdições.

11.2. Apreensão de navios e entrega dos ofensores às autoridades