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CAPÍTULO 2 LEITURA EM MATO GROSSO: O DISCURSO CRÍTICO

2.2 Foco do discurso crítico voltado para o não-local

2.2.1 Formação da literatura nacional

No primeiro bloco, percebe-se que as obras eleitas pelos jornalistas para o exercício da crítica traziam à tona praticamente os mesmos assuntos que eram discutidos nas demais regiões brasileiras, notadamente após a independência política do Brasil. Para Antonio Candido162, este acontecimento político desencadeou no meio intelectual o

sentimento patriótico de oferecer ao Brasil uma literatura que revelasse adequadamente própria realidade, ou seja, uma literatura nacional, que fosse diversa, independente da portuguesa e que desse aos brasileiros um sentimento de libertação relativo à mãe-pátria, enfim, uma literatura que contribuísse com a tarefa da construção nacional.

Esta discussão percorreu praticamente todo o século XIX. No final dos anos 90, este era o assunto tratado no artigo “Literatura Nacional”, extraído de Tributo às Letras, pequeno jornal impresso em Cuiabá, em folha de cetim rosa, dedicado à imprensa cuiabana e ofertado ao jornalista de O Mato Grosso por Oscar Leal. Como forma de agradecimento ao autor, o periodista fez questão de transcrever um dos artigos, justamente aquele em que Oscar Leal chamava a atenção dos leitores para o fato de que pouco a pouco os “irmãos de além mar” iam reconhecendo que os brasileiros eram possuidores de uma literatura própria ou pelo menos de “grosso cabedal de elementos amplamente aproveitáveis”. Todavia, segundo Oscar Leal, o poeta português Pinheiro Chagas, não compartilhava desta idéia, pois em seus ensaios críticos dizia que “apesar dos muitos talentos que avultam na nossa antiga colônia americana, não se pode dizer que o Brasil possua uma literatura!” Em tom irritado, Oscar Leal conclui a matéria respondendo que Pinheiro Chagas possuía pouco conhecimento da nossa vida literária, pois desconhecia o 162 CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 6. ed., Belo Horizonte:

nativismo presente em Uruguai, de Basílio da Gama, em Timbiras, de Gonçalves Dias, em Caramuru, de Santa Rita Durão, no lirismo social de Castro Alves, no Guarani, de Alencar, nas obras de Bernardo Guimarães, autores, que segundo ele, podiam servir de exemplo para a velha Europa (O Mato Grosso – Cuiabá, 18/10/1891).

A propósito, os ataques de Pinheiro Chagas à literatura brasileira estampados no jornal de Mato Grosso eram assunto recorrente no mundo intelectual daquela época. Entre os mais conhecidos, encontra-se a crítica feita por ele à linguagem utilizada por José de Alencar para escrever Iracema, como a “falta de correção na linguagem portuguesa, ou antes a mania de tornar brasileiro uma língua diferente do velho português por meio de neologismos arrojados e injustificáveis e de insubordinações gramaticais”163, crítica que ele costumava estender aos escritores brasileiros em geral.

Os textos críticos também revelam preocupações dos jornalistas mato- grossenses com questões políticas nacionais como o problema da escravidão, que o Brasil ainda não havia resolvido. Ao comentar o poemeto “Escravidão”, de autoria de Silvestre de Lima, o jornalista de A Província de Mato Grosso revela que o autor solicitou-lhe que fizesse a “apreciação de seu importante livro” nas colunas daquele periódico. Alegando-se o “menos habilitado da Província” para tal exercício, promete não fazer uma crítica ou apreciação por não possuir as forças necessárias para tanto, mas dará “um pálido reflexo da impressão” que lhe causou tão importante trabalho, apenas para contentar os anseios do autor.

Assim como Oscar Leal, embora dez anos antes, o redator também se preocupa em fazer um rápido apanhado sobre o desenvolvimento “grandioso e sublime” da literatura brasileira. Ele opta por falar dos escritores jovens cheios de vigor, mas que o “sopro da gélida morte” tem vindo buscar. Cita os poetas românticos Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Junqueira Freire, Castro Alves, Casimiro de Abreu, Fagundes Varela e tantos outros “canoros e sublimes cantores”; lamenta, novamente, a morte prematura destes poetas que ainda poderiam oferecer muito à literatura brasileira. Todavia afirma que novos escritores, de igual ou superior talento, já estão produzindo poesias como o “vigoroso e fecundo talento do autor do Poemeto Escravidão”.

163 ALENCAR, José de. “Pósfácio”. Iracema (1. ed., 1865). Conferir: __________. Obra completa. Rio de

O crítico encanta-se com a linguagem de Silvestre de Lima, que ele diz ser possuidora de versos harmoniosos, estilo fluente e magistral, “com dicção cadenciosa”, prosseguindo com muitos e muitos outros elogios para, finalmente, discordar de algo. A principal discordância dele encontra-se numa questão de foro ideológico e não literário. A juventude do poeta, com seus “ardentes vôos juvenis”, ainda segundo o mesmo crítico, é que seria a responsável por ele ter tomado partido contrário “às verdades essenciais da natureza humana”. O jornalista se sente assustado com a promessa de vingança do poeta que diz em seus versos que promete “vingar a raça escravizada”. O crítico sai em defesa dos fazendeiros alegando que os mato-grossenses não costumavam praticar esse tipo de abuso contra os escravos. Enfim, questões políticas, sociais e econômicas sobre a escravidão são extensamente aventadas, com o jornalista-crítico defendendo a abolição sob o ponto de vista dos senhores donos dos escravos. Depois de severas críticas sobre o posicionamento sócio-político de Silvestre de Lima, o jornalista volta a elogiá-lo, transcrevendo algumas estrofes do poema, sempre fazendo muitos elogios, para finalmente concluir destacando a importância de Silvestre de Lima para a literatura nacional: “Cumprimentamos cordialmente o talentoso autor do poemeto ‘A Escravidão’ e lhe ambicionamos um porvir cheio de vida para o engrandecimento da literatura pátria” (A Província de Mato Grosso – Cuiabá, 13/12/1881).

A literatura pátria também se encontrava presente nos jornais do interior do Mato Grosso por meio da publicação de poemas, como o do baiano Castro Alves164. Um

deles, “Deusa Incruenta”, ganhou espaço em A Opinião, antecedido de alguns comentários críticos. O jornalista chama atenção dos leitores para a genialidade do poeta e para o alto nível do poema que era praticamente desconhecido do público, visto que “jazeu inédito” por muito tempo. Valendo-se de uma linguagem um pouco mais técnica, o crítico faz comentários sobre a extraordinária imaginação do poeta e sua capacidade de criar uma variedade de imagens sem se descuidar “da mais perfeita e esmerada metrificação”. Portanto, o jornalista, dá mostras de ser conhecedor de preceitos essenciais da poética (A Opinião – Corumbá, 01/01/1878).

164 A publicação de poemas nos jornais mato-grossenses era muito comum. Qualquer tipo de acontecimento

de ordem política, histórica, social, ou mesmo sentimental podia ser considerado um bom motivo para que ela ocorresse. Os autores locais, via de regra, costumavam assinar seus poemas apenas com iniciais. Havia também a divulgação da obra de outros poetas nacionais além de Castro Alves, escolhido pelo fato deste poema trazer comentários críticos.

Um acontecimento ocorrido no mundo das letras que ganhou dimensão nacional e foi também intensamente vivido nos jornais de Mato Grosso foi a morte do escritor cearense José de Alencar, ocorrida em 12 de dezembro de 1877. Com um atraso de quase dois meses, em 03 de fevereiro de 1878, a cidade de Corumbá prestou uma homenagem póstuma ao escrito por meio da publicação em A Opinião de um caderno especial dedicado exclusivamente a este assunto. A matéria tem início com o comunicado do “passamento de nosso mais ilustre homem de letras”, seguida pela narração detalhada dos acontecimentos que circundaram o velório e sepultamento. Também foram lembrados dados biográficos e algumas impressões que a leitura de certas obras de Alencar havia causado no jornalista quando ainda era um menino. No mesmo número, também há uma seleção das principais notícias sobre o assunto publicadas no Jornal do Comércio de 13 e 14 de dezembro de 1877, dia que sucedeu a morte do poeta. Houve ainda, a transcrição na íntegra de discursos proferidos no túmulo do escritor pelo Deputado Taunay, por Duque Estrada Teixeira e outros. No mês de março, as homenagens continuaram com a publicação de artigos de vários intelectuais da época. Mais de um ano após a morte do escritor, elas ainda persistiam em textos como de J. Tavares, em outro jornal, O Povo – Cuiabá, 29/05/1879. Todos estes tributos prestados ao autor de Iracema confirmam a idéia de que ele foi um escritor que teve seu talento reconhecido, ainda em vida, não só na capital do país como também no interior.

O artigo de Oscar Leal publicado em 1891, portanto quase setenta anos após a Independência do Brasil, bem como os outros das décadas de 70 e 80 levam a pensar que as questões relativas à autonomia literária e à formação de uma literatura genuinamente brasileira discutidas intensamente, ainda não haviam sido esgotadas, visto que em algumas regiões, como Mato Grosso, por exemplo, elas ainda ganhavam destaque na mídia, inclusive pelas mãos de um brasileiro que teve grande influência portuguesa em sua formação e viveu por algum tempo em Cuiabá.165

165 A preocupação dos mato-grossenses de participar da discussão da formação de uma literatura nacional

brasileira ganha reforço se se levar em conta que a quase totalidade dos textos críticos sobre ficção encontrados nos jornais elege o romance nacional como matéria.