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Visto ser o enredo o elemento estrutural determinante da temporalidade da personagem; ao mesmo tempo em que são as ações das personagens os fatores preponderantes para a construção do enredo, a vinculação indissociável entre ambos os componentes da narrativa fica assim demonstrada, como Candido(2000) assinala:

[...] quando pensamos no enredo, pensamos simultaneamente nas personagens; quando pensamos nestas, pensamos simultaneamente na vida que vivem — traçada conforme uma certa duração temporal, referida a determinadas condições de ambiente. O enredo existe através das personagens; as personagens vivem no enredo”(p.53).

Por conseguinte, o conhecimento do “todo temporal do herói” — como Bakhtin o diria — a sua atualidade relacionada a um passado e a um porvir, é um aspecto indispensável à criação estética, pois é a partir dessa consciência do autor, enquanto significante da alteridade, que se tece o enredo e, dentro dele, a consistência dramática da personagem.

A realização futura não é para mim uma continuação orgânica, um crescimento de meu passado e de meu presente e o coroamento deles, ela representa, pelo contrário, a eliminação e o cancelamento deles, da mesma maneira que a graça não é motivo de um crescimento orgânico da natureza pecadora do homem. O que no outro é aperfeiçoamento (categoria estética), em mim é novo nascimento (Bakhtin:2000, p.136).

Uma evidência, em Clarice Lispector, desta consciência do autor, em relação ao acabamento temporal da personagem, encontra-se em A hora da estrela (1977), numa referência do narrador a Olímpico, namorado de Macabéa. “Tinha o tom cantado e o palavreado seboso, próprio para quem abre a boca e fala pedindo e ordenando os direitos do homem. No futuro, que eu não digo nesta história, não é que ele terminou mesmo deputado? E obrigando os outros a chamarem-no de doutor” (p.46). Veja-se que, embora o enredo não abranja determinados acontecimentos futuros, o narrador está consciente de tais desdobramentos, dada a sua posição exotópica privilegiada em relação à personagem. A própria morte de Macabéa, apesar de o narrador afirmar que não sabe se ocorrerá, na verdade não pode ser evitada, na medida em que tal acontecimento pertence ao futuro incontornável da personagem. A exotopia, portanto, pressupõe, por parte daquele que concebe o enredo, um comprometimento com a lógica imposta pela própria narrativa, da qual não é possível esquivar-se. “Eu poderia deixá-la na rua e simplesmente não acabar a história. Mas não: irei até onde o ar termina, irei até onde a grande ventania se solta uivando, irei até onde o vácuo faz uma curva, irei até onde meu fôlego me levar” (HE, p.83).

Outra categoria estrutural imprescindível à configuração da estética verbal, segundo Bakhtin, é o “todo espacial do herói”, como o teórico a designa. Tezza (1999), nosso condutor pelas linhas Bakhtinianas, a propósito desta postulação, ressalta que “Para Bakhtin, há dois modos de representação verbal do espaço, relativamente ao personagem: de dentro do herói, temos seu horizonte; de fora, seu ambiente” (p.294). Também neste caso está evidenciado o papel inalienável do autor, que é o Outro, de cujo ponto de vista é possível alcançar a visão dessa espacialidade absoluta, em que o ambiente está inserido como um dos elementos.

Minha relação com meu horizonte nunca é uma relação acabada; na minha vida real, meu horizonte está aberto e perpetuamente inacabado; (...) assim, o princípio de

ordenação e acabamento da minha vida jamais pode nascer de minha própria consciência. Eu preciso de uma posição espacial fora de mim, alguém transcendente a mim, o outro, ou, para o herói, o autor, que me dê unidade e acabamento (Idem).

Também o aspecto físico da personagem é considerado no seu todo espacial, pois é essa imagem externa o componente que de fato existe no espaço e faz o espaço existir significativamente, como integrante de um discurso.

Nas palavras de Bakhtin,

Uma importante particularidade da visão exterior, plástico-pictural, refere-se à percepção das fronteiras exteriores que configuram o homem. Essa percepção é indissociável do aspecto físico: registra uma relação com o homem exterior que engloba e circunscreve o homem no mundo” (2000, p.55).

Pelo viés semiótico, Landowski (2002) chega a constatação semelhante, ao ponderar que “Semioticamente falando, é coisa já entendida, não há espaço-tempo como referente puro ou como objeto dado a priori. Só há sujeitos que, através das modalidades variáveis da apreensão de seu ‘aqui-agora’, constroem as condições de sua relação consigo mesmos, como ‘eu’ (p.71).

Vejamos agora: G.H., em sua tentativa de compreender os eventos que tanto a transtornaram, ao longo das horas passadas no quarto que fora de Janair, procura, por meio da palavra, dar uma forma ao que lhe aconteceu. “E que minha luta contra essa desintegração está sendo esta: a de tentar agora dar-lhe uma forma? Uma forma contorna o caos, uma forma dá construção à substância amorfa” (PSGH, p.14), reflete a personagem sobre o sentido de transformar em texto as suas inquietações. Portanto, de certa maneira, existe um dimensionamento estético no projeto da personagem- narradora: “Vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é relatável. Viver não é vivível. Terei que criar sobre a vida. E sem mentir. Criar sim, mentir não. Criar não é imaginação, é correr o grande risco de se ter a realidade. Entender é uma criação, meu único modo”( PSGH, p.21). Neste sentido, os outros, transferidos para as categorias do texto, passariam a ser personagens da narrativa que, em última análise, é a mesma da qual somos os leitores. Entretanto, como assinalamos anteriormente, esses Outros não são nomeados e nem possuem uma dimensão corporal, pois não são constituídos a

partir de um todo temporal ou espacial, plenamente visualizados pela personagem- narradora. O comprometimento de sua posição exotópica, coincidente com os sujeitos circundantes de G.H, impede a resolução do acabamento estético que os tornaria personagens, no sentido estrito da palavra. Como seres de linguagem, portanto, estão relegados à mesma inexpressividade a que estavam sujeitos como indivíduos socialmente contextualizados. Por outro lado, para a própria G.H., inusitadamente, esta é a posição em que Janair não se deixa perdurar. A empregada, integrante de um outro espaço social, correspondente ao espaço físico a que tem direito no interior do apartamento de G.H., assume uma significância existencial, necessariamente transposta para os domínios do texto, como evidenciam os exemplos a seguir.