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Em A paixão segundo G.H. o deslocamento do sujeito, a partir do registro autográfico, pode ser verificado mais claramente desde o momento em que a narradora deixa a mesa do café em que se “atardava” e se dirige ao quarto de Janair. Inicia-se, neste ponto, o discurso de representação da narradora. “Levantei-me enfim da mesa do café, essa mulher” (PSGH, p.33). A ambigüidade evidenciada na frase citada, em que o verbo reflexivo em 1ª pessoa se liga simultaneamente a um “eu” e a um segundo sujeito designado pelo termo “essa mulher”, expressa a condição existencial desse indivíduo contraditoriamente dividido entre a pessoa que ainda é e a outra que passou a ser. A consciência de tal dicotomia, por parte da narradora, encontra-se expressa no discurso que se justifica pela necessidade de compreender o processo de despersonalização no qual se acha envolvida: “Como explicar, senão que estava acontecendo o que não entendo. O que seria essa mulher que sou? o que acontecia a um G.H. no couro da valise?” (PSGH, p.44). Perceba-se que as frases interrogativas não excluem a convicção da narradora de ainda ser a mesma pessoa do dia anterior, apesar da transformação ocorrida durante as horas que se seguiram. Por isso é tão imprescindível a construção em si mesma, por meio da linguagem, de um outro eu capaz de elucidar o mistério em que passou a se constituir: “O que me acontecia? Nunca saberei entender mas há de haver quem entenda. E é em mim que tenho de criar esse alguém que entenderá” (PSGH, p.44).

A referência a si própria como um outro se repete continuamente no discurso de G.H., na medida em que a narrativa acompanha os passos condutores da narradora rumo ao oposto das certezas que até então a haviam sustentado. Diante da barata, pronta para desferir sobre a inimiga o golpe que a prenderia pela cintura, G.H. mais ainda se mostra consciente de estar próxima à passagem da “vida entre aspas”, a que estava habituada, para outro plano ontológico desconhecido, predominantemente intuitivo; noutros termos, a personagem abandona o sentido paródico em que a

existência se resumia, para aventurar-se no exercício de sua individuação, em que a sensação predominante remete à idéia de um ciclo que se encerra enquanto um outro se inicia: “E estremeci de extremo gozo como se enfim eu estivesse atentando à grandeza de um instinto que era ruim, total e infinitamente doce — como se enfim eu experimentasse, e em mim mesma, uma grandeza maior do que eu” (PSGH, p.53). A linguagem paradoxal alude à fusão entre sensações díspares que complementam a totalidade ontológica para a qual a narradora desperta. Esta utilização recorrente de imagens antitéticas na obra de Lispector, como observa Olga de Sá, é característico de seu estilo “cheio de estranhezas, de paradoxos, de expressões que, parecendo formular evidências, manifestam a face chocante do óbvio” (SÁ, Olga de.: 2000, p.144). De fato, é a partir de uma ocorrência banal, como G.H. diante da barata, que eclode, no texto, o movimento pelo qual a imanência do ser se sobrepõe ao esforço contínuo de transcendência, a que até então a personagem se limitara: “(...) pela primeira vez eu estava sendo a desconhecida que eu era” (PSGH, p.53).

Neste momento da narrativa, tudo o que acontece interiormente com G.H. se passa num nível semântico incoativo; tudo se refere à inauguração de um novo indivíduo, de uma escatologia particularizada na personagem, que a leva ao sentido do descortínio metafísico.

Toda uma vida de atenção — há quinze séculos eu não lutava, há quinze séculos eu não matava, há quinze séculos eu não morria — toda uma vida de atenção acuada reunia-se agora em mim e batia como um sino mudo cujas vibrações eu não precisava ouvir, eu as reconhecia. Como se pela primeira vez enfim eu estivesse ao nível da natureza (...) Até então eu nunca fora dona de meus poderes — poderes que eu não entendia nem queria entender, mas a vida em mim os havia retido para que um dia enfim desabrochasse essa matéria desconhecida e feliz e inconsciente que era finalmente: eu! Eu, o que quer que seja (p.53).

O discurso reiterativo reforça seguidamente a referência de G.H. como um alguém que se encontra distante daquela que escreve, mas que continua presente no texto.

Essa mulher calma que eu sempre fora, ela enlouquecera de prazer? Com os olhos ainda fechados eu tremia de júbilo. Ter matado — era tão maior que eu, era da altura daquele quarto indelimitado. Ter matado abria a secura das areias do quarto até a umidade, enfim, enfim, como se eu tivesse cavado com dedos duros e ávidos até encontrar em mim um fio bebível de vida que era o de uma morte (PSGH, p.54).

O elemento digressivo, presente em certos momentos do discurso, torna ainda mais perceptível a presença da autora G.H., consciente de que a expectativa de destinatário, criada pelo seu texto, não inclui a possibilidade de um receptor passivo, incapaz de contribuir com a construção significativa da enunciação:

Ah, como estou cansada. Meu desejo agora seria o de interromper tudo isto e inserir neste difícil relato, por pura diversão e repouso, uma história ótima que ouvi um dia desses sobre o motivo por que um casal se separou. Ah, conheço tantas histórias interessantes. E também poderia, para descansar, falar na tragédia. Conheço tragédias” (PSGH, p.81).

Ao mesmo tempo, como o trecho citado também explicita, a narradora reconhece as dificuldades impostas pelo discurso e o esforço necessário para seguir em frente, visto que, nos termos de Eco (2004), ao texto presente não basta um “autor empírico”, isto é, não é suficiente um sujeito enunciador identificado simplesmente com a superficialidade dos fatos: é preciso que G.H. se converta em “Autor-Modelo”, capaz de conceber estratégias textuais que a aproximem da complexidade de sua experiência.

Por fim, queremos nos referir aos procedimentos encontrados na narrativa, por meio dos quais o texto amplifica sua dimensão axiológica, visto ser característico do texto autoral, como o concebe Foucault, o seu comprometimento com questões humanas mais complexas, mesmo quando o emissor adota suas afecções, volições ou conjunturas pessoais como ponto de partida.