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Formas analíticas do futuro do pretérito

1.Diversas abordagens sobre o tempo futuro

3. Formas verbais futuras nas CSM

3.1 Formas analíticas

3.1.2 Formas analíticas do futuro do pretérito

Em relação ao futuro do pretérito, foram encontradas as duas posições, verbo auxiliar antes do principal (ya perder), como exemplificado em (3.16), no qual o verbo aver (ou ir) está conjugado no pretérito imperfeito e vem antes de um verbo no infinitivo; ou verbo auxiliar depois do infinitivo, e nunca ligados por preposição, embora a presença do verbo auxiliar depois do verbo no infinitivo tenha ocorrido apenas três vezes - exemplos (3.17) e (3.18).

(3.16)

E ao gran son que a madeira fez veron as gentes logo dessa vez, e viron o demo mais negro ca pez

fogir da ygreja u ss' ya perder. (CSM 74, v.45-48)

(3.17)

fez seu amigo chamar,

que llo contar ya. (CSM, 94, v.115)

(3.18)

Mais aquel dia que sayr | avia sabad’ era,

e foi missa oyr enton, | ca tal costum’ ouvera (CSM 237, v. 34-35)

Como já foi mostrado na seção 1, o aparecimento do h no verbo aver é determinação gráfica recente; nos dados, não há qualquer ocorrência do verbo aver com h.28 Em relação ao futuro do presente, esse fato não resulta em nenhum problema, porém, para o futuro do pretérito, isso pode ocasionar dificuldades de interpretação já

28 Segundo Massini-Cagliari (1998, p. 165), a letra H, em PA, assume três funções diferentes: a)

pode ser colocada após uma consoante para modificar o seu ponto de articulação (exemplos:

chus, manselinha); b) pode funcionar como letra muda (exemplo: he – verbo seer, 3ª pessoa do

singular, Presente do Indicativo; no corpus considerado, a letra H com esta função ainda não havia se estendido à representação do verbo aver); c) pode ainda representar o som /i/, quando precedendo uma vogal, em ditongos crescentes (mha) e o som /Ú/ quando precedido e seguido de vogal (gaahades).

que o verbo aver sem h, nas formas contraídas do pretérito imperfeito do indicativo, é homógrafo e homófono ao verbo ir no mesmo tempo-modo.

Esta dificuldade de determinação do auxiliar (se aver ou ir) que se combina com o infinitivo para formar o futuro do pretérito (ver discussão deste assunto nesta mesma seção, adiante) acarreta uma outra dificuldade de análise: a distinção entre formas do futuro do pretérito e locuções verbais constituídas do verbo ir conjugado no pretérito imperfeito do indicativo, complementado por um infinitivo. Há contextos, como o do exemplo (3.19), em que é difícil de saber se temos nesta locução verbal a expressão de um tempo do pretérito imperfeito ou do futuro do pretérito.

(3.19)

E con tӁaces a yan fillar, mas per ren non lla podian tirar

nen con baesta que yan armar; (CSM 126, v.15-17)

Entretanto há momentos em que o sentido geral do texto no qual essa forma verbal está inserida determina qual o tempo verbal, como no exemplo (3.20), em que percebemos claramente o uso do pretérito imperfeito, pois o contexto nos indica que é uma ação rotineira do clérigo no passado, que sempre ia dizer louvores a Santa Maria. Portanto, o contexto analisado para podermos definir que tempo verbal temos nesses trechos é o semântico: é o sentido da frase que nos leva a classificar uma forma verbal como conjugada no pretérito imperfeito ou no futuro do pretérito.

(3.20)

Dest' un mui maravilloso miragre vos contarey, que fez, e mui piadoso, a Madre do alto Rei

por un crerigo, que foran a furt' ereges prender

Um fato interessante de se apontar em relação a essa dúvida entre futuro do pretérito e pretérito imperfeito é a disposição dos verbos no enunciado (ordem). No exemplo (3.19), auxiliar e infinitivo aparecem contíguos; já no exemplo (3.20) não há contigüidade. Em todos os dados de nosso corpus em que consideramos a locução como forma do futuro do pretérito os verbos estavam contíguos (com exceção dos casos de mesóclise de pronomes clíticos). A contigüidade do auxiliar com o infinitivo pode ser uma evidência a favor da classificação dessa forma como futuro do pretérito, em oposição a casos de pretérito imperfeito + infinitivo. De fato, neste trabalho, só foram considerados como dados quantificáveis (isto é, como formas do futuro do pretérito) os verbos em que era perfeitamente possível pelo contexto, por uma análise semântica, classificar essas formas como futuras; em caso contrário, os dados não eram computados em nosso levantamento quantitativo.

A maior parte dos gramáticos históricos e estudiosos do período arcaico da Língua Portuguesa, como Câmara Jr. (1975), Coutinho (1971), Elia (1979), Huber (1986[1933]), Nunes (1969), Said Ali (1966), Silva Neto (1952) e Williams (1973[1938]), afirma que o verbo auxiliar na composição do futuro do pretérito ou condicional era o verbo aver conjugado no pretérito imperfeito do indicativo.

Silva Neto (1952) e Coutinho (1971) acrescentam que o verbo habere do latim passou por grandes alterações pelo seu uso constante como auxiliar, tanto proclítico quanto enclítico. Coutinho (1971, p.277) ainda acrescenta a seguinte informação sobre a modificação por que passou esse verbo no condicional:

Na composição, as formas do imperfeito de habere muito se modificaram. Por dissimulação, habebam, habebas, etc. reduziram-se a *abem, *abéas, etc. cujo grupo átono ab- caiu do mesmo modo que no futuro. Ficou destarte o imperfeito reduzido a -*éam, -*éas, -*éat, -*éamus, -*éatis, -*éant, que se transformaram em -ia, -ias, -ia, -íamos, -íeis, -íam.

Said Ali (1966, p. 76) desenvolve a conjugação do verbo aver no pretérito imperfeito e, logo após a forma hia29 (primeira pessoa do singular desse tempo), o autor coloca entre parênteses a informação de que essa forma é a contração de havia.

Williams (1973[1938], p. 212) afirma que o condicional formou-se como o futuro do presente do indicativo, mas usando como auxiliar o imperfeito do indicativo do verbo haver menos o elemento hav-. Nunes (1969, p. 208) explica mais detalhadamente essa redução do verbo aver:

Devido certamente ao seu freqüente emprego como auxiliar, o que o tornava proclítico, sofreu este verbo grande contracção, que sem dúvida ascende à língua vulgar, não só no presente como no imperfeito do indicativo, ficando em ambos os tempos reduzido apenas à vogal tónica e desinências que se lhe seguiam, só na primeira pessoa do presente do indicativo se salvou a mais a semi- vogal, por ter sido atraída pela tónica.

Desta maneira, a forma da 3ª pessoa do singular do verbo aver no pretérito imperfeito do indicativo, avia, contraída e usada como auxiliar, torna-se ia, homófona à forma da 3ª pessoa do singular do verbo ir no pretérito imperfeito do indicativo, também ia.

Dada a homofonia entre as formas contraídas do verbo aver no pretérito imperfeito do indicativo com as formas do verbo ir nesse mesmo tempo, é, portanto, difícil de afirmar com toda a certeza que o auxiliar utilizado em todos os exemplos retirados das cantigas em relação à forma analítica seja realmente o verbo aver. Pode-se interpretar que o auxiliar é o verbo ir, conjugado no pretérito imperfeito do indicativo. Cagliari (1999, p. 64) é um dos poucos autores que afirmam que a terminação ia pode ser uma forma do verbo aver ou do verbo ir.

29 Said Ali (1966, p. 76) representa a forma contraída do pretérito imperfeito com h. Como

vimos na p. 80 desta seção e também na seção 1 deste trabalho, a letra h, na representação ortográfica do verbo aver, é recente, e em nossos dados não foi encontrado nenhum caso com essa ortografia.

O quadro abaixo mostra essa coincidência entre os verbos:

Forma contracta do verbo aver Verbo ir

ia ia ias ias ia ia íamos iamos íades iades ían ian

Quadro 3.1. Forma contracta do verbo aver homófona ao verbo ir no pretérito imperfeito do indicativo30

Embora todos os gramáticos históricos apontem o auxiliar aver como origem da forma do futuro do pretérito, os filólogos que trabalham com edições de textos não costumam listar as formas contractas do verbo aver entre as ocorrências que mapeiam nos corpora com que trabalham: por exemplo, Maia (1997), Mattos e Silva (1989) e Cintra (1984), que trabalham com textos notariais, e Ramos (1985), que analisam cantigas medievais profanas de amigo e de amor, não registram essas formas, embora seus corpora contemplem formas de futuro do pretérito (onde essas formas contraídas do verbo aver apareceriam). Também o Dicionário de Verbos Portugueses do século 13 organizado por Xavier, Vicente e Crispim (1999) não lista formas contraídas do verbo aver.

Na época do PA, por não poderem ser encontradas as formas contraídas de aver no pretérito imperfeito isoladamente e por estas coincidirem com as formas do verbo ir, pode-se hipotetizar que talvez já não houvesse mais consciência da origem histórica do auxiliar (aver), confundido sincronicamente com ir. Talvez, naquela época, enunciados

30 Fonte de conjugação desses verbos: Câmara Jr. (1975), Coutinho (1971), Elia (1979), Huber

como os do exemplo (3.18) (apresentado anteriormente), em que o auxiliar aver aparece desenvolvido, fossem já sentidos como arcaicos.