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Formas de organização da produção como estratégias de reprodução

4. As estratégias de reprodução nos assentamentos rurais

4.1. Formas de organização da produção como estratégias de reprodução

A agricultura familiar caracteriza-se pela estreita relação entre a família e a produção. Esta relação faz da propriedade familiar uma unidade complexa, na qual a exploração agrícola e a moradia são interdependentes (KAUTSKI, 1972). Portanto, seu entendimento não é possível unicamente através da análise econômica.

A capacidade de apropriação e de desenvolvimento dos meios de produção na agricultura familiar difere sensivelmente de uma unidade produtiva para outra. Sua reprodução decorre de fatores familiares e de fatores de dependência que englobam os valores, o projeto de vida e as limitações sócio-econômicas, políticas e ambientais. Em conseqüência, como assinala Lamarche (1997), têm-se na agricultura familiar diferentes modelos de funcionamento, bem como uma diferenciação de classes sociais dentro destes modelos.

As diferentes estratégias de reprodução implementadas pelos pequenos agricultores são responsáveis pela manutenção, reposição e transmissão do capital social de uma geração à outra, como é expresso por Plein e Schneider (2003, p.65) na passagem que segue:

A noção de estratégia de reprodução é essencial na análise da agricultura familiar porque ela serve para explicar como e porque a forma familiar de produção conseguiu se reproduzir, tanto durante o período denominado de modo de vida colonial como atualmente. O que se percebe, é que esses agricultores sempre utilizaram determinados recursos, alternativas, mecanismos. Enfim, determinadas estratégias, tais como as migrações, a busca de atividades não-agrícolas, inserção nas agroindústrias, reconversão produtiva, entre outras, com vistas a assegurar a sua sobrevivência. As estratégias de produção são, portanto, um meio de assegurar a sobrevivência do grupo familiar e da pequena propriedade. Constituem-se em uma forma de constante produção dos elementos necessários à reprodução (FAUSTO NETO, 1982).

Dentre estas estratégias possuem especial destaque as formas de organização da produção e do trabalho. As diferentes formas de organização da

produção no interior da unidade produtiva são determinadas pela lógica familiar e pelo grau de dependência externa, e isso se reflete na auto-exploração da família. Nos assentamentos rurais as estratégias de reprodução se revestem de especificidades. Muito embora a política de assentamentos rurais represente uma oportunidade de reinserção dos sem-terras no sistema econômico, esta é dificultada pela ausência de políticas específicas para o segmento familiar, em especial para os que ingressam nos assentamentos, via de regra, descapitalizados e sem bens materiais.

Como os recursos creditícios destinados aos assentamentos são escassos, e como a renda auferida com a venda da produção agropecuária normalmente é baixa, no intuito de aumentá-la, os assentados aderem à lógica produtivista. Isto implica em custos com a produção, levando o produtor a uma relação de dependência externa. Lamarche (1998) identifica na agricultura três formas de dependência: a dependência tecnológica, a dependência financeira e a dependência do mercado.

Cabe observar que o investimento em tecnologias –máquinas e sementes selecionadas–, além de exigir altos investimentos financeiros, normalmente implica na aquisição de outras tecnologias e de insumos como, por exemplo, adubos químicos, pesticidas e fungicidas. A dependência tecnológica está intrinsecamente ligada à dependência financeira. Assim, para modernizar a produção o agricultor familiar necessita de recursos financeiros que geralmente não possui, recorrendo então a empréstimos. A resultante é o endividamento, fato comum entre pequenos produtores, incluindo-se aí os assentados.

A modernização da produção associada ao uso de maquinários e insumos químicos para aumentar a produtividade também causa dependência do mercado. Mas existem ainda duas outras formas de dependência do mercado: primeiro para a venda da produção e, segundo, para a compra de alimentos e produtos industrializados necessários à manutenção da unidade doméstica.

Esta dependência externa dos produtores, impulsionada e ampliada pela modernização tecnológica da agricultura, foi responsável não apenas por transformações internas no processo produtivo, mas também pela reorganização das relações entre a agricultura e os demais setores econômicos. Comentando sobre a questão, Lamarche (1998) assinala que o processo de globalização colocou o produtor à mercê do mercado, apesar de suas estratégias produtivas e apesar da

criação de políticas públicas para a pequena produção. Em outras palavras, por menor que seja, a unidade produtiva já não é mais autárquica, sua permanência está sujeita aos interesses do capital.

Os assentados também enfrentam a problemática da dependência financeira, tecnológica e de mercado. Nesta perspectiva, desenvolvem estratégias de reprodução, sobressaindo-se a criação de formas associativas de trabalho e de produção. Eles objetivam aumentar a renda e minimizar os custos, garantindo com isso sua reprodução.

Aued (2002) afirma que as cooperativas de produção, enquanto formas de transição para uma nova sociedade, se apresentam como a melhor alternativa de superação da perda de poder aquisitivo dos trabalhadores. Embora elas não tenham conseguido resolver os problemas relativos à sua sobrevivência. O autor (p.44) ainda acrescenta:

[...] Não é por acaso que, nas duas últimas décadas, a experiência marcante da sociedade brasileira é a dos trabalhadores vinculados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). Apesar de encontrarem todo tipo de dificuldade e de resistência à sua luta, eles estão indicando ser possível a busca coletiva por uma vida mais digna, e a história por certo lhes dará razão.

A organização de cooperativas abre possibilidades para dinamizar tanto a produção, quanto a comercialização, conferindo maiores rendas aos assentados. As dificuldades de acesso às tecnologias, insumos e máquinas podem ser superadas através da organização dos assentados em cooperativas, podendo também facilitar a comercialização da produção.

Os assentados têm a opção de se especializarem, voltando-se para a monocultura e isto está associado às lógicas familiares. Estas lógicas nada mais são do que a relação entre o pequeno produtor e variáveis como a terra, o trabalho e a reprodução do estabelecimento (LAMARCHE, 1998). Nesta perspectiva, o maior ou menor apego à terra, a divisão do trabalho no interior da propriedade, o emprego de mão-de-obra assalariada, o investimento em modernização tecnológica e o desejo para o futuro profissional dos filhos, são alguns dos elementos que norteiam e caracterizam as lógicas familiares.

O assentamento Annoni (fase IV), no estado do Rio Grande do Sul, onde a soja é a principal fonte de renda, é um exemplo de predomínio de uma lógica familiar que valoriza a modernização tecnológica e o investimento em monoculturas. Esta

lógica normalmente vem acompanhada de uma menor importância do trabalho familiar no interior do estabelecimento e entendimento da terra como meio de produção, em detrimento ao seu valor enquanto patrimônio. Como destaca Bavaresco (1999, p.275):

[...] era de se esperar que, ao terem acesso à terra (mecanizável) e a recursos (mesmo que limitados), os excluídos da “modernização” (no caso os assentados) tentassem implementar, embora numa conjuntura bem menos favorável, aquilo que foram impedidos de realizar nas décadas de 1960-70.

Isso, talvez, possa explicar, pelo menos em parte, as razões que levaram os assentados a adotarem o mesmo padrão tecnológico que, em muitos casos, foi o responsável pelo próprio surgimento dos sem- terra.

Sob esta perspectiva, pode haver a reprodução do modelo produtivista no assentamento, com a adequação dos assentados à lógica capitalista de produção. Mas como é posto por Fernandes (1998), a idéia de assentamento possui relação direta com a pequena produção, pressupondo assim uma reestruturação da estrutura fundiária e das práticas espaciais.

Salvo estes casos, as relações de produção sofrem modificações. Em alguns casos elas dão lugar a uma produção ecologicamente mais viável. Em outros, a agricultura moderna, altamente automatizada e especializada, com uso intensivo de insumos químicos, cede espaço para a policultura fundamentada no trabalho familiar. Nestas unidades a pluriatividade se torna uma estratégia de reprodução familiar.