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3 APORTE TEÓRICO EPISTEMO METODOLÓGICO PARA COMPREENDER O ABUSO SEXUAL NA FAMÍLIA

3.2.5 Formas da resistência

A teatralidade remete à resistência, que permite jogar com a duplicidade por meio da astúcia, do duplo jogo, do silêncio, atitudes de passividade que Maffesoli (1987) cita como forma de aceitação da vida ou do destino.

A duplicidade é da ordem do dúbio e constitui um dos elementos indispensáveis da criação de um espaço e de um tempo fantástico na vida quotidiana. Ela

desencadeia a fragmentação da existência, o nonsense e acentua o presenteísmo (MAFFESOLI, 1984).

É possível confrontar-se com o trágico do abuso sexual vivendo um duplo jogo que se mostra pela teatralidade e pelo uso de diferentes máscaras como forma de proteção. Aplicada à vida cotidiana, a máscara é descrita por Maffesoli (2010a) como o recurso que permite a encenação de diferentes papéis para se proteger da opressão gerada por um fenômeno.

Segundo o que entendemos, no processo de ritualização do abuso sexual máscaras podem ser usadas por crianças e/ou adolescentes para “furar o bloqueio” e se proteger da opressão e da angústia desencadeadas por esta vivência

O duplo jogo é um modo mais brando de vivenciar uma experiência, uma espécie de acerto de contas ou nivelamento, o que expressa o conformismo das massas, em que em uma atitude de passividade, não existe nem recusa absoluta nem completa aceitação (MAFFESOLI, 2009 a, 2010a). Expressa-se por diferentes rituais, gestos ou vivências, que delimitam determinado espaço social (MAFFESOLI, 2010 a).

No caso do abuso sexual, valendo-se do duplo jogo, uma menina/adolescente pode despistar o abusador escondendo-se, fingindo dormir ou ficando na rua. Como explica Maffesoli (1987) em situações de dominação como esta a pessoa busca na astúcia e no silêncio os meios para a conservação da existência.

De forma que duplicidade ou máscaras constitui um mecanismo de proteção contra todas as formas de dominação, o que traduz a limitação das pessoas (MAFFESOLI, 1984).

Também se pode lançar mão do silêncio no compartilhamento de experiências familiares difíceis de serem enfrentadas, como situações de abuso sexual. Por esse meio, muitas crianças/adolescentes e suas famílias resistem às ameaças do abuso, mantendo o equilíbrio familiar.

O silêncio está presente no não-dito do quotidiano familiar. Ghiorzi (2004) coloca que cada família possui um sistema de linguagem que lhe é peculiar, formado por regras que determinam e validam o que pode e o que não pode ser dito: os ditos e os não-

ditos. Para a autora, o não-dito é inerente à pessoa, estando ligado à subjetividade e ao emocional, sendo por isso impossível de ser definido.

Quanto à astúcia, é uma forma particular da resistência, em que a pessoa lança mão de diferentes táticas para manter distância de um perigo. Ela poderá, assim, se camuflar e se manifestar por meio da zombaria, do riso, da ironia ou pelo não-verbal em um silêncio que compromete a visibilidade do fenômeno (MAFFESOLI, 1987, 2010a).

No caso em questão, ou seja, de situações de abuso sexual, para evitar o confronto com os abusadores meninas podem se utilizar de diferentes estratégias, tais como o uso de metáforas ou afirmações irônicas, como modo de sobrevivência.

Máscara e duplo jogo são elementos admitidos por Maffesoli(2004) como modos de sobrevivência às formas de opressão ou dominação, o que ocorre, não pela contestação, mas pela contornação daquilo que se mostra ameaçador.

São não-ditos que Rosa (2009) reconhece como vivências proibidas de serem relatadas, nas quais as palavras não são suficientes para exprimir a sua intensidade.

Os não-ditos normalmente estão presentes em situações de opressão descritas por Scott (1990) como roteiros escondidos que entendemos se referir a palavras, gestos ou outras ações elaboradas por um opressor. Para este autor, a pessoa oprimida, não se submetendo totalmente à situação, desenvolve meios de protestar ou meios de resistência cotidiana a toda forma de dominação.

São táticas prudentes de resistência (GOMES; NATIONS; LUZ, 2008). Nos casos de abuso sexual intrafamiliar, para evitar o confronto com seus abusadores, meninas abusadas podem recorrer a subterfúgios, por meio de metáforas ou afirmações irônicas, como estratégias de sobrevivência.

Dessa forma, elas protestam e escapam da punição, criando, nesta rotina de desvalorizações, respiradouros, na busca de possibilidades de conviver com o fenômeno. Para Nóbrega, et al. (2013) e Tholl e Nitschke (2012) nos rituais do quotidiano criamos respiradouros como oportunidade de liberdade de expressão para aliviar o peso gerado para um viver saudável.

Quanto à socialidade, Maffesoli (2010 a, p.136) diz que esta categoria nos permite “nascer com as novas formas de socialidade” que emergem na contemporaneidade, mencionando as solidariedades mecânica e orgânica. A solidariedade mecânica caracteriza o individualismo dominante da modernidade, se referindo às normas sociais. A solidariedade orgânica, que eclode na contemporaneidade, traduz a força que emerge do corpo coletivo, em que, mesmo que seja pelas circunstâncias, nos leva a agir pelos sentimentos, pela paixão social.

Para o autor acima, é devido à existência da solidariedade orgânica que a duplicidade, o duplo jogo, a máscara, a astúcia e o silêncio podem ser usados como mecanismos de resistência das pessoas.

Em uma visão geral, como categoria do quotidiano que tem como foco o aqui e o agora, o presenteísmo transita entre a alteridade e a complementaridade para mostrar o desejo de pertencimento e a necessidade de estar junto, permitindo à pessoa recomeçar a vida partindo da conscientização dos seus limites (senso do limite). Através da ritualização o senso do limite acentua o trágico da vida, que manifesto pela teatralidade, deixa fluir emoções e sentimentos. Através da teatralidade é possível à pessoa se camuflar para sobreviver, lançando mão de formas de resistência: aceitação da vida, astúcia, duplo jogo e o silêncio. Sendo que este vivido trágico desencadeia a sensibilidade e o afetual das relações sociais contemporâneas, deixando emergir a solidariedade orgânica, oposta à obrigatoriedade, inerente à solidariedade mecânica.

IMAGEM 1 - Imagem de noções desenvolvidas por Maffesoli

presenteísmo teatralidade resistência

senso do limites

aceitação da vida

alteridade astúcia, silêncio e

duplo jogo

complementaridade o trágico solidariedade orgânica