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3 APORTE TEÓRICO EPISTEMO METODOLÓGICO PARA COMPREENDER O ABUSO SEXUAL NA FAMÍLIA

3.3 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS E DA SENSIBILIDADE

A epistemologia contemporânea de Michel Maffesoli tem no vínculo social o princípio básico, mediante a valorização da comunicação e da emoção coletiva em uma nova maneira de “ser/estar junto com”, características da sociologia compreensiva.

Para ele, vivemos um novo tempo norteados por uma aura que provém do corpo social, uma sensibilidade coletiva, um “sentir em comum” a que ele denomina estética do sentimento, que tem como característica a “abertura para os outros, para o outro”

(MAFFESOLI, 2010a, p.44).

A ética é a capacidade de experimentar emoções, compartilhá-las, transformá- las “em cimento de toda sociedade” (MAFFESOLI, 2007, p.12). É ela que permite o reconhecimento de si mesmo e que organiza os sentimentos coletivos por meio da estética (Maffesoli, 2003).

A ética da estética é pois, o princípio norteador da sociologia compreensiva, que “descreve o vivido naquilo que é/está, contentando-se, assim, em discernir visadas de distintos atores envolvidos” (MAFFESOLI, 2010, b, p.30) rompendo a lógica do dever ser, característico da sociologia positivista, “para a qual cada coisa é apenas um sintoma de uma outra coisa” (2010 b, p.30). A defesa é a de uma sociologia que respeita o dado social.

O autor apresenta os pressupostos teóricos e da sensibilidade, para nos auxiliar a apreender e designar detalhes, contornos e limites do vivido, de modo a que saibamos dar conta da riqueza do dado social.

Inspiração para pesquisas em saúde, suas ideias e pressupostos são utilizados sobretudo pela enfermagem, por se tratar de uma metodologia baseada na vida cotidiana que busca apresentar as formas sociais como elas se apresentam, sem deformações, e assim facilitar o entendimento dos fenômenos estudados levando em consideração o quotidiano e o imaginário na pós-modernidade (NÓBREGA et.al., 2012).

3.3.1 Primeiro pressuposto: crítica do dualismo esquemático

Por meio de diversos instrumentos, MAFFESOLI (2010b) propõe o uso do “método aberto”, atribuindo-lhe a capacidade de captar e ressaltar o dado social. Para o conhecimento comum, critica o dualismo esquemático, isto é, a visão estática de uma sociologia cartesiana que simplifica a complexidade do dado social como se este se encontrasse separado do mundo. Para ele, o pesquisador não está dissociado do universo da pesquisa que desenvolve: ao contrário, ele é parte daquilo que descreve.

Para ele, toda forma de pensamento é permeada por duas atitudes que se complementam, havendo certa dificuldade em defini-las com precisão. Assim, para que possamos avaliar um fenômeno, ele recomenda manter o equilíbrio entre razão e emoção, sem privilégios à crítica, ao julgamento, nem à paixão ou à emoção (extremos que podem prejudicar nossa visão daquilo que estudamos), substituindo a razão estática do pensamento moderno por uma razão sensível, apta a captar detalhes da vida cotidiana, tornando possível compreender em profundidade o conteúdo do dado social.

Nesta perspectiva, a sociologia compreensiva junta aquilo que foi separado pela sociologia positivista, que desconsidera aquilo que diz respeito à experiência do senso comum.

3.3.2 Segundo pressuposto: a “forma”

O autor critica a forma limitante de investigação do dado social utilizada pela sociologia tradicional e propõe, com o neologismo formismo, o equilíbrio entre o lógico e o não lógico presentes no dado social. Para Maffesoli existe uma lógica do ilógico mostrada no

formismo, cuja utilidade metodológica está sobretudo na capacidade de “compreender e dar destaque às menores situações da vida cotidiana” (MAFFESOLI, 2010b, p.127).

O autor defende a utilidade do formismo como ferramenta metodológica, partindo do pressuposto de que a maneira pela qual o paradigma sociológico positivista estuda as formas da vida cotidiana como conteúdos separados do todo não permite “descrever de dentro os contornos, os limites e a necessidade das situações e das representações constitutivas da vida quotidiana” (MAFFESOLI, 2010 b, p.31-32).

Parafraseando Durkheim, o autor afirma que “é a forma do todo que determina as partes” (MAFFESOLI, 2010b, p.112). E acentua que “o formalismo conceitual se empenha em conferir sentido a tudo que observa”; assim, dá razões e submete à razão, ao passo que o “formismo se contenta em delinear grandes configurações que as englobam, sem as reduzir, a valores plurais e às vezes antagônicos da vida corrente” (MAFFESOLI, 2010b, p.117).

Outra característica desta proposta é que o quotidiano é concebido como forma e não como objeto, constituindo o formismo “uma condição de possibilidade” (MAFFESOLI, 2010b, p.35) para análise do dado social, cuja interação e reciprocidade presentes são fundamentais para que se possa apreender aquilo que está ocultado e que aparentemente não tem importância na vida cotidiana.

Assim, Maffesoli (2010b, 2012) ressalta que só é possível distinguir a realidade quando imergimos no seu oposto, o irreal, que, fruto do imaginário dos nossos pensamentos e fantasias, ultrapassa a realidade.

Para o formismo, tudo tem importância na vida cotidiana. Por esse motivo, sem abrir mão do rigor cientifico, ele busca descrever as situações com fidelidade, de forma que, para Maffesoli, todas as situações cotidianas devem à forma ou à regra, tais como a violência, as banalidades, a vida cotidiana, enfim.

Ou seja, as coisas existem porque se inscrevem em uma forma, admitindo que “não é o que um objeto social é, senão a maneira pela qual se apresenta, que pode guiar a investigação” (MAFFESOLI, 2010, p.126). Para ele, nisso se resume toda a ambição formista.

Neste contexto, o autor ressalta a necessidade de o pesquisador ter sensibilidade para apresentar o dado social naquilo que é sem deformá-lo: o “caráter essencial

do formismo é valorizar a profunda aparência da vida cotidiana” (MAFFESOLI, 2010 b, p. 125).

Buscando privilegiar o parecer, ao contrário do ser, o formismo mostra o vivido conforme ele se apresenta. Assim, cabe ao pesquisador o papel de coerência, isto é, sem abdicar do rigor metodológico, ele é fiel ao dado encontrado e não o altera.

Estudar um fenômeno pressupõe, portanto, sensibilidade para reconhecer uma pluralidade de detalhes, estando atento ao presente na busca de categorias invariáveis, ou seja, que resistem às mudanças de paradigma. Maffesoli (2010 b) apresenta a invariância como uma propriedade da forma e um elemento de toda atitude cientifica.

Portanto, por seu aspecto de regularidade, essas categorias são metodologicamente úteis para compreender e dar destaque aos acontecimentos quotidianos que têm caráter de repetição. Maffesoli as identifica como categorias paroxísticas, termo usado para descrever eventos recorrentes, tais como o poder, a potência, o rito, a teatralidade, a duplicidade, o trágico e a solidariedade orgânica, compreendidas como modulações da forma. Por esta ordenação de ideias, a forma como pressuposto constituiu o horizonte na busca de categorias invariáveis que pudessem emergir de vivências de abuso sexual.

3.3.3 Terceiro pressuposto: uma sensibilidade relativista

Maffesoli trabalha com a concepção de que não existe uma realidade única, não existindo, portanto, certeza absoluta. Ele trata da heterogeneização e pluralidade do mundo, defendendo ser preciso antes se confrontar com a superfície ou aparência, questionando e se inquietando para, então, enxergar a profundidade daquilo que se busca por meio de uma sensibilidade relativista capaz de reconhecer que, não existindo uma realidade única, necessitamos da integração de diferentes saberes para dar conta do dado social por nós encontrado (MAFFESSOLI, 2007). Ele usa a metáfora “é preciso saber ouvir o mato crescer” no sentido de estarmos atentos às pequenas coisas e às coisas simples da existência (MAFFESOLI, 2010 b, p.41).

3.3.4 Quarto pressuposto: pesquisa estilística

Maffesoli acentua a existência de um estilo do quotidiano em seus gestos, palavras, teatralidade, de obras em caracteres maiúsculos e minúsculos, que se correlaciona com o formismo e em que se faz necessário ter controle e coerência, isto é, saber se expressar.

Para ele, “é possível imaginar-se uma sociologia que se estabeleça na base de uma retroalimentação constante entre forma e empatia” (MAFFESOLI, 2010 b, p.41).

Isto é, é primordial que as pesquisas cientificas adotem um estilo flexível, capaz de atender aos interesses de diferentes pessoas. Assim, ele propõe não recorrer às formas e métodos muito fechados e orienta as pessoas a lançarem mão de uma gramática adequada e capaz de não aprisionar o saber. Para ele, “o saber dizer não é de modo algum sinônimo de tudo dizer” (MAFFESOLI, 2010 b, p.45). Ele valoriza uma linguagem clara e sugestiva, apontando o uso de metáforas e analogias como recursos alternativos na elaboração de um texto.

3.3.5 Quinto pressuposto: um pensamento libertário

Maffesoli condena o conformismo reinante no mundo intelectual, enfatizando que bem mais produtivo é trabalhar pela “liberdade do olhar”. O pensamento cientifico precisa ser audacioso e criativo, sendo a inovação, a aventura e a flexibilidade apontados como necessários ao desenvolvimento da pesquisa cientifica. Para isto, é necessário adotar um pensamento libertário, permitindo-se sentir pequenos detalhes, valorizar sugestões e diferentes modos de pensar.