• Nenhum resultado encontrado

3.4.1 As técnicas qualitativas para a obtenção do material empírico: "entrevistas não diretivas e observação sistemática"

Para esse fim específico de obtenção do material empírico, foi utilizado um roteiro contendo alguns elementos compondo uma caracterização do informante (aspectos socioeconômicos e relacionados à saúde), como também a questão norteadora: Gostaria que o (a) senhor (a) me falasse como vem sendo atendido (a) na Unidade Básica de Saúde (Posto de Saúde/PSF), possível de ser desdobrada em novas perguntas com base no conteúdo emergente nas falas dos entrevistados.

Para um estudo do mundo empírico sob o ponto de vista indutivo e exploratório sob a óptica da tradição da Escola de Chicago e Blumer, o pesquisador interpretará o mundo real com base nas perspectivas subjetivas dos próprios sujeitos sob estudo (MOREIRA, 2002). Segundo esse mesmo autor, a entrevista define-se como uma conversa entre duas ou mais pessoas com um propósito específico em mente.

Da mesma forma, Minayo et al. (2002) descrevem que a entrevista é uma conversa a dois que possui propósitos bem definidos, como também por meio dela,

podemos obter "dados" que se relacionam aos valores, às atitudes e às opiniões dos sujeitos entrevistados.

Portanto, escolhemos trabalhar com entrevista não diretiva porque corresponde aos níveis mais profundos, pelo fato de existir uma relação entre o grau de liberdade deixado ao entrevistado e a profundidade das informações fornecidas por ele (MICHELAT, 1987).

Kandel (1987) assinala que a entrevista não é simplesmente um trabalho de coleta de informações. A autora reforça a ideia de que a entrevista é sempre uma circunstância de interação ou mesmo de influência entre dois indivíduos e que essas informações que são transmitidas pelo sujeito podem ser afetadas pela própria natureza de suas relações com o entrevistador.

O envolvimento do entrevistado com o entrevistador é também reforçado por Minayo (2006), quando exprime que este é necessário como condição de aprofundamento de uma relação intersubjetiva.

Rogers (1945 apud KANDEL,1987, p. 172) descreve duas possibilidades que justificam o uso da entrevista não diretiva:

1. evitam as distorções introduzidas pelo pesquisador; e

2. ultrapassam os níveis mais superficiais e atingem as reações “mais profundas e mais verdadeiras” do sujeito interrogado.

Nesse sentido, esse tipo de entrevista propõe contornar certos cerceamentos existentes em entrevistas por questionários, os quais representam o polo extremo da diretividade (MICHELAT, 1987).

Ao utilizar esta técnica qualitativa, deixamos que o sujeito entrevistado fale de maneira livre; quando necessário, o ajudamos, somente, a aprofundar, ou melhor, expressar seus sentimentos e concepções (KANDEL, 1987). Para Triviños (1987), a entrevista não diretiva privilegia o sujeito, daí seu êxito no campo da Psicologia.

Acreditamos que privilegiar o sujeito significa, como pesquisador, abrir mão de interferências e induções no sentido de permitir que esse expresse sua fala livremente acerca de determinado assunto ou questão norteadora. Assim, temos a possibilidade de, no momento da entrevista, deixar que o fenômeno se manifeste com base no “dito”, do não-dito e do interdito.

Portanto, acrescentamos que esta prática não apenas tenha êxito se aplicada no terreno da Psicologia, mas também em diversos campos disciplinares das Ciências Sociais e Humanas, bem como nas Ciências da Saúde, conforme vem ocorrendo, uma vez que se trata de uma técnica que privilegia a interação pesquisador-sujeito como implicados intrinsecamente no processo de pesquisa, como também no ato de ouvir.

Acerca do ato de ouvir, que é parte fundamental, ou melhor, o momento- chave de qualquer entrevista, Amatuzzi (1990, p. 88-91), em seu comentário baseado em um texto de Rogers, ressalta que: [...] o ouvir nos abre para o mundo e para os outros. Ouvimos, portanto, para além das palavras, mesmo quando é através delas.Ouvir é mais que observar, é estar em relação, e, portanto, tornar-se presente.

Assim, percebemos que ouvir vai além do simples fato de escutar uma fala ou palavra, pois, de fato, nos remete a um contato íntimo com o dito e, portanto, exige uma atenção e um encontro com o outro, para que possamos de fato compreender e significar o que foi realmente proferido.

Consoante a estratégia de triangulação metodológica, somado às entrevistas não diretivas, utilizamos também a técnica de observação sistemática nos 11 CSF participantes deste estudo. Para Minayo (2002, p. 59) esta técnica “se realiza através do contato direto do pesquisador com o fenômeno observado para obter informações sobre a realidade dos atores sociais em seus próprios contextos”.

Os setores observados nos CSF foram: recepção, sala de preparo (onde se verifica a PA e é realizada a pesagem do paciente) e sala de espera. A escolha por tais setores se justifica pelo fato de que nestes setores há maior presença de usuários. Assim, possibilitando observação mais fidedigna do fenômeno aqui explorado.

3.4.2 Processamento e interpretação do material empírico: interface entre o material empírico e a fundamentação teórica

À medida que se realizaram as entrevistas não diretivas com os usuários, essas foram transcritas e o material empírico foi submetido a leitura transversal e horizontal, de maneira a permitir a impregnação pelo sentido do “todo” de cada depoimento, bem como a identificação dos temas centrais que agregaram as várias dimensões presentes nas narrativas e que constituíram os eixos da rede interpretativa (GELUDA; BOSI; TRAJMAN, 2006).

Portanto, não foi realizada uma "análise" e sim processamento, porque entendemos a primeira como "decomposição de um todo em suas partes constituintes; exame de cada parte de um todo [...]" (FERREIRA, 1986, p. 220).

Muitos autores que desenvolvem pesquisas utilizando a abordagem qualitativa propõem maneiras de sistematização e "análises dos dados"16 empíricos. Dentre eles podemos citar Martinez (1998), que propõe uma sistematização dos "dados" baseado nas fases de indução. Para o autor, satisfazendo os requerimentos metodológicos da sistematização dos "dados". Essas fases são:

1. conceitualizar – ordenar por idéias e/ou pensamentos;

2. categorizar – reunir as idéias e/ou pensamentos em grupos que as contenham;

3. organizar – visualizar a forma como se estrutura um todo; e 4. estruturar – ação de ordenar e distribuir as partes no todo.

Com essa sistematização, o pesquisador caminha para a fase de "análise" e interpretação dos "dados" com base em um mapa conceitual elaborado, considerando as fases ora descritas, sendo possível realizar a "análise" e a interpretação dos "dados" de forma vertical e horizontal.

Mercado-Martinez (2000) nos alerta no sentido de que a decisão de usarmos um determinado método de análise não se dá no vazio, ou seja, a priori, devemos obedecer ao objeto de estudo, aos agentes envolvidos e certos fatores do contexto.

16 Grifo nosso. Não pactuamos com os termos análise de dados e/ou dados por compreendermos que

estas terminologias se aproximam com maior intensidade das pesquisas quantitativas. Para nós não existe dado a ser coletado e/ou analisado por se tratar de material empírico subjetivo, portanto, sem manipulação matemática, estatística e/ou probabilística.

Nos estudos qualitativos no campo da saúde, temos diversas atitudes teóricas (MERCADO-MARTÍNEZ; BOSI, 2004), as quais podem nos subsidiar no campo interpretativo e paradigmático.

Neste estudo, utilizamos os fundamentos da hermenêutica, sendo ela uma das vertentes no âmbito da abordagem qualitativa. Nos estudos de Schleiermacher (2003), a hermenêutica é complementada pela dialética, ou seja, a hermenêutica mostra os limites da dialética e esta, porém, exibe a possibilidade desta.

Dessa forma, a hermenêutica, segundo o autor ora citado, visa à apreensão do pensamento em um discurso, como também reconhece que o universal sempre é pensado dentro das possibilidades de uma dada linguagem. Ademais, a hermenêutica é essencial para a apreensão do pensamento, mesmo daquele que se perfaz no plano ideal-formal (SCHLEIERMACHER, 2003).

Com o propósito de apreender do material empírico aquilo que temos como objetivos, como também a essência e o refinamento nos discursos, utilizou-se, para fins de interpretação, o Círculo Hermenêutico (Hermeneutic Circle) (SCHWANDT, 2007).

Figura 3 – O Círculo Hermenêutico

Fonte: Schwandt (2007)

O conjunto do texto; O texto na íntegra

Diversas partes do texto

Essa estrutura em círculo significa um processo metodológico ou uma condição de entendimento a fim de compreender o significado da totalidade de um texto. Para Schleiemacher, este círculo sinaliza uma condição necessária de interpretação. Ademais, acentua que essa circularidade do processo é apenas temporária, ou seja, eventualmente o pesquisador (no caso intérprete) pode vir a algo que se aproxime de uma completa e correta compreensão do significado de um texto, em que o todo e as suas partes estão relacionadas em harmonia (SCHWANDT, 2007).

Os eixos analíticos que adiante descreveremos, emergidos das verbalizações dos usuários, mostrar-se-ão como exercício metodológico com a utilização do círculo hermenêutico.