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Fortuna Crítica: Percursos de Leitura

Ninguém vai entender meus versos se quiser interpretá-los como performances literárias.

Walt Whitman Como já mencionado, os três volumes de suas Obras Reunidas receberam prefácios, sempre do organizador dos livros, Alcir Pécora e posfácios de autores diversos. O interessante é a abordagem sobre a obra e a sugestão de leitura que, cada um, à sua maneira, explicita, favorecendo a ampliação de possibilidades do acesso a seus livros como um todo.

Em um dos estudos introdutórios, Willer, em posfácio ao primeiro volume, se propõe a auxiliar na leitura da obra que está sendo lançada. Nesse texto, Willer percebe uma predominância de fôlego, de leitura, de escrita, em cada livro editado. Curiosamente, aponta os versos longos em Paranoia e Piazzas, livros publicados muito próximos um do outro, e que, mesmo assim, assinalam um ritmo bem diferente. Ambos são caudalosos, porém no primeiro, o ritmo é mais agressivo, contundente, quase feroz. Paranoia é um coice na ‘caretice’ burguesa que pretende enquadrar um jovem inquieto, ousado, transgressor e autoconsciente. De posse de seus desejos, ele não pede, mas ataca, ofende, afronta, blasfema e se impõe. Ousadia e violência, que usa no combate à violência opressiva e sub-reptícia de uma norma cristã, capitalista, produtiva, centrada, apolínea, casta e tristonha.

Já em Piazzas, o poeta flana, noturnamente, por logradouros soturnos e pululantes, prenhe de uma realidade que a ‘ordem careta’, odiaria acreditar que persiste. Persiste porque não se dobra, porque ‘a alegria é a prova dos nove’, porque nos subterrâneos, nas praças escusas, escuras e sujas, outra vida é experimentada, e se atravessa constantemente no caminho do poeta que, no entanto, não se furta a nela penetrar. Willer irá chamá-la de ‘fruição e contemplação’. Ele não é um monge olhando o transcendente, não mira a purificação, mas, do mesmo modo, vai à busca do maravilhoso, e se deixar levar em um universo insuspeito, rico, vário, louco, bandido e sensorial. Ele se depara com corpos pelos cantos, em cores inesperadas, com traçados construtivos encantadores, em que a corja, a turba, a malta - os anjos lumpen se esbaldam próximos às muitas igrejas espalhadas pelo centro.

Willer nota que em Abra os olhos e diga Ah! o formato do poema será mais conciso, mais curto, e, eufórico, fará “um hino à pederastia”, apoteótico, na curtição a dois. Seu entusiasmo, no entanto, não o fará abandonar a ironia, a sátira e a paródia, como no verso “o mundo muda a cor da jabuticaba muda teu cu muda”76. E arrebatado, a cidade deixa de ser sua referência direta, mas surge mais como um ruído de fundo. E lembra, com precisão, do período Contracultural, em que o escapismo conviveu com o ressurgimento das mobilizações de massa, com as passeatas de 1977 pela redemocratização. E aponta também a vertente adâmica que Piva empresta a sua política de corpo, numa “dimensão subversiva do corpo”.

Ainda outro apresentador, de fato o organizador de sua obra reunida, Alcir Pécora, assinala na forma percebida nesses poemas do Abra os olhos... a presença de vozes diversas, provenientes de vários lugares da cidade, mesclando o público com o privado, intercalando vozes, criando uma “didascália77 barulhenta - contemporânea, urbana, caótica e ostensiva”78.

76 Postfácio para Um estrangeiro... op.cit. p.162

Do livro Coxas, Willer irá apontar sua narrativa em prosa, coloquial, extensa e hiperbólica do confronto das pequenas gangues sobrevivendo, ou não, à violência dos tempos. E de fato a ditadura moralista instila um ethos policialesco pelas classes médias, que irão ocupar toda a urbis, em que o ‘careta’ assumirá o poder sob argumento da santificação de propósitos e santificação dos corpos - a violência corre solta e os mortos infestam seus porões.

Coxas comentará com muita veemência a androgenia em um pathos coletivo.

Nomadismo, resistência, uso político de eros à la Marcuse, coloca a marginalidade que se amplia e espraia pela cidade, subúrbios, rumo a suas margens. O espaço se amplia, os personagens se agrupam. Agora, não bastam os amantes, as ‘cuequinhas em flor’ de um amante exclusivo, mas uma abertura rumo à barbárie vegetal, à orgia grupal - rumo ao mato - elementais do reino vegetal e animal, rompem suas barreiras cristãs, abandonam sua subcondição de pasto e, insidiosamente, roubam a paisagem suburbana, invadem seus monumentos de concreto armado... esbaldam-se. Pólem, Onça Humana, Rabo Louco, Lábios de Cereja, Lindo Olhar e Coxas Ardentes são personagens de uma saga em que uma gangue de lumpens se revezam fazendo sexo e “ouvindo a Nona Sinfonia ou Guerra Peixe, ou

Calabar do Chico”79 e circulam pelas frestas da cidade.

Willer observa então em 20 Poemas com Brócoli, o retorno de um poema “contido, conciso, condensado, ordenado e curto”. Nesse livro, seus poemas são joias gráficas antes de mais nada. É olhar e vê-los balançando como móbiles - leves - pedaços eróticos translúcidos, gotejando prazeres: os da mesa, os dos olhos, e das coxas. E novamente Macunaíma se faz presente em festins de preguiça e olhares silvestres, embrenhando-se nos matos, onde o corpo rola em clima de lagarto.

E chega-se a Quizumba, que em sua nota explicativa, é a única coisa em ordem do ensandecido livro de poemas - caos, demônios, vômitos, alucinações e, claro, todos os seus amigos, todas as sacanagens e muita risada enfileirada pelos absurdos socados lado a lado, espremidos, gozando cada pedaço de ideia que não cabe, que não é, mas que se faz, ali, entre uma “garoa de moedas / matinês no corpo do garoto nu / Punk-torrada / meu massacre preferido e rosas-chá da belle époque” - é como uma avalanche de sonhos e pesadelos de tudo o que se viu e leu e ouviu e tocou e viveu e escutou e sofreu e vestiu e lambeu, e pensou e esfregou e memoriou e, de repente, num espasmo, numa golfada, vem o livro, em forma de Zodíaco com Rimbaud, com Diadorim, com Billy the Kid e Hesíodo, passando pelo “Chovia no teu coração de merda”, e findando no “Batuque III”, em que Diadorim combate

78 Prefácio para Um estrangeiro... op. cit. p. 11. 79 De Coxas, in Mala na mão..., op. cit., p. 61.

vulgaridade, até que o poeta sacode o Amor garantindo seu retorno do grande êxtase psicodélico-estético-cultural se anunciando: “Sou eu mesmo Amor sou eu mesmo”

E, tempos depois vêm Ciclones, que o próprio Piva gosta tanto. Para Willer é o livro da sublimação e do êxtase sexual. São poemas curtos, quase Haikais, cuja figura central é o Xamã. Willer acha que o Xamã pode ser o símbolo ou a metáfora do próprio poeta que propõe a construção ritual de nova tribo. Não a recuperação da primitiva, mas outra, em que possa reunir suas filiações, amizades e linhagens poéticas e artísticas, como “Nerval, Pessoa & os templários, Lao Tsé”, título de um dos poemas. É uma tentativa de recuperação do sagrado em um mundo pós-utópico.

Para Pécora, os últimos trabalhos do poeta reproduzem um bucolismo clássico, em que as peças do tabuleiro são trocadas. Assim, no lugar de pastores e arcádias gregas, é construída uma ‘Cena Xamânica’ de base clássica. Passando por cinco fases, ou como assinala, ‘cinco elementos de ouro’, a Cena Xamânica se monta:

1. Com uma paisagem aberta oposta à cidade-sucata.

2. Pelo personagem principal, o Xamã, dotado de “seu pênis de elefante, com propriedades curativas”, de posse de arsenal que é a grande tradição literária ocidental; e o Discípulo do Xamã: invariavelmente um adolescente andrógino, com fortes atributos sexuais (falo duro, coxas fortes), dotado de “ignorância honesta e generosa, embora selvática e descontrolada”.

3. Componentes cenográficos que rodeiam a cena xamânica como uma moldura variável, podendo ser ufos, cactos, diamantes, andorinhas, astronautas, etc.

4. Um “conjunto ritualizado de ações” que têm por função seduzir e copular com o discípulo-efebo, e tais ritos podem passar por danças, gritos, riso, vômitos, quedas etc.

5. E por fim, “são os instrumentos mobilizados pelo feiticeiro para a iniciação do adolescente: elixires, cogumelos, LSD, haxixe... tambores, beijos, sussurros, palavras, poemas para excitar no jovem discípulo a potência da flor tesuda, do pau-ferro, do cu em flor...”80. E essa cena busca o princípio da cópula cósmica e universal, das bodas sagradas, da hierogamia, cujo “pensamento mais elevado apenas se atinge na máxima exploração dos sentidos”.

Pécora constata ainda que, apesar das imagens serem “violentamente anticonvencionais”, a cena xamânica e seus desdobramentos operam sobre uma base metafórica clássica, no caso o Império Romano, ao qual Piva faz referências constantemente, dando aval a um lócus onde não possa existir o grosseiro, o tosco, mas ao contrário, é onde

viceja a elegância, a graça, e portanto é divertido e não mesquinho ou medíocre. E essa referência clássica, como a vê, passa a ter uma “destinação civil [...] que deseja reordenar as formas de convívio, e empreender a reforma dos costumes pelo cultivo das letras e do espírito”81, concluindo que, talvez “Piva tenha hoje feições mais clássicas do que nos

acostumamos a pensar a seu respeito”82. O que faz de sua leitura uma perspectiva muito

interessante e provocadora, além de produzir uma reviravolta nessa linhagem de “maldito romântico” a que, até então, se viu filiado.

Em todo o caso, outra contribuição muito rica, também por um dos posfácios (o do terceiro volume de suas Obras Reunidas), vem de Davi Arrigucci Jr. Segundo sua leitura, embora a vontade libertária em renegar a Ordem, e dar livre curso ao Desejo seja a vertente mais evidente de toda a obra de Roberto Piva, também percebe essa inclinação clássica. Mas refuta tal análise, assinalando o risco de reduzi-la e enquadrá-la ao sabido. No entanto, confirma encontrar em toda sua obra uma “Lírica delirante, que se mistura à Épica” (!)

A justificativa vem pela observação do Eu-personagem que constrói cenários e confronta inimigos, sempre em processo de exaltação do amor físico, sempre andarilho, porém temporal, isto é, histórico, pois se relaciona com o mundo concreto, dando voz ao refugo da ordem dominante, e acusa a metrópole predatória condenada ao mundo globalizado, sem salvação. Assim, o poeta projeta e ufana o lado sombrio da cidade que se perde pelo ralo do capitalismo, como narra, correndo pelos poemas “um epos da entropia urbana”, em que visões dantescas e grotescas “nos assombram e às vezes nos iluminam”83.

Segundo Arrigucci, ao contrário da percepção de base clássica na construção da obra poética, denota um “fluxo poético sem margem, que não teme o informe e a falta da medida, sob o impulso dionisíaco”, alimentando-se conforme a sugestão de Nietzsche, “da fonte originária da lírica que é o ditirambo, para exprimir tanto a alegria jubilosa quanto a mais profunda tristeza”84. E por fim, reconhece no poeta essa rara coragem de optar pela revolta permanente aos louros da academia.

Agora conhecemos Estranhos Sinais de Saturno, mais recente livro, em que muito dos elementos de Ciclones permanecem presentes. Já não constrói a Cena Xamânica, e, ao que parece, a tônica é a amizade. Não apenas entre seus personagens líricos, mas em chamamentos, epígrafes e homenagens explícitas, nominadas. A intimidade e as brincadeiras quando faz referência aos homenageados, é inevitável, como no poema “A dor pega fogo”,

81 Idem, p.13. 82 Idem, ibdem.

dedicado a Maria Rita Kehl e Marcelo Coelho, em que inicia assim: “O Marquês de Sade / & a Marquesa de Santos / caminham ao jazz do crepúsculo...”.

E também brinca com Rodrigo de Haro, místico e refinado amigo de longa data, chamado o Huysmans do grupo, quando conviviam nos anos sessenta, a quem dedica o poema “Amon Ra”, e com ele brinca: “o efebo eletrônico / passeia pelos jardins do Desterro / como uma gota de Sombra...”, assinalando a antiga nomenclatura da cidade de Florianópolis, residência de Haro, associando antigos nomes às dores das distâncias. Também homenageará Zé Celso, com o poema “O chute do mandril da meia-noite”, a quem conta um ‘causo’ no qual “o poeta Virgílio ganhou / um garoto de / Augusto / o gladiador PIVOTUS / mergulhou na bacanal / & até hoje não veio / à tona para / tomar fôlego”. E assim outros mais.