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Fotografia é memória: perdem-se fotografias, perdem-se memórias

CAPÍTULO 1 FOTOGRAFIA, MEMÓRIA E HISTÓRIA

1.3 FOTOGRAFIA E MEMÓRIA

1.3.2 Fotografia é memória: perdem-se fotografias, perdem-se memórias

De acordo com Adair Felizardo e Etienne Samain (2007) a memória humana atrelada às facilidades e “ambiguidades gramaticais” das novas tecnologias da era do “Ctrl-Alt-Del”, pode acabar se perdendo, pois, assim como ficou fácil produzir fotografias, ficou ainda mais fácil eliminá-las, uma vez que, para isso, basta olhar para o display e pressionar alguns botões. Eliminando as imagens, que por algum motivo perderam o encanto, elimina-se, junto, a memória que guardava.

Nessa perspectiva, de acordo com os autores, reforça-se a ideia de que “fotografia é memória”, visto que a perda de um arquivo implica consequentemente uma perda de memória, tanto no sentido digital, quanto humano, pois o que pode ser considerado como banal hoje, amanhã será memória.

Uma questão que se coloca a partir dessas reflexões é acerca das fotografias que não são “tiradas”. Nesse ponto de vista, poderíamos supor que independentemente da preservação cuidadosa das fotografias, incontáveis

memórias se perderam e se perdem diariamente, pelo simples fato de nem toda ação humana ser fotografada.

Sabemos que a fotografia não é o único suporte de memória existente, mas, segundo Le Goff (2003), seu surgimento no século XIX tratou-se de uma significativa manifestação da memória coletiva. Segundo ele, a fotografia “revoluciona a memória: multiplica-a e democratiza-a, dá-lhe uma precisão e uma verdade visuais nunca antes atingidas, permitindo, assim, guardar a memória do tempo e da evolução cronológica” (LE GOFF, 2003, p. 460).

Mais adiante em suas reflexões, ao tratar de outras manifestações da memória, também em outras dimensões, como a memória eletrônica e a memória biológica, o historiador francês amplia sua análise acerca das transformações que o estatuto de memória sofreu a partir do século XX16. Transformações essas

submetidas ao olhar investigativo da psicanálise, psicologia social, sociologia e antropologia histórica que, segundo Le Goff (2003), constitui, acerca do que ele também chama de etno-história, um dos desenvolvimentos recentes mais interessantes da ciência histórica. Segundo o historiador:

Pesquisa, salvamento, exaltação da memória coletiva não mais nos acontecimentos mas ao longo do tempo, busca dessa memória menos nos textos do que nas palavras, nas imagens, nos gestos, nos ritos e nas festas; é uma conversão do olhar histórico. Conversão compartilhada pelo grande público, obcecado pelo medo de uma perda de memória, de uma amnésia coletiva, que se exprime desajeitadamente na moda retrô, explorada sem vergonha pelos mercadores de memória desde que a memória se tornou um dos objetos da sociedade de consumo que se vende bem (LE GOFF, 2003, p. 466).

Percebe-se, a partir dessas análises, que a era do “Ctrl-Alt-Del” gera uma contradição na relação da sociedade com sua memória. Considerando a fotografia como um dos suportes mais eficientes da memória coletiva, assim como, o medo de sua perda, conforme aponta Le Goff (2003), nota-se que a sociedade ainda não percebeu que o uso da lixeira eletrônica do celular e do computador, no descarte de suas fotografias, contradiz esse “medo social” que sente da perda de memória. Por outro lado, essa contradição também nos permite pressupor uma falsa valorização da memória, expressa na moda retrô e, consequentemente, um falso medo, ou, ainda, a sua inexistência.

16 Le Goff (2003) empresta o termo “memória em expansão”, do estudioso Leroi-Gourhan (1911-

Porém, é interessante pensar, a partir da constatação de que há a memória voluntária e a involuntária17, em qual dessas categorias a memória da sociedade se

identifica quando elimina suas “banais” fotografias. Segundo Felizardo e Samain (2007), a fotografia poderia ser classificada como memória voluntária. Nesse sentido, poderíamos concluir que, se a fotografia é memória voluntária, a sociedade quando a elimina, a faz conscientemente, e se faz, é porque escolheu fazer, escolheu o que merece e o que não merece ser lembrado, utilizando-se de um critério subjetivo acerca do banal.

Apesar dessa eliminação tratar-se de uma ação consciente, o prejuízo social decorrente dela se dá na passagem do tempo, quando a fotografia legitima o seu caráter de “testemunha ocular” de um pedaço de uma realidade passada, ou seja, é o tempo que confere o certificado de importância à fotografia enquanto memória social, e essa relevância não é percebida pela maioria das pessoas no momento em que se relacionam com o artefato fotográfico numa situação de descarte.

Felizardo e Samain (2007) também lembram, que:

Esta constatação nos fez perceber o quão importante é a manutenção de nossas fotografias, de nossos álbuns de família, de nossos museus iconográficos, pois nosso passado, nossa caminhada presente e futura, está atrelada à nossa memória (FELIZARDO; SAMAIN, 2007, p. 209).

Os autores ainda alertam para a seguinte questão:

Prefigura e anuncia que são grandes as chances de a fotografia digital, não impressa, ao longo dos anos, ficar à deriva, fadada ao desaparecimento e com ela, a memória das pessoas que a fizeram e a aspiraram. É importante que as gerações futuras, os novos fotógrafos, os consumidores de imagens digitais fiquem atentos à maneira com a qual suas imagens serão preservadas (FELIZARDO, SAMAIN, 2007, p.209).

Por outro lado, quando nos referimos a memória oficial, é onde a fotografia mais esbanja seu caráter de memória voluntária, pois desde sua produção busca-se edificar essa memória, que já inicia sua caminhada no tempo esperando seu certificado de “documento/monumento” (LE GOFF, 2003). Nesse caso, quando ocorre o descarte, o prejuízo social promove-se conscientemente.

17 Felizardo e Samain (2007) citam os estudos de Henri Bergson (1859-1941) e Marcel Proust (1871-

Acerca da memória “oficial”, Verena Alberti (1996), ao trabalhar com a potencialidade da história oral, aponta para armadilhas que podem comprometer o trabalho de estudiosos que almejam compreender um determinado tipo de memória, ou memórias, em uma dada sociedade. Segundo ela, deve-se evitar as polarizações “memória subterrânea” versus “memória organizada”, “memória dominante” versus “memória dominada”. A autora cita ainda os estudos de Michael Pollak (1948-1992) acerca da disputa pela memória, e o conceito de “enquadramento de memória”. Segundo esses estudos, um grupo dominado em determinado contexto histórico, pode passar a ser o dominante porque ganhou a disputa pela “memória oficial”. Segundo Alberti (1996):

Para evitar a polarização simplificadora entre memória “oficial” ou “dominante”, de um lado, e memória “genuína” ou “dominada”, de outro, é preciso ter em mente, portanto, que há uma multiplicidade de memórias em disputa. O próprio Pollak chamou a atenção para isso quando observou “a existência, numa sociedade, de memórias coletivas tão numerosas quanto as unidades que compõem a sociedade” (ALBERTI, 1996, p. 6).

No caso da fotografia e dos objetivos lançados por nós aqui, quais sejam, entendermos como as experiências dos trabalhadores aparecem nos registros fotográficos, se aparecem ou são ocultados, essas armadilhas devem ser consideradas, para não incorrer no trabalho de enquadramento de memória ou de função “missionária”. Essas reflexões também podem dar um direcionamento mais seguro no trabalho com as fotografias no ensino de história, e servirão de base para a proposta do material didático que desenvolveremos no terceiro capítulo.

As fotografias advindas do processo de produção marcado por interesses de representar um ponto de vista subjetivamente processado, independente do aspecto social, político ou cultural retratado, ocupam o maior espaço nas pesquisas históricas, configurando como importantes fontes históricas. Os usos da fotografia enquanto fontes de estudo para a produção do conhecimento histórico e a crítica lançada sobre tais usos serão, em parte, abordados a seguir.