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A fotografia aliada à prática turística

Toda essa vivência obtida durante as viagens longas ou curtas incute no sujeito a necessidade de registrá-la para mostrar ao outro o que se viu e se praticou. Esse registro ocorre na forma de diários, como evidenciamos no capítulo anterior. Também os jovens que realizavam o Grand Tour deviam relatar por meio de textos e desenhos o que aprenderam durante a jornada como caráter de comprovação. (ALMEIDA; ARAÚJO, 2012, p. 2).

São as fotografias e os vídeos que passam a cumprir mais tarde esse papel de documentação que os viajantes literários do século XIX exerciam (PEREZ, 2008, p. 53). Desde sua popularização no final da década de 1880, a fotografia mantém uma relação íntima com o turismo. Sontag atesta: “a fotografia desenvolve-se na esteira de uma das atividades modernas mais típicas: o turismo. [...] Parece decididamente anormal viajar por prazer sem levar uma câmera” (2004, p. 19-20 apud ALMEIDA; ARAÚJO, 2012, p. 4).

Os propósitos desses registros têm serventia social, como nos mostra Xerardo Perez:

O primeiro é o de demonstrar que se tem viajado e que o turista esteve ali. Esta prática alterotrópica serve também para afirmar e confirmar a pertença a um grupo social específico que pratica um estilo de vida específico e próprio da posição que ocupa na estrutura social. Além do mais, a imagem de confirmação de experiência turística tem como objectivo criar o memorandum da nossa acumulação de capital turístico, perpetuando assim uma memória e ajudando a reviver a experiência (Graburn, 1992: 64). (2009, p. 58)

Constatamos, então, que a fotografia é um dos meios que o sujeito utiliza para firmar uma identidade social para a sociedade. Esse indivíduo usa esse registro para expor a pertença a um grupo que tem recursos e oportunidades de viajar e conhecer lugares que agregam status e reconhecimento. Com a possibilidade gerada pela Kodak de tirar fotos com apenas um clique em um botão (ALMEIDA; ARAÚJO, 2012, p. 3), o hábito de fotografar o cotidiano se popularizou de forma surpreendente. Assim, o turista podia gravar o momento vivido e ter uma comprovação mais objetiva para exibir a terceiros.

Algumas das propagandas da Kodak eram especificamente direcionadas aos viajantes, afinal os turistas fabricam imagens e lembranças (AUGÉ apud PEREZ, 2009, p. 53), e agora, além de terem simples imagens pictóricas, os momentos vividos estavam eternizados despertando também memórias sensoriais que causam um efeito afetivo.

A fotografia nos traz a memória outros tipos de lembranças além da visual: os cheiros, a temperatura, o que estávamos sentindo no momento da fotografia. Tudo isso retorna, fazendo com que dificilmente nos desliguemos de nossas fotos, o que nos torna afetivamente ligados a elas. (ALMEIDA; ARAÚJO, 2012, p. 6)

Com a ascensão da internet e das redes sociais, “os usuários podem compartilhar as fotografias com seus contatos quase que instantaneamente” (ALMEIDA; ARAÚJO, 2012, p. 9), o que facilita muito a dinâmica da exposição de uma imagem que o indivíduo deseja divulgar. Amigos e familiares têm acesso mais rápido a esses registros gerados pelo viajante, que podem alcançar até pessoas sem relação direta com ele. E a interatividade imediata obtida nessas redes sociais, que comportam múltiplos formatos de conteúdo, como vídeos e textos, sacia essa vontade do sujeito em ser visto praticando turismo, vivendo tais experiências, conhecendo os lugares históricos e culturais consagrados etc.

Como nos diz Nery, as fotografias alimentam nos outros a “expectativa de sair”, devido a uma antecipação das experiências possíveis de serem vividas nas viagens de prazer (1998, p. 202). Talvez seja por isso que cresce cada vez mais o número de pessoas e projetos que utilizam as páginas do Facebook, blogs e canais no Youtube para relatar vivências, divulgando viagens. Isso gera estímulo, incentivo e encorajamento para que outras pessoas façam o mesmo. Por outro lado, vejo que também pode provocar uma comodidade no sujeito que acompanha aquelas histórias, em se sentir satisfeito por apenas assisti-las.

A fotografia ganha um papel de grande importância quando as pessoas praticam turismo, seja como registro afetivo ou como um atestado do que se viveu para aqueles que ficaram. O uso desse recurso de registro se faz presente em qualquer estilo de viagem que o sujeito escolha, inclusive no universo mochileiro. Os conceitos sobre turismo e sua relação com a cultura e com a fotografia abordados aqui ajudarão a entender a participação da figura do mochileiro no contexto das viagens.

3 NAVEGAR É PRECISO

Apresentados, nos capítulos anteriores, os conceitos necessários para fins deste trabalho – que visa a compreensão da viagem e do turismo na nossa sociedade –, a partir de agora usarei minha experiência em um hostel em Vitória (ES) para compreender as definições trabalhadas, além de focar mais no personagem do mochileiro. Começarei contextualizando o surgimento da prática mochileira e também o local escolhido para realizar a experiência de campo. Após essas exposições, a partir do suporte teórico que conduz este texto, elaborarei minhas análises pelos encontros e vivências experimentadas.

A figura do mochileiro, ou backpacker como foi originalmente denominado por Pearce em 1990, não possui uma origem bem definida e constitui uma classe que apresenta características diferentes dos turistas convencionais. Os pesquisadores atribuem suas influências a diferentes práticas, para alguns, os mochileiros advém dos Grand Tours, da busca por experiências pessoais e aprendizados sobre outras culturas (COHEN, 1973 apud OLIVEIRA, 2005 apud SAWAKI, D. E. et al., 2010, p. 5). Outros autores relacionam com a prática do tramping, no qual jovens viajavam pelas vilas exercendo seus ofícios, e aproveitavam para estudar e se aventurar nos destinos visitados (ADLER, 1985 apud OLIVEIRA, 2005 apud SAWAKI, D. E. et al., 2010, p. 5). Com o passar do tempo, esse estilo de viagem começa a adquirir motivações propositalmente turísticas.

Além dessas possíveis origens, esse personagem possui grande proximidade com o fenômeno hippie, que tem seu auge nas décadas de 1960 e 1970, e apresentava essa característica de viajar explorando locais menos massificados, além da busca por alternativas mais baratas, como por exemplo o uso das caronas para se deslocar; um recurso ainda bastante utilizado pelos mochileiros.

Esses viajantes rumaram a muitos lugares distantes das rotas turísticas convencionais, impulsionados pela crítica à alienação produzida pela própria sociedade e pela incapacidade de encontrar autenticidade para a volta. Dessa forma, Cohen (2003) vê o vagabundo/hippie como um modelo ideológico que os mochileiros atuais pretendem recriar (FALCAO, 2016, p. 83)

É importante ressaltar que a Geração Beat, abordada no primeiro capítulo, é considerada como os pais dos hippies, e estes vieram traçar novos modelos de

vivência, e de viagem, a partir da filosofia dos beatinks. Os mochileiros se conectam bastante com os ideais que esses grupos constituíram, por isso se misturam e são constantemente identificados como integrantes dessas tribos, apesar de hoje em dia apresentarem diferenças um em relação ao outro.

Somente nessa década [1970] foi estabelecido um conceito ao mochileiro diferenciando-o do movimento hippie, mas foi na década de 1980, que o fenômeno voltou a crescer gradualmente. Porém o perfil do viajante começou a se alterar, esse viajante passou a ter mais escolaridade, ser majoritariamente europeu, de classe média, solteiro, obsessivamente preocupado em gastar pouco. Mesmo com as mudanças, muitas pessoas ainda associam a imagem desses dois personagens, os mochileiros e os hippies dos anos 1960-70, como sendo o mesmo. (SAWAKI, D. E. et al., 2010, p. 6)

Uma diferença que podemos considerar atualmente é o estereótipo estético e profissional, o mochileiro não necessariamente usa dreadlocks ou vive de artesanato; um perfil constantemente rotulado aos hippies. Qualquer indivíduo, independentemente do ofício que exerça e das características estéticas que possua, pode se identificar como mochileiro, visto que hoje essa prática é entendida com uma modalidade de viagem. Se antes quem se aventurava nesses tipos de viagens eram pessoas sem planos, lutando contra o consumismo e com um olhar plenamente direcionado à vida e à natureza, agora a viagem passa a ser mais planejada, focada na busca de experiências e aprendizados e usada como um movimento interno de autorreconhecimento, um modelo de Pessoa muito próximo com o polo individualista, definido por Nery no início deste trabalho.

Dentre as características mais marcantes do mochileiro, encontramos a procura por custos baixos, liberdade, independência e autonomia no planejamento. É um sujeito que viaja por períodos mais longos e que tem como motivação a descoberta de si e do outro. Por isso, as práticas, os costumes e os hábitos do local visitado ganham sua atenção. Esse viajante busca entender sobre a história e a cultura do destino, e é nesse ponto que o percebo como um potencial turista cultural. É certo que podemos nos deparar com essa figura em qualquer lugar, pois para ele tudo é digno de ser visitado e descoberto, mas é inegável que há espaços mais propensos a uma circulação maior de pessoas que se apresentam como mochileiros e praticam esse estilo de viagem, como por exemplo os hostels. O

conceito de hostel surge em 1909 a partir das observações de um professor alemão chamado Richard Schirmann,

que acreditava que a experiência era a melhor forma de transmitir conhecimento. Por isso, organizava excursões e caminhadas com seus alunos. Em um desses passeios, eles foram surpreendidos por um temporal e se abrigaram em uma escola. Foi quando Richard teve a ideia de criar espaços coletivos a preços acessíveis para que mais jovens tivesse a oportunidade de viajar e conhecer novos lugares. O movimento cresceu e se diversificou. Hoje, os albergues são estabelecimentos com preços acessíveis, sem abrir mão do conforto, qualidade e segurança. Os hostels oferecem quartos coletivos ou individuais, com espaços de uso comum e área de lazer. (AMBRÓSIO, 2017)

Esse tipo de hospedagem foi muito bem aceito pelos mochileiros, já que ia ao encontro de suas necessidades de economia e possibilitava uma convivência social mais dinâmica, cheia de trocas. Sendo assim, encontrar os mochileiros em um hostel, no decurso da sua viagem, pareceu uma boa opção para realizar minha pesquisa de campo. No entanto, era de fundamental importância achar um local que fosse sensível à história, cultura e trocas socioculturais, ao invés de um estabelecimento focado apenas nos serviços básicos de hospedagem e acomodação, para que fosse possível atingir os objetivos deste trabalho. Dessa forma, a seguir, contextualizarei e apresentarei o espaço que foi meu ambiente de observação durante dois meses.