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maneira associada ao dehors diz respeito às necessidades e às relações que ele coloca em jogo, não sendo apenas retórica de deslumbramento ou vontade de uma filosofia precária, notadamente em Le livre à venir.

Seria preciso uma fala dos confins, para uma relação com aquilo que a cultura rejeita. Como seria possível, então, uma história do dehors?

Da clausura do fora ao fora da clausura (1989) conversa com a História da loucura e com essa impossibilidade de se fazer uma história da desrazão. Ou, dizendo de outro modo, com a impossível história da desrazão, feita mesmo desta impossibilidade no livro de Foucault. Em outra ocasião, talvez valesse a pena assumir a empreitada de definir o que seria a desrazão, isto é, o dehors, mas talvez justamente o que o defina seja o que está apontando-se: esta “indefinição”, e sua relação com a História.

É assim que Foucault não faz uma história da desrazão no sentido positivo, mas não porque suponha que ela seja algo imutável ou a própria essência da loucura histórica, “substrato eterno e inefável”. Ele não o faz porque a desrazão, sendo “aquilo que arruína a possibilidade de qualquer história”44, constitui-se como negação da história no sentido de

dialética, encadeamento, acumulação, progresso e sentido. Dessa forma, seria preciso traçar a história da desrazão sem que ela fosse ouvida ou, nos termos de Foucault, em algum outro nível arqueológico da história da loucura; e de tal forma que não a fizesse aparecer historicamente, na medida em que ela se constitui como uma “modalidade de experiência

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da alteridade historicamente constituída, cujo traço maior residiria precisamente em contestar a história”45.

Pode-se ver as marcas desta história entre aspas saltarem nas bordas, nas rebarbas do texto de História da loucura; na vertigem, diz Pélbart: “o texto está entrecortado por passagens onde reina uma espécie de vertigem da linguagem que não decorre apenas do enlevo poético do autor”46. Esse pathos é “indício de que o estudo

penetrou numa zona de turbulência, isto é, que passou para o nível arqueológico referente à desrazão”47, e não uma simples escolha estilística.

No contexto de sua proposta de trabalho, Pélbart não apenas fornece um mapa histórico do pensamento-louco, mas o faz dando à proposta de se realizar uma busca histórica pelos rastros impossíveis do dehors (feita em La pensée du dehors)48 uma resposta

feita com os não-só enlevos (encanto, fascinação, deslumbramento) poéticos do próprio texto foucaultiano. Ele encontra, na História da Loucura, e aqui encontrar não é menos do que forjar com restos e murmúrios, a dissimulação daquilo que só poderia, afinal, aparecer na ausência dissimulada de si mesmo: uma história da negação da história, isto é, do dehors.

Trata-se de uma leitura que se faz delirante na medida em que se abre no espaço ambíguo entre o falar (leguein) e o esconder (kupteiri) das tramas textuais da História da Loucura e que, com isso, dá a deixa para a afirmação do que talvez seja o maior mérito (poético) desta: suas aberturas para o delírio, sua sedução ameaçadora. Trata-se, ademais,

45 Ibidem: 67. 46 Ibidem: 67. 47 Ibidem: 67.

48 Foucault diz, em La pensée du dehors (a tradução a seguir está presente em O pensamento do exterior,

1990): “Qualquer dia terá que tratar de definir as formas e as categorias fundamentais deste ‘pensamento exterior’. Teremos também que nos esforçar por encontrar o vestígio de seu trajeto,para buscar de onde provém e a que direção nos leva” (p. 20).

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de uma interessante incorporação, pela metodologia, de sua defesa por um pensamento que encontra suas potencialidades avizinhando-se da loucura. Trata-se, também, da moção de seu pacto com o texto.

Maquinadas na vertigem da linguagem, tais aberturas acontecem quando o estudo penetra uma “zona de turbulência” e passa “para o nível arqueológico referente à desrazão”, diz Pélbart; acontecem, portanto, quando a escrita se faz em relação com o dehors: quando se coloca em relação a ele a partir de um pacto silencioso, mas reverberante. Não se trata da elaboração de uma sintomatologia: não há um corpo doente de loucura, mas uma loucura que é corpo/atração – que leva o corpo e o texto aos limites do viver/dizer. De uma loucura cujo contágio depende de um corpo neutro.

Talvez pelo pathos, talvez pela força de delírio – o caso é que essa leitura sorri para a malícia de que, se pensamos sobre o dehors, não sabemos se pensamos nele – sob a influência de suas forças – ou sobre ele (no sentido de tomá-lo como assunto), na medida em que ele solicita certa espécie de pacto de afecção. É preciso, afinal, vender algo como a alma para conseguir do dehors sua promessa: seria preciso vender a “pessoa”, sair de si, para cavalgar o limite, arriscar o limite de si em um envolvimento afetuoso com a escrita. É preciso, nesse sentido, conquistar a relação neutra tal qual proposta por Blanchot.

A suspeita que essa dissertação assume é a de que tal pathos, no que diz respeito ao pensamento do dehors, é maquinado pela relação entre o que é pensado e o pensamento. Algo aconteceria, afinal, quando o horizonte problemático a ser pensado é o próprio território que suporta esse pensamento; algo que talvez seja a invenção do pensamento pelas ruínas de sua própria impossibilidade – nos tons da arte moderna que, impossível, aconteceria na “surpresa daquilo que é sem ser possível, daquilo que deve

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começar no extremo, obra do fim do mundo, arte que encontra seu começo somente ali onde não há mais arte e onde não há condições para ela”49.

Seria o caso de “desenvolver as armas”, isto é, “os meios de expressão necessários para pensar aquilo que escapa à representação”50 e, consequentemente, ao

pensamento reflexivo. Sua diferença, em relação à representação, não estaria na negação da mesma, mas no fato de que uma trabalha com as formas prontas e a outra busca na experimentação na escrita um elemento constitutivo do pensamento, isto é, deste pensamento na escrita. Há, neste esforço, a tentativa de dirigir a linguagem representativa/reflexiva, “não mais para uma confirmação interior (...), mas somente até um extremo em que necessite ser refutada constantemente”51.

O caso é que dizer coloca em jogo inventar a possibilidade de dizer, isto é, forjar na linguagem a possibilidade de um dizer – forjar o dizer desde sua impossibilidade. Revirar a linguagem tem a força de movimentar aberturas nessa possibilidade: escrever é, nesse contexto, deixar agir o demônio perverso que parece querer romper com o que torna o discurso possível – diz-nos Blanchot, no que Bruns52 aponta como uma paródia da figura

de Sócrates cujo daimon por vezes impedia de falar e agir no mundo.

De forma semelhante, o dehors se inventa desde sua impossibilidade: o dehors inventa sua aparição, dissimulada, na escrita em que acontece a relação neutra, inventa-se enquanto dissimulação na escrita e coloca-se em jogo como relação dissimulada, como ruína do regime de presença e visibilidade que não o suportaria e que ele não suportaria. Inventa-se como demônio que possui o corpo da escrita, como o neutro.

49 BLANCHOT, 2005: 156.