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constantemente o trabalho da reflexão a outra coisa, onde justamente a reflexão se interrompe”55. Esta outra coisa afeta, até o ponto em que a linguagem resiste “a liberar uma

certeza”.

Resiste a liberar uma certeza. Por um lado resiste à certeza que ele deseje liberar pela palavra, mas por outro sobreleva o regime de escrita que está em jogo: em que a palavra libera, e não em que o sujeito expressa. Em que a linguagem faísca, se a tentam domar, em algo como o que ela quer dizer: palavra desejante – que resiste a liberar uma certeza, que resiste palavra.

A pergunta que se faz inevitável, não somente no contexto da leitura de Da clausura do fora ao fora da clausura, mas também no contexto dos percalços a que se pretende essa monografia, é, justamente, como resistir ao dehors sem, no entanto, investir em tal distância que torne o pensamento inviável. Afim, afinal de contas, da questão mobilizadora do trabalho de Pélbart, isto é: como pensar a desrazão sem, no entanto, ser arrebatado pela loucura? E, já que se tratava de um trabalho com preocupações acadêmicas: como pensar a desrazão sem ser arrebatado por ela (e, consequentemente, pelo pathos da linguagem)?

Ou, ainda: o que se coloca em jogo, quando se permite uma escrita que, aproximada do dehors, não prioriza a clareza, mas o dizer daquilo que só pode ser dito sem ser ouvido? E, no caso dessa pesquisa, o que se modifica quando Le livre à venir opta não por uma linguagem de clareza, mas por pactuar com o dehors e, a partir da relação neutra que se estabelece a partir da escrita, põe-se a falar do dehors e a pactuar com ele em seu texto?

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O dehors requer essa referência oblíqua cuja indeterminação é importante para a compreensão do que está em jogo56, e de tal forma que em geral todo dizer sobre o dehors

remonta a uma linguagem desejada (à promessa de uma linguagem, a uma “poética fora de si”), possível ou não, e à proliferação das poéticas potencializada pelo espaço “delirante” da promessa ambígua. Referência oblíqua, que custa a determinar-se: em que o dehors pode aparecer, mas somente como “ausência que se retira no mais longínquo de si própria e se reflete no sinal que faz para avançarmos para ela, como se fosse possível alcançá-la”, pois sua presença também é, de certa forma, oblíqua.

A força da aproximação que não pretende capturar o dehors, mas a ressonância de seu afago na escrita (o neutro), é que nos deixa suspeitosos de que haja uma vontade dessa espécie de poética do dehors. Ainda poética, apesar das aspas e embora não se faça em um tom esquematizador, na medida em que acontece na invocação de uma linguagem desejada. Essa vontade talvez seja o indício de que jamais chegaremos de fato ao dehors, na medida em que não possui presença, e esta seja talvez a oportunidade de estarmos de alguma forma sempre nele, mas principalmente indício de que só podemos chegar a ele através da promessa que de certa forma o constitui e que o faz, outra vez, pathos de uma escrita arrebatadora.

Se o dehors não é algo que possamos capturar nem mesmo pelo dizer, o que faz com que o dizer sobre ele se aproxime sempre um tanto mais da loucura entendida como certo deixar dizer, isso não quer dizer que não seja possível relacionar-se com ele. Essa “poética do dehors” que faz com que a referência a ele se dê na promessa de uma linguagem, parece-nos, está ligada à sua íntima relação com o neutro. O neutro é a

56 PAYO, Patrícia San. “O ‘Fora’ de Blanchot: Escrita, Imagem, Fascinação” in ANGHEL, Golgona;

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possibilidade de a linguagem continuar promessa pela suspensão do discurso; o neutro é a relação que transforma o corpo da linguagem e torna-a lugar de possível atravessamento pelo dehors, pelo desconhecido, pelo outro.

É por esse viés – afirmado nos argumentos e na “maneira” de Da clausura do fora ao fora da clausura – que a História da loucura não pode ser apenas a história da loucura, mas também a do silêncio em relação ao dehors. De tal forma que esse silêncio, no texto de Foucault, é feito do borbulhar da linguagem, e não do mutismo histórico decorrente do enclausuramento da loucura. Se não se pode dizer, deve-se operar pelo silêncio; se não se pode dizer no discurso, o dehors inventa sua possibilidade/escrita (a relação neutra, propomos aqui).

É assim que, da eclosão do mutismo em que é metido, o dehors ressurge em sua “forma agora mortífera”: em que “a desrazão recupera a palavra do modo mais paradoxal possível, como ausência de obra”57.

Experiência que teve de permanecer então não exatamente enterrada pois não havia contudo penetrado na espessura da nossa cultura, senão flutuante, estranha, como exterior a nossa interioridade durante todo o tempo em que se estava formulando, de maneira mais imperiosa, a exigência de interiorizar o mundo, de suprimir as alienações, de ultrapassar o falaz momento da ‘Entäusserung’, de humanizar a natureza, de naturalizar o homem e de recuperar na terra os tesouros que se tinha dilapidado nos céus.58

Procuraremos pensar, aproveitando a oportuna relação realizada por Pélbart, essa impossibilidade de um pensamento do dehors na filosofia ocidental (do dehors na filosofia, e na filosofia sem despedaçá-la). Por outro lado, procuraremos pensar, também, as metamorfoses que essa possibilidade inventada movimenta consigo, isto é, as aberturas no terreno do possível para o pensamento. Estas aberturas se fazem quando é possível trazer o

57 PÉLBART, 1989: 60.