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Paul-Michel Foucault nasceu em 1926 na cidade de Poitiers, França, e morreu no ano de 1984. Foi um dos mais influentes pensadores franceses da contemporaneidade. Em seu estudo desenvolveu importante análise da epistemologia do surgimento das ciências humanas e da sua função na nossa cultura, bem como fez uma profunda reflexão, que o levou a um novo direcionamento à noção que se tinha até então sobre a definição de sujeito. Por outro lado, por empregar um método de estudo e interpretação que consistia na análise do discurso, tomou como ponto de partida o conceito de episteme:

[...] foi reintroduzida na linguagem filosófica por Michel Foucault com um sentido novo, para designar o “espaço” historicamente situado onde se repete o conjunto dos enunciados que se referem a territórios empíricos constituindo o objeto de um conhecimento positivo (não - científico) (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2006, p. 87 – 88).

ou, ainda, como uma rede de significados – uma estrutura discursiva – que caracterizaria uma determinada época nos diversos setores de uma sociedade ou de uma cultura.

Foucault realizou o que chamou de “análise arqueológica”, com a qual, de forma original característica de seu pensamento, analisa a história das ideias. As bases desse pensamento estão na obra Arqueologia do saber (2000). O estudo é, na verdade, uma análise do discurso, tomado, no entanto, num sentido anterior a qualquer padronização ou categorização, na tentativa de estabelecer relações que fujam a temas previamente postos, ao mesmo tempo em que identifica com grande rigor que as caracterizações ocorrem no próprio discurso. Portanto, no caso do conceito de sujeito, este se faz não de forma já posta, já dada pelo mundo, como apregoava a filosofia até então, mas se dá pelos discursos que falam, que dizem sobre ele. O conceito de sujeito é o que se fala dele. “O homem é uma invenção que a arqueologia de nosso pensamento mostra claramente a data recente, e, também, o fim próximo”. (FOUCAULT, 2000, p.40).

Influenciado por Nietzsche, Foucault direciona seu método para outra perspectiva, que chamou de “genealogia”, conceito introduzido na obra Vigiar e punir, de 1975. Explicam Japiassú e Marcondes:

Michel Foucault retoma o método genealógico inaugurado por Nietzsche, mas para investigar os processos de formação dos discursos, sua formação ao mesmo tempo dispersa, descontínua e regular. A genealogia passa a ser uma arqueologia dos conjuntos conceituais, que ele considera como um tipo novo de epistemologia histórica, englobando tanto a filosofia, a literatura e as artes quantos os métodos científicos. Esse estudo se distingue da genealogia pelo fato de não procurar as origens e as continuidades históricas, mas de detectar, para uma fase dada, as mais fortes estruturas: as formações culturais deixam de serem consideradas “documentos” e se convertem em “monumentos”. (2006, p. 120).

Também entende que a genealogia é, em sua essência, uma análise histórica de como o poder pode ser considerado como elemento que explica a produção dos saberes. Sua concepção de poder pode ser entendida como sendo um modo de ação de alguns sobre outros. Nessa perspectiva, o exercício do poder está vinculado às condições políticas que o tornam possível, sem que com isso a ideia de poder esteja diretamente vinculada ao Estado, mas, sim, às várias instâncias da vida social e cultural de uma sociedade, o que ele próprio chama de “microfísica do poder”.

Com base nessas considerações preliminares e de acordo com o objetivo deste trabalho, que trata de discurso na perspectiva de Foucault, este é compreendido como uma prática que forma o próprio objeto de que se fala, ou, em suas próprias palavras, “[...] que consiste em não mais tratar os discursos como conjuntos de signos (elementos significantes que remetem a conteúdos ou a representação), mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam”. (2000, p. 56)

Assim, no caso dos discursos sobre matemática, tendo origem em proposições de mudança, de conteúdos, de abordagem pedagógica, de inserção de novos procedimentos no ensino e na avaliação da matemática, entre outros, vão contribuir, em termos práticos, para que a matemática seja fruto do próprio discurso que a constitui. Isso me leva a concluir que a matemática torna-se aquilo que o(s) discurso(s) enunciava(m) no período considerado neste trabalho sobre ela própria.

Também no entendimento de Foucault, o discurso, como tal, não pode ser entendido apenas como parte complementar da língua, muito menos reduzido à situação de objeto de uso da língua. Sua função é muito mais que isso, pois, quando associado à língua, é referendado pela interpretação daqueles que a usam – seres históricos –, que, por sua vez, ao tomarem a palavra, dão sentidos a esta, pois a fazem elemento de memória do já dito anteriormente, num processo sempre constante, o qual percorre sempre um caminho de construir e reconstruir.

É compreensível e necessário perceber que o ato discursivo, seja escrito, seja falado, ocorre num dado momento histórico, estando vinculado ao contexto onde se produz; e próprio do lugar de onde fala o sujeito que discursa e nunca vai se repetir, já que esse momento é único, impossível de ser recuperado.

Ora, creio que o problema não é de se fazer a partilha entre o que num discurso revela da cientificidade e da verdade e o que relevaria de outras coisas; mas de ver historicamente como se produzem efeitos de verdade no interior de discursos que não são em si verdadeiros nem falsos. (FOUCAULT, 1979, p. 7).

Ao se considerar quem enuncia um discurso, este é um ser histórico e um ser social. Tal característica faz com que sua fala tenha como resultado um discurso mesclado, ou seja, existem simultaneamente na prática discursiva sua história pessoal e história social. Nesse processo dinâmico muitas são as vozes que circulam, originando uma mescla de muitos sentidos que interagem de forma dinâmica, com o que se criam e se recriam significados; se constituem, desconstituem e se reconstroem representações de mundo, ao mesmo tempo em que o próprio discurso se faz representar no mundo. Assim:

Discursos como a economia, a medicina, a gramática, a ciência dos seres vivos, dão lugar a certas organizações de conceitos, a certos reagrupamentos de objetos, a certos tipos de enunciação, que formam, seu grau de coerência, de rigor e de estabilidade, temas ou teorias. (FOUCAULT, 2000, p.71)

Dessa forma, no contexto deste trabalho, os artigos publicados, sobre matemática na Revista do Ensino/RS tentaram dar conta de levar aos leitores e envolvidos em suas propostas informações sobre o que estava se descortinando em matemática no mundo e no Brasil naquele momento. Ao mesmo tempo em que traziam informações sobre a matemática, constituíram-na como elemento conceitual junto a todos que estavam, naquele período, interessados em compreendê-la melhor.

Os discursos sobre a matemática, ou as ideias que se vinculam a ela, estão compostos de inúmeras marcas culturais, históricas e sociais, fruto do próprio processo que os constituíram. Assim, esses discursos não assumem somente uma fala sobre o elemento foco de sua expressão – matemática –, mas uma dinamicidade que constitui o próprio elemento, ao mesmo tempo em que se funde a ele, a ponto de não ser possível aos que falam perceber os elementos que os constituíram. Por isso, o significado que se dá a um objeto está diretamente ligado às limitações impostas pelo discurso, que, por sua vez, têm origem em práticas nas quais as relações de poder estão perfeitamente delineadas. De acordo com Foucault:

O importante, creio, é que a verdade não existe fora do poder ou sem poder (não é – não obstante um mito, de que seria necessário esclarecer a história e as funções – a recompensa dos espíritos livres, o filho das longas solidões, o privilégio daqueles que souberem se libertar). A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coesões e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade, isto é, os tipos de discursos que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que tem o encargo de dizer o funciona com verdadeiro. (FOUCAULT, 1979, p. 12).

É necessário salientar que em Foucault a ideia de poder não possui a mesma conotação que em Max Weber, porque o conceitua como a capacidade de controlar indivíduos, eventos ou recursos; já para Karl Marx o poder não se caracteriza nas relações entre indivíduos, mas na dominação e subordinação de classes sociais, tendo como base as relações de produção.

Foucault vem inovar na concepção de poder porque considera que

[...] o poder não é algo que se detém como uma coisa, como uma propriedade, que possui ou não. Não existe de um lado os que têm o poder e de outro aqueles que se encontram dele alijados. [...] o poder não existe; existem sim práticas ou relações de poder. O que significa dizer que o poder é algo que se exerce, que se efetua, que funciona. (1990, p.XIV).

Ainda para Foucault, o poder sobre indivíduos possui uma tecnologia própria de controle, sendo exercido não apenas por meio dos poderes constituídos ou do Estado, mas dos modos os mais diversos, numa multiplicidade de sentidos, em níveis distintos e variados, muitas vezes sem que isso seja percebido pelas pessoas. Além disso, o exercício do poder não se faz pela necessidade do uso ou pelo apelo a estratégias repressivas. Quando isso se dá de forma não repressiva, Foucault chama de disciplina ou poder disciplinar, o qual “[...] implica um registro contínuo de conhecimento. Ao mesmo tempo em que exerce um poder, produz um saber” (FOUCAULT, 1990, p. XVIII).

Saber e poder se correlacionam mutuamente: não há relação de poder sem a constituição de um campo de saber, como também, de forma semelhante, todo saber constitui novas relações de poder. Todo ponto que canaliza poder é, ao mesmo tempo, um ponto, um lugar, de formação de saber.

Cada vez mais se impõe a necessidade do poder se tornar competente [...] todo agente do poder vai ser um agente de constituição de saber, devendo enviar aos que lhe delegaram um poder, um determinado saber correlativo do poder que exerce. [...] O saber funciona na sociedade dotado de poder. E enquanto é saber que tem poder. (FOUCAULT, 1990, p. XXII).

Uma ilustração de como o conhecimento – também o matemático – pode ser compreendido do ponto de vista da perspectiva foucaultiana é dada por D’Ambrosio:

Todas as estratégias de sobrevivência e de transcendência são organizadas intelectualmente e compartilhadas socialmente, graças a um sofisticado sistema de comunicação, característico da espécie humana. Esses consistem de explicações e de estratégias para lidar com fatos e fenômenos, que possibilitam sobreviver e transcender por famílias, comunidades, uma população. Os sistemas de conhecimento são, eventualmente, expropriados por indivíduos e grupos, organizados no que se identifica como poder. A estrutura de poder fica, então detentora dos sistemas de conhecimento e, portanto, das estratégias de sobrevivência e transcendência, e as institucionaliza. Uma vez institucionalizados, os sistemas de conhecimento e as estratégias de sobrevivência e transcendência são devolvidos à população. Essa mesma população que, em primeira instância, foi responsável pela geração desse conhecimento e das estratégias. Mas a devolução, na forma de transmissão e difusão, é submetida a filtros, com o objetivo que seja transmitido e difundido apenas o que interessa à estrutura de poder. Grupos de indivíduos e sociedades subordinados a uma estrutura de poder que se assemelham, constituem as civilizações. (2008, p.23).

E são justamente tais civilizações, imbuídas de poder para tal, que constituem elementos considerados culturalmente aceitos como verdadeiros e apropriados para os membros desse grupo.

Nessa perspectiva, a dinâmica cultural na qual estava imersa a Revista do Ensino/RS garantiu elementos próprios de controle ao determinar o que poderia ser publicado em suas páginas. Ao se imbuir dessa visão, estava consolidando seu poder perante os leitores, que, por sua vez, atribuíam-lhe crédito para continuar sendo referencial de onde emanava mais poder, num fluxo contínuo. Essa prerrogativa pode ser ilustrada pelo seguinte trecho:

NOTA DO SERVIÇO DE SUPERVISÃO TÉCNICA DA REVISTA DO ENSINO.

O Serviço de Supervisão Técnica da Revista do Ensino se reserva o direito de, não só de aceitar ou rejeitar as colaborações enviadas, como ainda, o de opor notas esclarecedoras àqueles que, em algum aspecto, possam colidir com a orientação da Secretaria de Educação Cultura. (RE, nº. 61, s. nº. p.).

A citação transcrita evidencia o quanto era importante aos autores dos artigos escreverem matérias em concordância com o pensamento vinculado ao periódico. Da mesma forma, os artigos publicados eram escolhidos por terem referência acadêmica, ou por serem de autoria de grupos de pesquisa, ou, ainda, por serem baseados em publicações estrangeiras, o que lhes atribuía poder para serem

considerados como formadores de opinião e referenciais em diferentes questões, no caso, sobre matemática. Assim, também os autores dos artigos publicados em suas páginas escreviam para o periódico considerando-se produtores de verdade. Para Foucault, a verdade está ligada a sistemas de poder; no caso, os autores precisavam divulgar a verdade ou as verdades por meio dos discursos que produziam.

Dessa forma, os artigos publicados na RE/RS catalisaram para si as atenções e o reconhecimento como publicação com poder de produzir conhecimento numa dinâmica constante. Nessa perspectiva, é admissível considerar a Revista do Ensino/RS, com seus artigos, como um foco privilegiado de onde emanaram discursos que levaram a matemática e as ideias sobre ela a circular, no estado do Rio Grande do Sul, o que merece um estudo para entender e explicitar o que dizem esses discursos.

2.2 O Centro de Pesquisas e Orientação Educacionais do Rio Grande do Sul –