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CORPO III POR UMA ÉTICA E ESTÉTICA DO CORPO DEFICIENTE POSSÍVEL

3.1. FOUCAULT E O LEGADO DA NOÇÃO DE CUIDADO DE SI PARA A

O que se pode aprender com a noção foucaultiana de cuidado de si na reflexão pedagógica contemporânea?

Para alguns pesquisadores da área educacional como Nadja Herman, Silvio Gallo, Cláudio Dalbosco e outros, essa noção tem sido utilizada para repensar e problematizar a respeito da formação humana e, consequentemente, levar a uma releitura crítica do sujeito da educação.

Oliveira e Valle (2014), a esse respeito, dizem acreditar que a retomada recente da noção de cuidado de si vem oportunizando, aos educadores brasileiros, um olhar diferenciado a respeito do sujeito para além das aporias originadas das discussões entre modernidade e pós-modernidade. Isso reflete a emergência de uma nova recepção do pensamento tardio de Foucault no campo da educação.

Neste início de milênio, o domínio da ética e a problematização da estética da existência são temas de destaque no cenário educacional brasileiro e todo este contexto busca fundamentação nos estudos tardios desenvolvidos por Michel Foucault, principalmente com relação à noção de cuidado de si, sendo esta o mote do movimento de tematização da experiência formativa numa visão pós- metafísica.

Ademais, segundo Oliveira e Valle (2014), é de causar estranheza a recepção de Foucault no contexto dos estudos sobre o sujeito da educação e de elementos da formação humana, já que estes se baseavam nos postulados da filosofia da consciência, em que Foucault era visto como um filósofo anti-humanista, desconstrucionista e desestabilizador desses postulados e dos pressupostos normativos da educação. Esta ideia inclusive levava a recepção de Foucault para aporias. Como poderia agora ser chamado para reativar os ideais da formação

humana? Porém, vale ressaltar que essa recepção do filósofo Michel Foucault no campo pedagógico brasileiro é composta de travessias não lineares, cheias de situações imprevisíveis, questionadoras e polêmicas como o próprio Foucault.

Nos anos 2000, destaca-se um Foucault indo além do pós-estruturalismo, estudioso da ética e dos processos de subjetivação; enquanto nos anos 1980 seus estudos foram marcados pela analítica do poder e no campo educacional esse poder tratado na obra Vigiar e Punir possibilitou analisar a estrutura escolar em relação aos termos dispositivo e disciplina. Na década de 1990, a receptividade aos estudos foucaultianos foi polemizada pela expansão do pós-modernismo e pós- estruturalismo, onde mesmo conquistando espaços na educação, os estudos de Foucault ainda causavam desconfiança quanto à validade dessa análise do poder no campo educacional; sendo visto como um desconstrutor dos fundamentos epistêmicos e normativos da educação. Apesar disso, o interesse pelas relações de poder continua expandindo para os conceitos da ética e governamentalidade.

Após a publicação das entrevistas e cursos inéditos realizados por Foucault nos últimos anos de sua vida, o campo educacional o acolhe enfatizando a importância não só da ética e da governamentalidade para as problematizações na educação como também de outras temáticas como, a estética da existência e o cuidado de si. Pela noção de cuidado de si a educação recebe o pensamento de Foucault, refletindo sobre experiência formativa e destacando o lado pedagógico do filósofo, caracterizando- o, segundo Oliveira e Valle (2014), dentro da teorização educacional contemporânea, como um “mestre do cuidado”.

Para Hermann (2005), o cuidado de si foucaultiano era um processo de busca de um "eu verdadeiro". Contudo, o sujeito “não tem fundamento e se constitui em práticas de si mesmo" (HERMANN, 2005, p.90). Alertando que se esse sujeito for submetido a éticas racionalizadoras se tornará normalizado, disciplinado e constituído. Com base nos estudos foucaultianos a noção de cuidado de si propõe ao sujeito ser um modelo positivo de experimentação, devendo ser instigado a ter uma atitude crítica diante dos limites impostos a ele, como o de “pôr a prova", testar, enfrentar os desafios. Provar sua capacidade para si mesmo, não alimentar as verdades do outro quando diz que ele é incapaz.

O cuidado de si estabelece uma ideia de formação humana com base no princípio da liberdade, construindo-se em um movimento de vida, crítica e resistência às práticas de assujeitamento. É a busca por outras formas de experienciar novas

maneiras de ser sujeitos da educação, onde seja possível refletir o ato de educar na perspectiva de uma obra de arte.

O ato de educar implica também atender as exigências do mundo plural, é possibilitar a constituição de sujeitos com multiplicidade de experiências. É favorecer através da atitude crítica e da experimentação oportunidades de criação e liberdade, tão defendidas nos estudos de Foucault, pois, segundo ele, obter liberdade com a experimentação é dar condições para a atitude crítica e para a criação de si. "Liberdade" é o motor do ser crítico e criativo. E, neste pensamento, os estudos foucaultianos contribuem decisivamente, pois caminham numa exaustiva prática da ética-estética por recriações pedagógicas que, na contemporaneidade, refletem na multiplicidade e na complexidade como bases norteadoras do agir humano.

A compreensão da noção do cuidado de si emerge no campo educacional por diferentes análises que, segundo Hermann (2005), recebem uma abordagem ética e estética, enquanto que para Gallo (2006, 2009) são éticas e políticas que contribuem para o que Gallo denomina de “educação menor” – a educação de nós mesmos. E essa educação de nós mesmos é o resultado do cuidado de si, que ele acredita que seja obtida a partir do exercício da escrita, como uma askesis, isto é, uma constante prática de si. Uma educação fundamentada no princípio da tekne tou biou - treino de si mesmo, resultando numa askesis, num treinamento prático, em uma experiência adquirida, onde a escrita se transforma num exercício do pensamento refletindo no modo do sujeito cuidar de si, sugerindo que o poder da escrita gera uma conduta capaz de alterar a própria vida.

Complementando, Gallo (2006) aduz que existe uma relação mútua no ato de educar, onde o exercício do cuidado do outro pode resultar num cuidado de si, como um reflexo, bem como, o cuidado de si torna-se um cuidado ético-político do outro. O referido autor denomina essa educação de Educação Menor, onde a educação do sujeito é caracterizada pela reciprocidade, num jogo em que uns se fazem livres aprendendo com a liberdade dos outros, onde a educação possa servir de caminho para a formação humana direcionada para uma vida não facista na perspectiva da criação de novos modos de vida.

Na interpretação de Cláudio Dalbosco (2009, 2010), as implicações da noção de cuidado de si enquanto “conversão estóica de si” estão relacionadas à governabilidade de si, e no campo educacional situam-se em dois eixos: o da governabilidade e o da ampliação do conceito de experiência formativa. A noção de

governabilidade direciona a coordenação da ação docente, onde o trabalho do educador deve ser o de ligar as questões existenciais às questões do conhecimento, pois, a ação do educador não pode ser resumida, nem ao simples repassar de conhecimentos, nem ao mero controle disciplinar das relações educativas.

No segundo eixo, Dalbosco (2010) enfatiza a constituição do sujeito para além da visão de "quem sou eu", bem como na importância do papel do educador, indo além de um mero transmissor de conhecimentos como era visto tradicionalmente. Mas, a noção do cuidado de si como conversão estoica de si vai além disso, ampliando sua ação como "aquele que estende a mão", "que conduz para fora". Diz respeito a uma ação docente pelo exercício permanente de si para consigo mesmo levando a inclusão moral do outro.

Na perspectiva foucaultiana do cuidado de si o sujeito educacional não pode ficar "fora" da verdade, já que a verdade deve ser estabelecida na relação de si para consigo, ao mesmo tempo fazer uma cobrança de sua inserção no mundo. Dalbosco faz referência ao Foucault da obra Hermenêutica do Sujeito quando diz que ele abriu um caminho na escuridão na busca de sentido para a vida do sujeito, levando a possibilidade de refletir sobre os pressupostos epistemológicos das teorias educacionais e das práticas pedagógicas contemporâneas.

Por sua vez, Freitas (2010) enumera quatro características foucaultianas que considera relevantes para as práticas pedagógicas contemporâneas: ideia de liberdade, noção da ação pedagógica, compreensão da relação entre sujeito e verdade e a presença do educador.

Pagni (2010) em seus estudos baseados no pensamento tardio de Foucault refere-se a uma reconstrução da relação entre mestre e discípulos no campo das práticas do cuidado de si. Baseia suas afirmações no pensar das práxis pedagógicas contemporâneas, ancorado nos três modelos de cuidados de si antigos: estóico, socrático e cínico investigados nos estudos de Foucault na busca de uma ação pedagógica que possibilite aos alunos diferentes modos de vida, em que eles mesmos sejam responsáveis pelas suas escolhas. Isso permite repensar o cuidado de si e a docência na busca da dimensão política da ação pedagógica, fazendo da vida testemunho do cuidado ético.

De modo geral, todos esses autores buscam, fundamentando nos estudos de Foucault, refletir as noções de experiência e a práxis pedagógica da atualidade. Além de indicarem também a possibilidade de o sujeito construir outra relação com a

verdade a partir das práticas do cuidado de si, em que todos visualizam na noção do cuidado de si uma possibilidade de crítica, de resistência e da criação, “(...) uma possibilidade efetiva de pensar diferentemente os modos de formar o humano, impulsionando a abertura, no campo educacional, de outras vias para experienciar formas de vida resistentes” (OLIVEIRA E VALLE, 2014, p. 302-3). É no impulso criador do cuidado de si que reside a possibilidade de refletir, de recriar e de exercer outros modos de uma educação no presente, onde a ação docente e a constituição do educador como sujeito ético podem ser as bases para a formação de educandos éticos surgidos da própria experimentação de si.