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CORPO III POR UMA ÉTICA E ESTÉTICA DO CORPO DEFICIENTE POSSÍVEL

3.2 O OUTRO QUE NOS OLHA: A DIMENSÃO ÉTICA DA DEFICIÊNCIA

O enunciado: “O outro que nos olha” não está na simples ação de dirigir o olhar ao deficiente e sua deficiência, mas, em perceber sua presença, seu apelo, seu chamamento ético para entrar na relação com ele e sua deficiência. Um clamor existencial pelo contato, pelo encontro de olhares, e em seguida, pela inversão do olhar, possibilitando outras relações em outros espaços de convivência, libertando-o do labirinto que o aprisionou por anos.

Esta trajetória de lutas é composta pelas histórias de vários familiares que lutam pelo reconhecimento e respeito de seus entes deficientes, formando grupos que buscam apoio na ciência, para o diagnóstico e esclarecimentos da complexidade da deficiência, bem como, da área jurídica para consolidação de leis que protejam seus direitos. Um exemplo disso, foi a aprovação em 2012 da Lei Berenice Piana que ampara os direitos dos autistas, agora diagnosticados como: Pessoas com Transtorno do Espectro Autista –TEA, e que levou o nome da mãe de um autista, militante de movimentos sociais, e recentemente, em abril de 2015, a aprovação no Senado do Estatuto da Pessoa com Deficiência- Lei Brasileira de Inclusão, materializando uma luta de doze anos entre outras lutas.

Aliados aos familiares, outros grupos se fazem presentes, com profissionais atuando em hospitais, como o grupo APRENDE; em centros de apoio; em ONG’s como o grupo AMORA ; em grupos de pesquisas de universidades como o RESIGNIFICAR- PPGED/UEPA, o INCLUDERE/PPGED/UFPA e em sites que gerenciam eventos e socializam programações em âmbito nacional e internacional,

como o Movimento Down, o Deficiente Ciente, a Associação Brasileira de Déficit de Aprendizagem, o Vencer Autismo, o Autismo & Vida, a ABA e o AUTISMO.

No depoimento a seguir é possível visualizar uma luta que Antônio, deficiente visual, enfrenta diariamente ao ter que provar sua capacidade profissional perante os outros que os olham como incapaz:

[...] Profissionalmente eu tento sempre mostrar minha capacidade todos os dias pra que as pessoas possam crer ainda na nossa capacidade. Muitas pessoas se surpreendem quando eu digo que eu sou psicólogo, que eu atendo e que trabalho. Então a visão que a sociedade tem da pessoa com deficiência visual ou qualquer outro tipo de deficiência ainda é muito aquela de que nós não temos a capacidade total para ser um profissional com qualidade, e isso ainda está muito presente. (Depoimento 4).

Frequentemente o outro é olhado como o diferente; e quando em maior número são agrupados em categorias, que se formaram ao longo do tempo, classificando-os de inúmeras maneiras de acordo com a posição que assumem na sociedade. Será que não está no modo de olhar do outro a possibilidade da emergência do corpo deficiente possível? Apostar na inversão do olhar, o olhar do outro como uma contra- imagem ao olhar sobre o outro. Entendido como o outro, o diferente, o que não sou eu, ou mesmo, o que não somos nós, o diferente que vem recebendo várias nomenclaturas ao longo dos tempos: o louco, o anormal, a aberração, o selvagem, o marginal, o delinquente, o estrangeiro, o imaturo, a criança, o deficiente entre outras, sem que se tenha avistado mudanças radicais no modo de conviver com o outro socialmente, respeitosamente.

Uma das formas encontrada por Antônio para desconstruir a imagem que os outros fazem dele foi:

[...] Eu acredito que a nossa própria atuação dentro da sociedade é que vai poder alterar tudo isso. E, sempre acreditando no futuro, porque o ser humano deficiente precisa estar incluído na sociedade pra que as pessoas possam conhecer as nossas características, as nossas necessidades, e a partir disso, juntos, nós e a sociedade, vamos poder mudar essas realidades, porque ninguém consegue as coisas sozinho. Eu acredito muito nisso. (Depoimento 4).

O grito de alerta enigmático da exclusão propagado por todos, vale dizer, não só os deficientes, mas todos que se encontram à margem do ideal de perfeição,

causa incômodo e estremece os alicerces dos saberes sociais, desestruturando os poderes contemporâneos e incitando uma reflexão sobre:

Quem são? Por que são? O que querem? Por que incomodam tanto? Qual a verdade? A verdade está no corpo do menino que a suporta. Os fatos estão em seus gestos, fugas, impaciências, asperezas, certezas... na desobediência. No sacrifício do antes e no sacrifício até o fim (LARROSA, LARA, 1998, p.95).

É o outro que diz o que o deficiente pode, do que é capaz. É ele que forma a imagem do impotente, do improvável. Desenhou seu passado, desenha seu presente, limita seus caminhos e determina seu futuro.

No pensamento de Foucault, o corpo conforma-se às regras de objeto de pleno direito e em sua obra “Vigiar e Punir” (2001), ele mostra o tratamento dispensado ao corpo na generalização dos encarceramentos e na aplicação das disciplinas, fazendo do corpo o alvo de uma “microfísica” do poder, no caso, do poder político. E neste universo político, as relações de poder atuam sobre o corpo de maneira direta, investindo contra ele, impondo-lhe ordens, domesticando-lhe e obrigando-lhe a agir contra sua vontade, mas não sem nele exercer suas lutas, resistências, transgressões, pois, tomando uma assertiva foucaultiana, onde há poder há relação de liberdade e de possibilidades de múltiplas produções de seus efeitos. Pois, falar de política a partir de Foucault é falar de resistência, no caso dos excluídos, é não tomar esse corpo normativo como ideal (culto ao corpo perfeito). É lutar contra esse modelo imposto pela sociedade. Já que Foucault contrapõe os micropoderes ao macropoder.

O corpo aparece em Foucault como um composto de forças que se apresenta em constante combate, não se limitando às concepções orgânicas, mas como um campo onde operam diferentes dispositivos. O corpo olhado como um objeto que deve ser problematizado, investido por forças e finalmente produzido.

Com o dispositivo do Panóptico, Foucault analisa o controle do poder onde tudo se vê sem nunca ser visto. Uma técnica disciplinar difundida no corpo social como uma função generalizada, onde toda a sociedade acaba sendo atravessada e penetrada por mecanismos disciplinares.

A relação com o corpo exige atenção constante, segundo Foucault: “Essa preocupação com o meio, lugares e momentos, exige uma perpétua atenção de si, ao estado em que se está e aos gestos que se faz”. (FOUCAULT, M. 2007, p.107).

A genealogia como análise da proveniência procura na articulação do corpo com a história as marcas dos discursos que tanto controlaram, silenciaram e arruinaram o corpo. A problematização do pensamento, induzida por novas formas de pensar, fazem mobilizar a produção de modos de subjetivação por influenciarem os saberes e as relações de poder.

O pensamento se objetiva através do ver e do falar nas práticas discursivas e serão essas práticas discursivas que definirão as condições de possibilidades para que o novo possa surgir e possa ser validado.

Para Foucault o sujeito é o efeito do discurso ou das formações discursivas resultantes da rede de forças que surgem a cada nova relação do momento, e não linearmente na evolução histórica, na busca de sua constituição ética e estética.