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EFEITOS PERVERSOS DA DEMISSÃO DO ESTADO DA EDUCAÇÃO E DA DESERÇÃO DOCENTE

FRACASSO ESCOLAR E A PERMANÊNCIA DAS RAZÕES EXPLICATIVAS DE CUNHO MATERIAL E MORAL NA ESCOLA CONTEMPORÂNEA

6.3. O FRACASSO DOS INCLUÍDOS

Como mencionado anteriormente, há um tipo de fracasso escolar que considero subexplorado pela literatura sobre o tema, é o fracasso dos incluídos.

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99. A idéia de um contágio moral foi desenvolvida por Moraes (2006) considerando, entre outros autores, as discussões de Douglas (1991) sobre pureza e posteriormente, essa noção foi amplamente trabalhada em minha dissertação para falar sobre morte e contaminação.

Podemos encontrar essa questão em Bourdieu e Champagne (2012) e Aquino (1998). Bem, em princípio pensar no fracasso daqueles que estão incluídos parece paradoxal, porém é justamente o aparente paradoxo que faz desse tipo de fracasso eficiente na sua permanência. Talvez essa seja uma das formas mais perversas do fracasso escolar, pois muitas vezes mantém a comunidade escolar presa a uma falsa crença de aprendizagem e aproveitamento. Esse modelo é fundado não na exclusão, mas na manutenção de crianças e jovens na escola recebendo ensino de péssima qualidade com métodos ainda pautados na memorização mecânica de regras, fórmulas e datas. Nesse processo, os beneficiados pela democratização da educação, depois de uma longa jornada, percebem que não basta ter acesso para ter sucesso e que a promessa de escolaridade acaba por esbarrar na sua falta de efetividade.

De acordo com Bourdieu e Champagne (2012), a novidade em relação a um sistema brutal de eliminação precoce dos alunos é que agora a escola não os elimina mais, ela os mantém refém de um ensino que pouco ou nada significará.

Seria preciso mostrar aqui como, mesmo com todas as mudanças que vimos, a estrutura de distribuição diferenciada dos proveitos escolares, e dos benefícios sociais correlativos, se manteve sem grande esforço. Mas com uma diferença fundamental: o processo de eliminação foi adiado e diluído no tempo: e isso faz com que a instituição seja habitada a longo prazo por excluídos potenciais, vivendo as contradições e os conflitos associados a uma escolaridade sem outra finalidade senão ela mesma (Bourdieu e Champagne, 2012, pág. 482-483).

Dessa forma, o fracasso continua sendo o destino mais provável para os alunos das famílias pobres. À medida de sua inclusão e permanência na escola, carregarão um estigma muito mais pesado, afinal, ainda que nas aparências, tiveram chance. Quando o fracasso escolar passa a ser um processo diluído no tempo, ele oferece àqueles que o vivenciam a possibilidade de dissimular para si mesmos a verdade, “ou pelo menos ter boas chances de mentir a si próprios com sucesso”

(Bourdieu e Champagne, 2012, pág. 483). As consequências dessa situação aparecerão bem mais tarde, de forma a fazer adiar o balanço final, em que todo o tempo passado na escola parecerá morto, perdido.

A escola exclui, como sempre, mas ela exclui agora de forma continuada, a todos os níveis do curso, e mantém no próprio âmago aqueles que ela exclui, simplesmente marginalizando-os nas ramificações mais desvalorizadas. Esses “marginalizados por dentro” estão condenados a

oscilar entre a adesão maravilhada à adesão proposta e a resignação aos seus veredictos, entre a submissão ansiosa e a revolta impotente. Não demoram muito a perceber que (...) o diploma para qual se preparam é na verdade um título desqualificado; que o vestibular que podem conseguir, sem as menções indispensáveis, os condena às ramificações de um ensino que de superior tem só o nome... (Bourdieu e Champagne, 2012, pág. 485).

Assim, o aluno passa anos na escola aprendendo (não aprendendo, na verdade) uma série de coisas que não conseguirá empregar em conhecimentos mais profundos. Isso se reflete no ensino de regras gramaticais, por exemplo, que é muitas vezes feito de forma mecânica, que posteriormente o aluno não saberá empregar na construção de um texto ou na sua interpretação. Muitos alunos não aprendem a interpretar texto, só aprendem a encontrar respostas de forma extremamente automática em exercícios inócuos. A prova disso é que, quando fazemos uma pergunta cuja resposta demanda interpretar e não apenas localizar mecanicamente no texto a resposta, vemos os alunos dizendo: “professora, não estou achando a resposta no texto. Em que linha está?”. O que indica uma modelagem educacional extremamente limitada e mecanicista.

Sobre isso, a professora Loni Grimm Cabral (1988) da UFSC produziu um texto para justificar a importância de laboratórios de leitura ao invés da intensa preocupação com as regras gramaticais. Vejamos o texto:

Era uma vez dois trafelnos: Mirimi e Gissitar. Os dois trafelnos eporavam longe das perlongas. Um masto, porém, um dos trafelnos, Mirimi, felnou que ramalia rizar e aror uma perlonga. Gissitar regou muito. Ele rubia que Mirimi não rizaria mais da perlonga. Gissitar felnou, felnou, regou, regou, mas nada. Mirimi estava leruado: ramalia rizar e aror uma perlonga. No masto do fabeti, Mirimi rizou muito lento. No meio do fabeti, proceu Gissitar e os dois rizavam ateli. Gissitar não ramalia clenar Mirimi (pág. 78).

A seguir a professora realiza uma série de perguntas aos moldes dos livros didáticos e demonstra que, ainda sem nada entender, os alunos são capazes de responder mecanicamente todas as perguntas sobre o texto:

QUESTÕES:

¾ Quem eram os dois trafelnos?

¾ Onde eporavam?

¾ O que aconteceu no masto?

¾ No 5º período, a que se refere o pronome “ele”?

¾ Quem felnou?

¾ Mirimi estava leruado para quê?

¾ O que aconteceu no masto do fabeti?

¾ Por que Gissitar rizou com Mirimi?

A atividade procura evidenciar que a forma como ensinamos não alcança o resultado esperado. Muitos podem alegar que de 1988 para cá muitas coisas mudaram e que não é mais assim que se ensina nas escolas. Porém, podemos facilmente verificar que o ensino da língua tem um foco totalmente voltado para as regras gramaticais, para dar exemplo de uma área. Ao final do processo de escolarização, os alunos já esqueceram as tais regras e ainda por cima, mal sabem ler e escrever. O resultado disso pode ser facilmente verificado no Ensino Superior, principalmente das faculdades menores, para as quais esses alunos acabam indo.

Meu primeiro trabalho como professora do ensino superior foi em 2008 em uma pequena faculdade privada de periferia. Tive a oportunidade de perceber que os anos passados na escola muitas vezes fazem pouquíssima diferença no aprendizado dos alunos. Passo a narrar aqui algumas situações vivenciadas como professora de Sociologia em três cursos: Administração, Ciências Contábeis e Pedagogia.

Inicialmente, por nunca ter ministrado aulas naquela faculdade, montei um planejamento que precisou ser parcialmente reorganizado em função da falta de conhecimentos básicos. Havia planejado abrir a disciplina no curso de Administração falando um pouco do contexto histórico do surgimento da sociologia, contexto que teve de ser retornado até a pré-história. Rapidamente percebi que os alunos não sabiam dizer em que época histórica estávamos, nem mesmo o nome de épocas históricas anteriores. A maioria dos alunos pertencia à religião evangélica e acreditava que o mundo havia sido criado há dois mil anos. Confundiam o tempo de Cristo com o tempo do mundo. Precisei explicar que a Terra tinha aproximadamente 4,6 bilhões de anos e que muito antes de Cristo já havia sido habitada por vários outros seres vivos, inclusive dinossauros. Vários alunos não acreditaram e perguntei se nunca haviam visto na televisão ou ido pessoalmente a um museu de história natural. Eles riram e disseram que aquilo que os dinossauros eram, na verdade, jacarés e que no museu tudo era de mentira, feito de isopor. Expliquei que, às vezes, algum outro material era utilizado para completar as partes faltantes, mas que

esses esqueletos de dinossauros e outros animais pré-históricos eram frutos de achados arqueológicos. Expliquei ainda que havia conhecimentos científicos e religiosos e que, por mais que cada um tivesse uma religião, aquele era o espaço da ciência.

Conversamos ainda sobre Criacionismo X Teoria da Evolução. Uma aluna falou que não tinha como acreditar na Teoria da Evolução porque se fosse verdade que o homem descendia de algum tipo de macaco, como ela nunca havia visto um macaco se transformando em gente? Expliquei então como funcionava a teoria da evolução e quem havia sido Darwin. Na aula seguinte, quando cheguei para trabalhar, o coordenador me chamou na sala dele para dizer que os alunos haviam ido reclamar que eu havia duvidado de Deus e que tinha ofendido a crença deles com toda aquela discussão. Ele pediu que tivesse um poço mais de tato e sutileza porque ali havia muitos religiosos.

Segui minha saga histórica dizendo que longe de querer ofender o credo de cada um, eu queria falar de como a ciência vê o mundo, que assim como não iam à igreja para ouvir o pastor falando de pesquisas científicas, ali também não me veriam pregando religião, mas que isso não nos impediria de falar sobre ela durante o curso, até porque eu pretendia apresentar a eles “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” de Max Weber.

Voltei à contextualização histórica do surgimento da sociologia falando do Iluminismo e do deslocamento de uma moral religiosa para uma racionalidade.

Perguntei como era mundo antes da modernidade, na Idade Média e falei:

“Pensando nesse nome, Iluminismo, a Idade Média ficou conhecida como Idade das...” esperando que eles completassem a frase. Logo um aluno falou: “Das pedras professora”. Após explicar que era Idade das Trevas, perguntei se alguém sabia ou imaginava porque a Idade Média havia recebido dos Iluministas esse nome. Um dos alunos respondeu: “Essa é fácil professora! É porque na Idade das Trevas ainda não tinham inventado a luz elétrica e quando veio o Iluminismo, foi quando já tinham inventado a luz elétrica”. Lembremos que estamos falando de alunos na faculdade.

Ficava me perguntando o que haviam feito na escola durante todos aqueles anos, parecia que eu estava no programa de humor “Escolinha do Professor Raimundo”.

Em outra turma, de Ciências Contábeis, quando fui discutir a obra de Max Weber acima citada, comecei pelo título, perguntando o que haviam entendido sobre ele. Respostas ouvidas: “pessoas protestam por melhores salários”, “trabalhadores

em greve porque ganham mal”, “no capitalismo as pessoas têm direito de protestarem”. Ninguém conseguiu chegar perto do que Weber queria dizer. Para fazê-los compreender o que era a tal Ética Protestante fui explicar a Reforma Protestante. Quando falei sobre a venda de indulgências pela Igreja Católica, um dos alunos se irritou e perguntou em um tom alterado: “que absurdo isso, quem disse isso para a senhora?”. Eu respondi que isso era um fato que estava em todos os livros históricos sobre o tema. Ao final da aula, ele veio falar comigo e disse:

“Professora, com todo respeito, a senhora precisava ir na minha igreja, precisa abrir sua cabeça”.

Ainda sobre esse livro, na turma de Administração, uma aluna, que era mais velha do que boa parte dos alunos e que já havia feito outra faculdade comentou que havia achado o livro muito interessante. Disse que o capitalismo americano havia se desenvolvido muito mais rapidamente que o nosso, talvez, porque os EUA haviam sido colonizados por ingleses protestantes, enquanto nós brasileiros havíamos sido colonizados por católicos portugueses. Nesse momento, um aluno que era evangélico interrompeu: “Fale por você, eu nunca fui católico, não é porque eu sou brasileiro que sou católico”.

Esses são alguns exemplos de como a escola não cumpre sua promessa de educação e de como o fracasso foi construído através de longos anos de escolarização sem sentido. Nos níveis mais altos de escolarização, ainda que, como disseram Bourdieu e Champagne (2012), de superior por vezes nada tenham, a longa jornada do fracasso se completa ou se torna muito mais implacável na medida em que níveis de abstração cada vez maiores são exigidos. A grande maioria desses alunos estava cursando o ensino superior depois de terem iniciado a vida profissional, vários trabalhavam no chão de fábrica de grandes multinacionais nos arredores da faculdade. Alguns sonhavam com um cargo de supervisor e diziam que a faculdade era o passaporte para essa posição. No decorrer da faculdade muitos desistiram, achavam o curso difícil ou não conseguiam continuar pagando as mensalidades. Continuarão com seus empregos mal remunerados nos chãos das fábricas...

CAPÍTULO 7

PATOLOGIZAÇÃO DA INFÂNCIA E CRIMINALIZAÇÃO DA JUVENTUDE: DUAS