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RETRATOS DA EDUCAÇÃO CONTEMPORÂNEA: ENTRE CONQUISTAS E MAZELAS

OS PARADOXOS DA UNIVERSALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO: ENTRE AVANÇOS E REPRODUÇÕES

2.1. UNIVERSALIZAÇÃO E REPRODUÇÃO: ALGUNS PARADOXOS

É importante compreender que, se por um lado, muito mais crianças e jovens estão na escola, por outro, essa ampliação não significou necessariamente uma melhoria das condições de vida de todos os que a frequentam ou uma nivelação das oportunidades, como pensava Durkheim ([1922] 2010).

As razões disso são abordadas nas teorias sociológicas que percebem a escola como uma instituição que, ao invés de promover a transformação social, é muitas vezes um local de manutenção das desigualdades. As teorias que apontam o caráter reprodutor e conservador da educação ganham força principalmente a partir dos anos 70 quando os efeitos até então ocultos da universalização da educação começam a ficar evidentes. Os principais representantes dessas teorias são Louis Althusser, Bourdieu, Passeron e Champagne.

De acordo com Bourdieu e Champagne (2009), no caso da França, para cumprir as metas universalizantes da educação, as escolas se multiplicaram rapidamente nos subúrbios cada vez mais pobres, para acolher cada vez mais alunos, que estão cada vez menos preparados culturalmente para essa escola elitista. Paradoxalmente, mais alunos estão na escola, permanecem mais tempo nela, o período letivo é cada vez maior, no entanto, esses alunos aprendem cada vez menos e os índices de aproveitamento geral dos conteúdos – embora os índices de analfabetismo tenham diminuído radicalmente - envergonham as autoridades e os educadores, que se sentem completamente perdidos.

O mesmo acontece no Brasil. O número de alunos na escola cresceu enormemente nas ultimas décadas. De acordo com Goldemberg (1993), em 1950, apenas 36,2% das crianças de 7 a 14 anos tinham acesso à escola. Em 1990, esse índice havia atingido 88%. Como consequência desse esforço, a porcentagem de analfabetos na população de mais de 15 anos caiu de 50,6% para 18,4% no mesmo período.

Em 2012, os dados do MEC apontam que tivemos aproximadamente 92%

de crianças e jovens com acesso à Educação Básica (Educação Infantil, Fundamental e Ensino Médio). Em 2011, a taxa de analfabetos no país foi 7,9% da população. Mas, esses números surpreendentes não refletem uma educação de qualidade. De acordo com o “Anuário Brasileiro de Educação Básica” de 2013, referente aos anos de 2011 e 2012, as taxas de reprovação são altas no país. As estatísticas registram uma taxa média de reprovação de quase 10% no Ensino Fundamental e de 13% no Ensino Médio. No 2º ano do Ensino Fundamental, cerca de 7% das crianças de apenas sete anos de idade são reprovadas. Com isso, a reprovação é hoje um dos principais problemas da Educação brasileira com reflexos negativos evidentes, principalmente na mudança do Fundamental 1 para o 2. Os números mostram que, enquanto no 5º ano a taxa de reprovação é de 7,80%, no 6º ano é de 15,20%. As taxas de evasão no Ensino Fundamental chegam a mais de 4% no segundo ciclo. No Ensino Médio temos 13,10% de reprovação e 9,50% de evasão. Há também uma distorção de 23% entre a idade e a série dos alunos no Ensino Fundamental. No Ensino Médio essa taxa é de 33%.

Dessa forma, podemos verificar que estar na escola não significa, em muitos casos, receber a “nota promissória” que as políticas educacionais dizem assegurar:

oportunidades, ascensão profissional para as classes populares. Como isso acontece?

A teoria da reprodução desenvolvida por Bourdieu e Passeron (2009) revoluciona a forma de pensar a instituição escolar, porque os autores redirecionam os holofotes ao afirmarem que, ao invés de promover mudanças no sentido de diminuir as desigualdades sociais, a escola, através de uma série de procedimentos legitimadores e legitimados, trata, muito mais frequentemente, de manter o estado das coisas.

Tais autores desagradam muitos ao desvelarem que o fracasso escolar e, posteriormente, o fracasso na disputa das oportunidades no mundo do trabalho, não seria falta de mérito de certos indivíduos, mas sim gerados pelas próprias condições sociais as quais esses indivíduos estavam submetidos. Bourdieu e Passeron (2009) demonstram que a escola, longe de ser objetiva, está permeada de relações e oportunidades desiguais em função da classe social da qual os alunos são oriundos.

A escola - que para muitos deveria funcionar como uma espécie de trampolim social - seria na verdade uma instituição que tão somente confirmaria as

origens sociais dos seus alunos. O sistema educacional, através de seus agentes, exerceria uma violência simbólica30 e, ao ignorar as formas pelas quais isso acontece, contribui para legitimá-la socialmente. (Bourdieu e Passeron, 2009).

Assim, os educadores, detentores da autoridade conferida a eles pela instituição, posição social e pela tradição, colaborariam, sem se dar conta, para a manutenção e reprodução da ordem social, confirmando o sucesso das elites e o fracasso das classes populares no mundo intelectual. De acordo com os autores, a engenharia de tal sistema é perfeita na medida em que a escola declara uma objetividade e universalidade e então justifica seus efeitos indesejados atribuindo aos seus alunos e suas famílias a incapacidade de alcançar os resultados esperados por um sistema que é sentido por seus agentes como justo, objetivo, libertador, imparcial, democrático e meritocrático. Um poder simbólico31 seria encarregado de ocultar/invisibilizar os mecanismos que dificultam ou até inviabilizam o sucesso acadêmico dos alunos das classes populares (Gonçalves, 2008).

Com essa pesquisa, Bourdieu e Passeron (2009) demonstram que as desigualdades dadas na entrada do sistema educacional, mesmo havendo possibilidade de todos entrarem, acabam por determinar toda a trajetória dos alunos, seu sucesso e seu fracasso, seja durante a carreira escolar, seja posteriormente na disputa pelas vagas no mercado de trabalho.

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30. Bourdieu (2005), ao propor o conceito de violência simbólica, chama atenção justamente para aquela violência que não reside no alunado e sim nos sistemas simbólicos presentes nas práticas educativas veiculadas pela escola. Embora possamos encontrar nuances do seu significado em outros autores, como Marx com as noções de ideologia e dominação, Weber com sua expressão “a domesticação dos dominados” e ainda em Durkheim, quando ele fala de fato social e coerção, é em Bourdieu que a noção de violência simbólica se consolida. Bourdieu (2005) preocupou-se com essa violência invisível, que é sofrida através de sistemas simbólicos como a educação, a arte, a religião, a língua, a ciência, etc. Para ele, esses sistemas exercem um poder estruturante sobre os indivíduos, ou seja, constitutivo. Mas só podem exercer esse poder porque estão socialmente estruturados. Esse poder que certos sistemas simbólicos têm sobre os indivíduos é denominado de poder simbólico. São estruturas capazes de impor realidades, de formar consenso acerca do sentido do mundo social, de excluir e incluir indivíduos, de determinar as noções de certo e errado. Essa noção de mundo é reproduzida indeterminadamente através de um processo de inculcar nos indivíduos ideologias, valores, moral.

Tal processo é o que Bourdieu chama de violência simbólica.

31. O poder simbólico apresenta-se nos sistemas simbólicos que se expressam em estruturas estruturadas e estruturantes tais quais a religião, a arte, a língua. É um poder invisível capaz de gerar consenso (Bourdieu, 2005).

Não se trata evidentemente de dizer que os anos passados nos bancos escolares não servem para melhorar as oportunidades dos indivíduos. Muitos tiveram na educação uma grande oportunidade de ascensão social. É importante lembrar que o próprio Bourdieu passa parte de sua trajetória acadêmica posterior explicando e evidenciando que não considerava a reprodução das desigualdades sociais através da escola inevitável, ele mesmo é um exemplo disso. Pierre Bourdieu tem origens bastante modestas, é de família campesina, nasceu em um povoado chamado Béarn, localizado em uma zona rural francesa. Desde os seus primeiros anos de estudos, o autor conviveu com camponeses, operários e comerciantes.

Logo após, ele foi para uma cidade vizinha onde fez o ensino médio e se destacou nos estudos, onde em seguida ganhou uma bolsa para o Liceu Louis-le-Grand de Paris, local de destaque para o qual eram selecionados alguns dos melhores estudantes do país. Bourdieu logo ingressou na École Normale Supérieure onde começou a cursar filosofia. Eu, bem como boa parte dos meus amigos, que vieram de famílias populares, tivemos uma clara ascensão via educação. Mas é preciso evidenciar que, no momento em que se universaliza a educação, cria-se uma reserva de mercado que frequentemente fará permanecer distantes das boas oportunidades aqueles que já estão.

Além do problema da reprodução das desigualdades, a universalização da educação também acabou por promover uma intensa precarização em todos os níveis: na qualidade e infraestrutura das escolas, na formação dos professores e na qualidade dos cursos e licenciaturas, nos baixíssimos salários, no desprestígio da profissão de educador. Tal questão atinge toda a educação, seja ela pública ou privada, mas sem dúvida, os seus efeitos adversos são sentidos de forma mais intensa nas escolas públicas. É nessas escolas que se evidenciam as mazelas do sistema educacional, da culpabilização dos alunos e das famílias pelos problemas enfrentados, da falta de espaços coletivos para discutir as questões e os rumos que os profissionais devem tomar. Falta também uma rede de profissionais, como psicólogos, que está atuando nas escolas privadas, e onde os pedagogos precisam se desdobrar para preencher outras funções, o que compromete o foco nas prioridades. Vamos compreender mais profundamente as questões associadas à precarização no capítulo seguinte.

CAPÍTULO 3

A DEMISSÃO DO ESTADO E A DESERÇÃO DOCENTE: A FACE PRECARIZADA