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2. PRIMEIRA NOITE: O SUJEITO SONHADOR

3.3. Fragmentos de um discurso amoroso

É a partir do lugar do sonho, da memória, da solidão, dos pensamentos utópicos, do amor não correspondido, que Mário profere seu discurso, um discurso de um sujeito amoroso. Para Roland Barthes, “o discurso do sujeito amoroso não pode se tornar uma escritura sem enormes abandonos e transformações”33, afirmação enunciada em entrevista publicada no livro O grão da voz, obra que reúne as transcrições das principais entrevistas concedidas pelo escritor. Em 1977, em seu livro Fragmentos de

um discurso amoroso, Barthes considerou o discurso amoroso um discurso de extrema

solidão34.

33

BARTHES, O grão da voz: entrevistas 1962-1980, p.403

34

“A necessidade deste livro funda-se na consideração seguinte: o discurso amoroso é hoje de uma extrema solidão. Tal discurso talvez seja falado por milhares de sujeitos (quem pode saber?), mas não é

sustentado por ninguém; é completamente relegado pelas linguagens existentes, ou ignorado, ou depreciado ou zombado por elas, cortado não apenas do poder, mas também de seus mecanismos (ciência, saberes, artes). Quando um discurso é assim lançado por sua própria força na deriva do inatual, deportado para fora de toda gregariedade, nada mais lhe resta além de ser o lugar, por exíguo

De fato, Mário e Natália são sonhadores que vivem sempre sozinhos, abandonados por seus amores e marginalizados na sociedade. Para Barthes, “a expressão cinematográfica pertence também a essa ordem das grandes unidades significantes, correspondendo a significados globais, difusos, latentes, que não são da mesma categoria que os significados isolados e descontínuos da linguagem articulada.”35 É na busca dos significados globais e das significâncias obtusas que se sobreporão os fragmentos do discurso amoroso aos momentos cinematográficos do caminho percorrido entre o conto literário, o roteiro e o filme Noites Brancas.

Noites Brancas não é uma história de amor, feliz e bem-aventurada; pelo

contrário, o sujeito amoroso é aquele que sofre marginalizado do mundo, numa crise dolorosa de reconciliação consigo mesmo. O sonhador vive na escuridão completa os dias que são tão escuros como as noites, tornando-se lugar das quimeras constantes. A noite, de acordo com o livro Fragmentos de um discurso amoroso, é “todo estado que suscita no sujeito a metáfora da obscuridade (afetiva, intelectual, existencial) na qual ele se debate ou se apazigua.”36 . Mas há um momento de clareza na obscuridade das noites do sonhador, um instante de epifania em que ele acredita no seu amor verdadeiro por Natália, mesmo que este não se confirme, ao final, serve como uma passagem de consciência, de novas possibilidades reveladas nestas noites que, ademais de obscuras, são brancas.Segundo o dicionário Houaiss37, a palavra “noite” expressa, dentre outros significados:

1 tempo que transcorre entre o ocaso e o nascer do sol, em determinado lugar da Terra, de outro planeta ou de um satélite

2 horário em que está escuro, por falta da luz solar, e em que geralmente as pessoas descansam ou dormem

3 Derivação: por extensão de sentido: ausência de claridade; escuridão, trevas

4 Derivação: por metáfora: estado de dor, desesperança; tristeza, melancolia, abatimento

que seja, de uma afirmação. Esta afirmação é em suma o tema do livro que ora começa.” (BARTHES,

2007, p.XV)

35

BARTHES, O grão da voz: entrevistas 1962-1980, p.23

36

BARTHES, Fragmentos de um discurso amoroso, p.259

37

As derivações finais 3 e 4, resumem características do personagem, um sujeito triste e desiludido. Mas estas expressões unem-se a antítese de “noite”, o termo “branco”, que contrasta formando o título estudado, de acordo com o dicionário, seria:

1 que apresenta a cor da neve recém-caída

2 diz-se dessa cor

3 Rubrica: óptica: cuja cor é produzida por reflexão, transmissão ou emissão de todos os tipos de luz conjuntamente, na proporção em que existem no espectro visível completo, sem absorção sensível, sendo, assim, totalmente luminoso e destituído de qualquer matiz distintivo

4 sem cor; transparente, translúcido

Oposições simbólicas que são expressas no filme através da escuridão da fotografia aliada a sombras e luzes em neon que iluminam a escuridão. O céu noturno também reflete esta intenção. Para criar o céu no estúdio foram sobrepostos dois enormes cristais, um fixo e um móvel, no Estúdio 5 da Cinecittà, onde a cidade labiríntica de Livorno foi reconstruída. O efeito é de um claro e um escuro simultâneos, assim como as palavras “noites” (remetendo ao escuro, ao negro) e “brancas” (remetendo ao alvo, ao cândido). (Ver Croqui 1) A estrutura foi montada para conferir um aspecto real ao céu do estúdio. Nos estúdios, normalmente, tende-se a enquadrar planos que não fotografem os tetos e céus, pela dificuldade de produção destes artefatos. Entretanto, num filme sobre a noite, sobre um fenômeno ocorrido nos céus, a aurora boreal, seria impressindível a realização do mesmo. Construiu-se um céu móvel, nuvens movimentam-se, um aspecto de realismo conferido a cidade cenográfica. A fotografia do filme, que foi construída através de uma ampla gama pictórica em diversos graus de cinza até o preto e de claros até o branco.

Efeitos que se referem às noites insones do sonhador, às noites iluminadas pelas luzes da cidade e pela companhia da amada. As noites brancas de Mário são marcadas pela indefinição do tempo, nas quais o sonho e a esperança permanecem nas noites claras. É um claro e escuro que permanece no interior do homem, com movimentos de ida e vinda, de sombra e luz, que caracterizam as relações psíquicas do sonhador. Refletem a inconstância do sujeito, suas dualidades, seus lados ora obscuros, ora evidentes.