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1 INTRODUÇÃO

6.5 FRANCISCO: O HOMEM DE FÉ

O entrevistado, aqui tratado por Francisco, ocupa um cargo de liderança em um setor operacional da empresa em que trabalha, tendo iniciado suas atividades em funções técnicas.

Com mais de quarenta anos de idade e bastante envolvido com suas responsabilidades, chamou a atenção a forma alegre e entusiasta com que recebeu o entrevistador, apresentando toda a área da empresa sob sua responsabilidade antes do início da entrevista:

Poxa! As pessoas de fora deveriam vir mais aqui. É um prazer mostrar isso tudo aqui para vocês! As pessoas não sabem que isso aqui existe. É algo de primeiro mundo que só em nosso Estado tem.

Uma outra característica do entrevistado, notada logo no início da entrevista, diz respeito à sua religiosidade:

Aqui dentro, a gente usa muito a palavra de Deus!

A fé é apresentada como um subsídio pessoal de conforto para enfrentar as situações encontradas no cotidiano das tarefas.

Ser consciente de si e dos outros

O entrevistado, nas situações narradas, revela uma forte preocupação com sua equipe de trabalho, muito mais do que consigo próprio:

Eu tenho de coordenar as atividades de forma que eu não machuque meus colegas de trabalho. Não adianta se eu receber um “pancada” de cima e sair repassando ela para baixo.

O entrevistado entende que as “pancadas” por ele recebidas na empresa são inerentes ao cargo que ocupa; sofre, mas busca poupar os demais companheiros de trabalho de experimentar o mesmo tipo de sentimento. Um ato nobre, mas de preço pessoal alto para o entrevistado.

Dotado de muita sensibilidade, o entrevistado apresenta uma forte noção de alteridade, sobretudo quando o assunto em questão diz respeito ao crescente número de demissões que vêm ocorrendo na empresa. Apresenta também compreensão crítica sobre a questão das demissões:

Demitir é uma coisa horrível e a empresa vem demitindo muito ultimamente. É uma coisa horrível, eu me sinto a pior pessoa do mundo quando tenho que demitir. Quando sou obrigado a demitir, paciência, mas vou sofrer quase o mesmo tanto que a pessoa. Se você disser que eu não posso me emocionar eu estou lascado, não consigo fazer isso de uma maneira fria.

É duro você ver um colega seu de dez, quinze anos de trabalho ser mandado embora: “vai embora, a empresa não precisa mais de você”.

A empresa não precisa demitir para garantir sua sobrevivência, as ações dela na bolsa estão crescendo, o lucro está aumentando, e ainda assim ela continua demitindo e colocando mais pressão em cima das pessoas.

Não bastasse a tensão vivida pelo medo da demissão e aumento da demanda de trabalho, o entrevistado deixa claro ainda que a competição, que dificulta o respeito pelo outro, é vivida e sentida de forma intensa na empresa como um todo:

Na minha área até que não, mas tem muita competição na empresa. Se você for à área do “fulano” ele vai te dizer. Chega a ser nojento.

Através de seus relatos, o entrevistado demonstrou muita clareza do que é vivido por ele e por seus colegas de trabalho na empresa. Preocupa-se com sua equipe, numa postura quase que “paternal” diante dela. Tem noção da real dificuldade que o mercado apresenta para aqueles que necessitam buscar uma colocação, daí fazer de tudo para manter sua equipe alinhada com os objetivos da empresa, evitando comprometer o emprego daqueles que estão sob sua responsabilidade. Todavia, não fosse pela fé e pela religião, que são uma para ele uma grande catarse, viveria em sofrimento profundo:

Às vezes, eu tenho vontade de ir para casa e colocar a cabeça debaixo do travesseiro, dormir, e desejar que o outro dia nasça logo e que possa ser um dia diferente.

O entrevistado demonstrou muito respeito pelos demais indivíduos e preocupação com os mesmos; entretanto, é possível constatar que as condições com as quais atua na empresa – condições impostas – têm no levado a se constranger para fazer valer as determinações superiores, ainda que por ele questionadas.

Ser dotado de vontade

Apesar de se dizer “feliz” no trabalho – pois acredita que suas atribulações são inerentes ao seu cargo – o entrevistado é taxativo quando questionado a respeito do seu desejo, ainda que planejado apenas se vier deixar a empresa:

Se eu sair daqui vou montar meu próprio negócio. Já estou pensando nisso.

Há um desejo de realização que o emprego – que a empresa – não proporciona. Pensar em montar um negócio é estar projetando para um tempo futuro sua realização profissional. Na empresa, a vontade fica condicionada ao cumprimento de metas.

O que eu mais gosto no meu trabalho é atingir objetivos, as metas que a empresa coloca para mim. Não só para mim, mas como para todo o grupo. Já ralei, já sonhei, mas hoje meu sonho é conseguir ser suficiente para atender todas aquelas responsabilidades que me deram.

A partir deste relato, é interessante notar os valores que a empresa transmite aos seus empregados na consecução de suas tarefas. O empregado não é motivado para executar suas atividades e realizar-se nelas. Na verdade, ele deve entender que está lá para gerar valor para “um outro”:

A empresa busca o empregado que agregue valor ao seu trabalho. Prega que devemos valorizar o acionista, ele é a nossa razão de existir.

Um último aspecto em relação à vontade do entrevistado refere-se ao desejo de implementar alterações dentro da empresa. Chamou a atenção o fato de o entrevistado não propor mudanças administrativas ou da rotina de trabalho; segundo afirma,

(...) se eu tivesse mais poder eu diminuiria as diferenças salariais.

O entrevistado acredita que não há a necessidade das discrepantes faixas salariais dentro da empresa, que só fazem contribuir para o distanciamento dos indivíduos e incentivar a competição.

Nesta entrevista, o limitador da vontade, da autonomia, não é apenas a sensação de medo, como ocorre em outras entrevistas; é a compreensão de não haver alternativas senão cumprir as metas e seguir as regras.

Ser responsável

Em relação à responsabilidade já foi possível notar, em apontamentos anteriores desta entrevista, que o entrevistado é muito atento para sua atividade e para todos com que trabalha.

Entretanto, ao comentar algumas ações de seus subordinados, ele deixa transparecer que o “ambiente” da empresa ainda tem levado os indivíduos a esconderem fatos e se esquivarem de responsabilidades por receio de assumi-las:

Tudo é resolvível, mas tem gente que não fala do problema. As pessoas ainda acham que esconder o que aconteceu em seu turno de trabalho é melhor do que relatar. Acham que pode acontecer alguma coisa com elas. Não entendem que só acontecerá algo se for descoberta a mentira, não se for dita a verdade.

Em respeito ao entrevistado, não foi narrado o caso que possibilitou esse comentário, porém é possível dizer que a empresa hoje, sobretudo no setor produtivo, incentiva o empregado a relatar possíveis desvios no processo de trabalho que prejudicam a produção. Entretanto, o medo de assumir a responsabilidade sobre o fato ocorrido ainda é um sentimento muito forte das pessoas no trabalho, pois ainda que não signifique a perda do emprego, as formas de tratar esses fatos são muito duras para com o empregado.

Por fim, o entrevistado tece uma crítica entre a postura da relação de empresa e sindicato:

O sindicato e a empresa poderiam se ajudar mais. Porém ambos têm medo de se comprometer.

O entrevistado acredita que poderia haver muito mais troca entre a empresa e o sindicato, porém a postura adotada é de competição, não de cooperação, sendo que, no final, perdem todos. Foi possível notar a percepção do entrevistado da necessidade de uma nova postura das organizações (empresa e sindicato) já indicando sua compreensão da importância de uma relação mais autêntica em relação aos indivíduos ao invés de uma postura excludente.

Ser livre

A liberdade é, sem dúvida, o aspecto da ética mais suprimido na relação empregado e empresa. As relações de “vida” do entrevistado são totalmente cooptadas pela necessidade de atingir os resultados determinados pela empresa:

Às vezes o trabalho atrapalha o relacionamento com a família. Às vezes a gente tem que estar aqui até mais tarde e também sábado e domingo.

Por mais que a gente fique aqui, quatorze, quinze horas por dia, a gente não consegue ficar o dia todo como seria necessário.

O tempo para “si mesmo” é usufruído com o que lhe sobra, não com o que lhe é de direito. E ainda assim há o sentimento de que era necessário dar-se ainda mais.

Se a liberdade não é sentida em relação à própria vida, também não é nas relações de trabalho. O espaço para questionamento e reflexão é escasso e restrito, cabendo ao indivíduo apenas ser livre para se ajustar à condição em que vive:

Quando abrem espaço para eu questionar uma diretriz eu questiono, senão eu tenho que me adequar.

Isso fundamentado na seguinte afirmação:

A empresa vê o seguinte: você trabalhar todo dia é obrigação sua; eu pago seu salário e

você trabalha. O empregado bom é aquele que diminui os custos para a empresa.

Na empresa, as subjetividades são suprimidas e a liberdade é substituída pela necessidade de atingir padrões e metas de produção, dentro das normas e regras pré- estabelecidas.

Considerações

A forma atenciosa com que Francisco tratou a atividade de pesquisa foi um prelúdio daquilo que seria captado logo depois: o entrevistado é um sujeito atencioso, dedicado e preocupado com tudo e, sobretudo, com todos que estão envolvidos em sua área de responsabilidade.

Francisco mostrou-se todo o tempo atuante e consciente das questões que o rodeiam. Sofre as pressões e o constrangimento das determinações que é obrigado a cumprir no exercício do cargo que ocupa, encontrando na religião e na fé lenitivos para enfrentar as tribulações diárias.

Como os demais entrevistados, tem na empresa alijada sua condição de sujeito ético- moral, apesar de lutar bravamente para manter seus valores e seu sentimento de humanidade. Sofre com aqueles que sofrem, mas tudo que pode fazer é buscar convencer os demais a desenvolverem, como ele, uma determinada condição de resignação e paciência (por isso a fé é tão importante), pois as ações na empresa são determinadas por esferas superiores pouco acessíveis à reflexão de alguns aspectos por ele compreendidos e propostos.