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Por entre as frestas das janelas: dos bens que constituíam o interior das casas de moradas do Alferes Pedro Soares da Silva

DOS TÍTULOS AOS BENS MATERIAIS: A IMPORTÂNCIA DO CABEDAL PARA LEGITIMAR O ETHOS SOCIAL

1. Inventariando riquezas: dos bens do Alferes Pedro Soares da Silva e o seu valor social

1.2. Por entre as frestas das janelas: dos bens que constituíam o interior das casas de moradas do Alferes Pedro Soares da Silva

Se pudéssemos olhar por entre as frestas das janelas das casas de moradas do Alferes Pedro Soares perceberíamos que não era só o gado, os escravos e as terras que compunham o seu cabedal. Encontraríamos no interior do espaço familiar diversos utensílios, ferramentas e mobílias, bens que nos dizem mais a respeito dos seus proprietários do que possamos imaginar. Colheres, pratos, oratórios e tamboretes também concorriam para legitimação do ethos compartilhado entre os membros da elite do Piancó, como era o caso do Alferes Pedro Soares da Silva.

Em seu inventário há um considerável número de utensílios como colheres de prata, pratos, cocos, bacias e tachos, objetos que viriam a compor o dote das nove filhas e a herança da esposa.117 Artefatos como talheres e pratos eram um indicativo de distinção social, por se tratar de objetos raros na colônia, principalmente no sertão, devido ao seu alto custo, estando acessível apenas aos mais abastados, e aos próprios hábitos dos homens do sertão. De acordo com Anna Cecília Alencar (2014, p. 65), era “costume da sociedade dos sertões realizarem as refeições geralmente em esteiras no chão ou de cócoras e, na maioria das vezes, comia-se com as mãos, sem o uso de talheres”.

Ao investigar a sociedade de Quixeramobim (Capitania do Ceará), no decorrer do século XVIII e XIX, a historiadora Anna Cecília Alencar (2014) constatou que a posse de pratos e colheres estava reservada as famílias de maior “qualidade”. Tanto ela quanto o historiador Muirakytan Macêdo (2007), que analisa a vida material do Seridó, comungam da ideia de que o valor desses utensílios não estava, necessariamente, em seu uso cotidiano, mas sim, em seu caráter simbólico. Era comum possuí-los com a

117 Sobre os talheres: não se encontram descritos na tabela 2, mas estão citados nos dotes doados às sete filhas (tabela 4).

finalidade de ostentá-los às visitas. Talvez isso justifique a disparidade entre os membros da casa e os talheres possuídos, um número geralmente incompatível, conforme as observações realizadas pelos historiadores.

Ainda entre os artefatos de distinção listados no inventário do Alferes Pedro Soares, encontramos um pequeno e velho oratório de cedro, avaliado em 1$280 réis. O oratório era um dos objetos raros de serem encontrados nos sertões (figura 7). Ele representava um pequeno altar onde ficavam expostos os santos de devoção, também chamados “vultos” ou “imagens”. (MACÊDO, 2007, p.162). De acordo com Muirakytan Macêdo (2007, p.162), sua presença era uma compensação para o altar das igrejas e capelas, e sua posse, com ou sem santo, era algo que não poderia ser adquirido por qualquer pessoa devido seu valor. Por isso, a posse de um oratório além de demonstrar o caráter religioso da família, denotava sua distinção.

FIGURA 7: Oratórios com seus “vultos” ou “imagens”

Fonte: MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. (2007).

Encontramos ainda no inventário registros de alguns artefatos relacionados ao vestuário, como colares, fivelas, abotoadeiras e botões, tudo em ouro e prata. É importante chamar atenção para isso porque o vestuário era um artefato de distinção, segundo Silvia Lara (apud ALENCAR, 2014, p.57). De acordo com o historiador Raphael Santos (2005, p. 58), a “roupa e os adereços tinham um importante papel de

comunicar a posição social, real ou almejada” das pessoas, revelando dessa forma os jogos hierárquicos no interior das sociedades.

Não à toa, por diversas vezes, a Coroa recorreu às “leis suntuárias”, que tinham por “objetivo regular o uso de certos tipos de roupas, de joias, de meios de transporte, de acordo com cada grupo social”. (SANTOS, 2005, p. 59). As leis almejavam reforçar a distinção presente nas roupas. O decreto de 1696 que proibiu o uso de “vestidos de seda, cambraia, holandas com rendas e brincos de ouro ou prata” por escravas é um bom exemplo disso. (LARA apud ALENCAR, 2014, p. 57-58).

Além dos utensílios já apresentados, identificamos no inventário do Alferes algumas caixas, malas com fechadura e arcas, todas avaliadas entre os valores de 2$000 e 10$000 réis. Artefatos desse tipo eram comuns no sertão. As malas e caixas, por exemplo, poderiam servir para guardar peças do vestuário, joias e até alimentos, como farinha e carne salgada. (MACÊDO, 2007, p. 173). Pela facilidade de transporte, tornavam-se objetos fundamentais à necessidade de fuga em meio às dificuldades locais, fosse pelas secas ou enchentes, situações as quais estavam expostos constantemente os homens do sertão. (MACÊDO, 2007, p. 174).

Respondendo a mesma lógica estavam os tamboretes e os catres – espécie de leito dobrável, fácil de carregar em viagens. Contabilizamos no inventário do Alferes Pedro Soares três catres, avaliados em 6$000 réis, e cinco tamboretes cobertos com sola, por 2$400 réis. Assim como os bens acima analisados, esses tamboretes também tinham um valor simbólico para a sociedade setecentista do sertão, pois, mais do que artefato de descanso, os tamboretes permitiam aos indivíduos sentarem-se sozinhos, o que acabava por denotar distinção social. De acordo com Muirakytan Macêdo (2007, p.161), “a grande parte da população pobre se sentava no chão para conversar ou cear junto, ou se acocorava sobre os calcanhares”, por isso “quanto mais elevado e sozinho em uma cadeira estivesse um indivíduo, mais honrado e superior era ele”.

Além de todos os bens analisado até aqui, o inventário do Alferes Pedro Soares da Silva traz registros das terras, escravos, gado e utensílios doados em dote às sete filhas que teve com Dona Maria da Costa da Fonseca. Achamos por bem analisar em separado os bens repassados às filhas, pois já não se tratava mais de um cabedal de propriedade do Alferes, mas da nova família que se constitui.

1.3. Arranjos matrimoniais no sertão do Piancó: a prática de dotação como