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3.3 Contrato de subscrição de valores mobiliários

3.3.2 Função da instituição financeira

A presença de falhas nos mercados financeiros prejudica a eficiência na canalização de recursos entre agentes econômicos superavitários e deficitários, resultando no distanciamento de níveis de investimento ótimos, fundamentais para a expansão do processo de produção. O fluxo circular da renda sofre a interferência de externalidades e poder de mercado, que distorcem a distribuição de recursos entre unidades familiares, empresas e setor público, restringindo as alternativas de financiamento, com a conseqüente limitação da atividade produtiva a patamares abaixo do socialmente desejável. As instituições financeiras passam a internalizar a atividade de alocação de recursos, com a finalidade de reduzir custos de transação originados pelas falhas de mercado, especializando-se em canalizar, com maior eficiência, a escassa poupança disponível para os projetos empresariais mais rentáveis.

A vasta experiência das instituições financeiras contemporâneas, em aproximar agentes tomadores e ofertadores de recursos, a elas confere significativas vantagens comparativas na atividade de alocação de poupança via mercado de capitais, reduzindo custos de transação nas operações de emissão pública de valores mobiliários. Estas instituições possuem o dever, imposto constitucionalmente, de promover o desenvolvimento equilibrado do País e servir aos interesses da coletividade, no exercício da atividade de intermediação de recursos. Neste sentido, a atuação das instituições financeiras, na implementação do modo de produção constitucionalmente delimitado, deve ser analisada sob o seguinte aspecto: enquanto agentes subordinados à Ordem Econômica e Financeira devem se pautar pelos Princípios Gerais da Atividade Econômica, refletindo o comprometimento com o respeito ao meio ambiente e aos consumidores, com a valorização do trabalho humano e a livre concorrência; enquanto intermediários financeiros, responsáveis pela operacionalização do Sistema Financeiro Nacional, estão adstritas à transferência de recursos para as empresas que também adotem tais compromissos55.

A disciplina constitucional da atividade econômica exige de todas as empresas, incluindo instituições financeiras, a observância de uma função social (artigo 170, III, da Constituição Federal de 1988), que pode ser compreendida como o dever jurídico de atender

55 José Afonso da Silva (2004, p. 806, grifo do autor) destaca a importância do sentido e dos objetivos que a

Constituição imputou ao sistema financeiro nacional, “ao estabelecer que ele será estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, de sorte que as instituições financeiras privadas ficam assim, também, e de modo muito preciso, vinculadas ao cumprimento de funções sociais bem caracterizadas.”

ao interesse público, proporcionando vantagens positivas e concretas para a sociedade, no exercício de um direito subjetivo. A função social da empresa somente deve ser exigida, portanto, no exercício da atividade econômica, que constitua o objeto social definido pelo empresário ou pela sociedade empresária. O artigo 170, da Constituição Federal de 1988, delimita os deveres jurídicos que devem ser atendidos, no exercício do direito subjetivo de explorar a atividade econômica, para que a empresa cumpra sua função social.

O objeto social de uma instituição financeira consiste na atividade de intermediação de recursos, promovendo a mobilização da poupança para projetos de investimento. O fato de se organizarem unicamente sob a forma de sociedades anônimas (artigo 25, da Lei 4.595 de 1964) ressalta o fim lucrativo estabelecido no objeto social e perseguido através da atividade de intermediação (artigo 2°, da Lei 6.404 de 1976). As instituições financeiras envolvidas em oferta pública de distribuição de valores mobiliários estarão cumprindo sua função social, no exercício do direito subjetivo de intermediar recursos, ao canalizarem a poupança para empresas que adotem melhores práticas de governança corporativa. A destinação de recursos escassos ao financiamento de empresas que assegurem maior transparência na divulgação de informações e maior respeito aos investidores, além de representar melhor oportunidade de negócio, pois estas empresas são mais valorizadas pelo mercado, contribui para difundir as práticas de governança corporativa, elevando a qualidade das companhias emissoras e favorecendo o desenvolvimento do mercado de capitais.

As relações obrigacionais assumidas por instituições financeiras e companhias emissoras são formalizadas no contrato de underwriting, conforme exigência da Comissão de Valores Mobiliários. A função social desempenhada pela instituição intermediária na oferta pública de distribuição acaba se refletindo nos compromissos pactuados com a companhia emissora, encontrando materialização nas cláusulas do contrato de subscrição de valores mobiliários. O dever jurídico de promover a adoção de melhores práticas de governança corporativa, que deve ser atendido no exercício da intermediação financeira envolvendo valores mobiliários, passa a compor a relação obrigacional de captação de recursos no mercado de capitais.

A concepção de relação obrigacional adotada pelo Código Civil de 2002 abandona o método jurídico tradicional, centrado na figura de um sujeito atomizado de direito, para abordar a pluralização da subjetividade jurídica, tendo presente um conteúdo o mais possível coerente com os valores expressos pelo ordenamento jurídico. A análise interna da relação obrigacional, visualizando a dinâmica da atividade pela qual os sujeitos estruturam seus

interesses, contribui com uma concepção mais realista das interações, permitindo constatar a necessidade de tutela de valores constitucionais, além dos interesses patrimoniais. O Código Civil de 2002 estabelece, então, conceitos flexíveis, dentre os quais se encontra o de “função social do contrato”, para permitir ao aplicador do Direito concretizar a principiologia que governa o ordenamento jurídico (MARTINS-COSTA, 2005).

A produção e a circulação da riqueza, promovidas através de relações obrigacionais, resultam do exercício profissional da atividade econômica organizada, desempenhada pelas empresas. O contrato se constitui num instrumento jurídico indispensável ao desenvolvimento de toda atividade econômica organizada, coordenando as relações obrigacionais entre a empresa e agentes que com ela interagem (trabalhadores, fornecedores, consumidores, investidores). O direito dos contratos não se restringe a revestir passivamente as operações econômicas, como se fosse sua mera tradução jurídico-formal, mas incide sobre elas, orientando-as segundo os objetivos do ordenamento jurídico (ROPPO, 1988).

A relação obrigacional estabelecida pelas partes do contrato de underwriting não deve se limitar, dentro desta perspectiva, apenas à alocação da poupança, sem considerar os benefícios que o projeto financiado pode trazer para a sociedade, que a ele concede seus recursos. As cláusulas do contrato devem estar delimitadas pela axiologia constitucional que norteia a intermediação financeira no mercado de capitais, expressa nos artigos 170 e 192 da Constituição Federal de 1988, ainda que a legislação infraconstitucional dela se distancie (como foram os casos da Lei 9.457 de 1997 e da Lei 10.303 de 2001). Neste sentido, destaca-se a atividade auto- reguladora dos agentes econômicos que, visando reparar as impropriedades legislativas e as falhas de mercado, fazem inserir no contrato de underwriting obrigações conducentes a melhores práticas de governança corporativa. Diante disto, as instituições financeiras auxiliam a viabilização do mercado de capitais, enquanto alternativa de financiamento para projetos de expansão de capacidade produtiva e de inovação tecnológica, cumprindo seu dever jurídico de promover o desenvolvimento equilibrado do País e servir aos interesses da coletividade, no exercício do direito subjetivo de explorar a intermediação de recursos56.

56 Mais uma vez deve-se destacar a prejudicial interferência do Estado no desenvolvimento do Mercado de Capitais

Brasileiro, dificultando a organização de um sistema privado de financiamento de longo prazo, que seria orientado pelos esforços de auto-regulação dos agentes econômicos: “[...] a presença do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), com o elevado volume de empréstimos que sempre forneceu a taxas subsidiadas, associada à prática vigente durante anos de aquisição de ações dos financiados, sem direito a voto, por intermédio do BNDES Participações S.A. (BNDESPAR), atendeu em boa parte às necessidades de financiamento das grandes empresas, reduzindo a demanda política por reformas do sistema. Como as empresas maiores, mais vocalizadas e com maior poder político, são justamente as que têm melhor acesso ao BNDES, os empréstimos subsidiados silenciaram vozes que, de outra forma, poderiam ter propugnado por medidas mais efetivas para o desenvolvimento de alternativas privadas de financiamentos de longo prazo para o setor privado, incluindo-se entre estas o mercado de capitais.” (HADDAD, 2005, p. 183-184).

A disciplina do mercado de capitais apresenta imperfeições que distorcem a eficiência na canalização da poupança popular; em razão disto, os próprios agentes econômicos realizam esforços de auto-regulação para corrigir as imperfeições legislativas. A intermediação financeira realizada pelos associados da Associação Nacional dos Bancos de Investimento deve seguir práticas de governança corporativa, expressas no código de auto-regulação. As condutas propaladas pelos códigos de auto-regulação acabam sendo inseridas nas cláusulas do contrato de subscrição de valores mobiliários, contribuindo para retomar a eficiência desta alternativa de financiamento. A padronização das cláusulas do contrato de underwriting, particularmente se convergentes com as práticas de governança corporativa apresentadas pela Bolsa de Valores de São Paulo, reduzem custos de transação, além de promoverem a prosperidade do mercado de capitais, assegurando proteção aos investidores e transparência das informações divulgadas.