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Função e Finalidade de Natureza Extraprocessual

No documento A fundamentação da decisão de facto. (páginas 33-37)

FUNÇÕES E FINALIDADES DA MOTIVAÇÃO

2. Função e Finalidade de Natureza Extraprocessual

A função endoprocessual, acabada de abordar, foi historicamente apontada como a razão primária da necessidade de fundamentar as decisões. Não obstante o relevo das finalidades por ela prosseguidas, a afirmação democrática do princípio da fundamentação das decisões judiciais, imposta normativo constitucionalmente no sistema continental e generalizadamente seguida na prática no sistema anglo-saxónico, veio evidenciar uma dimensão extraprocessual da fundamentação, atribuindo-lhe uma relevância igual ou até superior à da dimensão endoprocessual.

Esta outra função de natureza extraprocessual da fundamentação da decisão já não tem como destinatários o juiz e as partes em confronto, mas antes o auditório universal, formado pela comunidade exterior ao processo. Está, pois, conexionada com o chamado princípio da publicidade, segundo o qual o processo - e portanto a atividade probatória e demonstrativa - deve ser conduzido de modo a permitir que qualquer pessoa seja o juiz e, presumivelmente, se convença como o julgador.

Através desta função extraprocessual visa-se primacialmente permitir um controlo externo e geral sobre a fundamentação, isto é, não limitado ao contexto do processo concreto em que é proferida a decisão e,

consequentemente, aos seus intervenientes, antes servindo para convencer também os eventuais interessados e os cidadãos em geral acerca da correção e justiça da decisão tomada.

É hoje inquestionável que o juiz “presta contas” pelo exercício das suas funções, designadamente pelas decisões que profere, não apenas diretamente perante os mecanismos internos de fiscalização (os tribunais superiores e o órgão constitucional de disciplina e avaliação dos juízes), mas também perante os cidadãos, através de um controlo difuso.

Com efeito, tradicionalmente, o interesse e o impacto das decisões judiciais circunscreviam-se às pessoas diretamente envolvidas no processo e afetadas por ele, ou seja, as partes e sujeitos processuais. Porém, assistiu-se à progressiva evolução para uma sociedade mais democrática, pluralista e globalizada. Concomitantemente, o rápido desenvolvimento dos meios de comunicação de massas permitiu uma crescente exposição dos tribunais e um aumento do interesse social pelas questões judiciais. Nos tempos que correm, a justiça é alvo de permanente observação, escrutínio e juízo crítico por parte da comunidade em geral, que tem uma apetência para compreender o modo como se decide judicialmente, o que se traduziu num alargamento do auditório dos destinatários das decisões.

Para se possibilitar um correto e adequado exercício desse controlo externo e difuso, impõe-se que as decisões judiciais, mormente sobre a matéria de facto, atenta a sua relevância, sejam formuladas de modo a incluírem uma fundamentação da decisão, elaborada de forma clara e compreensível.

Como já referia Eduardo Correia22, a propósito da fundamentação das sentenças, "só assim racionalizada, motivada, a decisão judicial realiza aquela

altíssima função de procurar, ao menos, “convencer” as partes e a sociedade da sua justiça;”.

Dito de outra forma, com a função extraprocessual da fundamentação procura-se garantir a transparência da decisão e, concomitantemente, do próprio processo e da forma como é exercida a atividade jurisdicional. O conhecimento público da fundamentação da decisão permite a sua fiscalização e controlo social por parte dos cidadãos em geral.

22 CORREIA, Eduardo - Parecer da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra sobre o artigo 653º do Projeto,

No entanto, a função extraprocessual projeta-se ainda numa outra dimensão. Funcionando como a sua própria razão de ser, com a motivação pretende-se contribuir para a legitimação da decisão judicial. O controlo externo incide sobre a fundamentação não só factual, mas também lógica e jurídica da decisão judicial. Ao motivar a sua decisão, o juiz demonstra também que existem razões válidas e publicamente aceitáveis para a considerar correta e coerente com o ordenamento jurídico em que se insere, neste sentido desempenhando a motivação uma função de legitimação da decisão e, por inerência, da autoridade do próprio órgão que a profere, ou seja, a judicatura.

Ultrapassado o tempo em que a decisão judicial se bastava com o seu caráter de ato de autoridade, típico da prática judicial do Antigo Regime, as sociedades modernas e democráticas decorrentes dos ideais da Revolução Francesa passaram a exigir como regra indispensável a exposição das razões e dos argumentos em que a decisão se sustenta. A par da necessidade de tornar controlável e menos arbitrário o poder judicial, afirmou-se também a necessidade legal e racional de sustentar a legitimidade do exercício desse poder.

Nesta perspetiva, a função extraprocessual em análise prende-se diretamente com uma dimensão político-constitucional, em que a obrigação de motivar a decisão judicial surge como expressão importante da conceção democrática do poder, particularmente do poder judicial, segundo a qual uma condição essencial para o correto e legítimo exercício do mesmo consiste precisamente na necessidade de que os órgãos que o exercem se submetam a

um controlo externo. Ora, um controlo desta natureza reclama

necessariamente a explicitação das razões com base nas quais esse poder se exerceu de determinado modo, ou seja, exige uma motivação da decisão proferida. É mediante essa motivação que se torna possível controlar o cumprimento dos princípios básicos do ordenamento jurídico, respeitando as garantias fundamentais inerentes à administração da justiça, designadamente da independência e da imparcialidade dos juízes.

Só uma decisão de facto cujos fundamentos sejam claramente percetíveis e compreendidos pela comunidade poderá aspirar a ser recebida e reconhecida como legítima no seio desta.

o respeito pelos princípios da legalidade, da independência do juiz e da imparcialidade das suas decisões, constituindo, inerentemente, um fator de legitimação do poder judicial.

Em suma, e como refere Maria Clara Calheiros de Carvalho23, “Mostra-se

cada vez mais necessário que se entenda que a base argumentativa em que se apoia a decisão judicial deve ser redigida tendo em atenção que ela tem por missão não só explicar o seu sentido às partes, ou torná-la controlável por outras instâncias em via de recurso, mas também torná-la acessível ao público em geral. Isso significa que ela se deve mostrar, sob o ponto de vista racional, uma decisão correta, possível, adequada ao ordenamento jurídico e ao contributo efetivo que as partes deram para o delinear do caminho que conduziu até ela. ; O que é importante ; é que a decisão apareça como ato de autoridade discricionário, mas não arbitrário. Só desta forma se poderá tornar a fundamentação da decisão um meio efetivo de legitimação do exercício de poder que consubstancia”.

A caracterização das funções e finalidades da motivação que acaba de ser feita permite facilmente inferir que, numa visão global do dever de fundamentação, as suas duas referidas funções, de natureza endo e extraprocessual, não podem deixar de ser encaradas de forma integrada e entrecruzada, atentos os objetivos, não excludentes, que ambas visam alcançar.

Por fim, saliente-se que, como claramente se alcança de tudo quanto fica exposto, o cabal cumprimento das funções assinaladas à fundamentação da decisão, quer a de natureza endoprocessual, quer a de ordem extraprocessual, implica e exige um especial cuidado e atenção no momento da análise crítica da prova, ponto este a abordar de seguida.

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CAPÍTULO 4

No documento A fundamentação da decisão de facto. (páginas 33-37)