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2. PARÂMETROS TEÓRICOS PARA A PRÁTICA DA TRADUÇÃO

2.5. Funcionalismo e tradução literária

Mas ainda muito antes da Skopostheorie, em seu livro Uměni překladu, publicado em 1963 em Praga (a tradução alemã surgiu em 1969 sob o título Die literarische Übersetzung. Theorie einer Kunstgattung – A tradução literária. Teoria de um gênero artístico), Jiří Levý já considerava a perspectiva funcional da teoria e da prática de tradução literária como a mais produtiva. Especificamente aquela que investiga "[…] qual função comunicativa possuem os elementos linguísticos [do original] isoladamente e que meios linguísticos na própria língua materna podem cumprir a mesma função"31 (LEVÝ, 1969, p. 21). Segundo Levý, já em 1913, Vilém Mathesius, que viria a ser cofundador do Círculo Linguístico de Praga, definia uma abordagem funcionalista da tradução, na qual a manutenção do efeito global do texto tem prioridade sobre elementos constitutivos do ponto de vista meramente linguístico:

[…] a verdadeira base da tradução é o esforço para atingir um resultado artístico, mesmo que com meios diferentes dos do original. [...] frequentemente os mesmos – ou quase os mesmos – meios causam efeitos diversos. O princípio de que a igualdade de resultados artísticos é mais importante do que a igualdade de meios artísticos revela-se como significativo, principalmente na tradução de poesia32. (MATHESIUS apud LEVÝ, 1969, p. 21).

Talvez esta fosse a primeira vez que se justificava a substituição de elementos linguísticos semelhantes por recursos linguísticos eventualmente menos semelhantes a fim de se contemplar um efeito artístico ou literário global presente no original, ou seja, uma

31 Tradução minha para: "[...] welche Mitteilungsfunktion die einzelnen sprachlichen Elemente haben und

welche sprachlichen Mittel in der eigenen Sprache die gleiche Funktion erfüllen können." LEVÝ, 1969, p. 20- 21.

32 Tradução minha para: "[...] das eigentliche Fundament des Umdichtens ist das Bestreben, sei es auch mit

anderen Mitteln als im Original, einen künstlerischen Effekt zu erzielen. […] oft erzielen die gleichen – oder annähernd die gleichen – Mittel unterschiedliche Wirkungen. Der Grundsatz, daß die Gleichheit der künstlerischen Effekte wichtiger ist als die Gleichheit der Kunstmittel, erweist sich vor allem beim Übersetzen von Poesie als bedeutungsvoll".

argumentação pragmática, focada no efeito da obra traduzida, mas com respaldo no original. Diferentemente do que ocorria com as chamadas "belas infieis", nas quais a intervenção do tradutor estaria simplesmente a serviço da língua e cultura de chegada, permitindo-se alterações significativas e alheias ao original (como supressão de parágrafos, capítulos e alteração de enredo), contanto que o resultado final se adequasse à estética da cultura de chegada e agradasse o leitor da tradução.

O próprio Roman Jakobson, em seu ensaio chamado Über das Übersetzen von Versen (Sobre a tradução de versos), de 1930, compara a estrutura, a função e o efeito do verso iâmbico russo e do verso iâmbico tcheco e conclui que, por serem utilizados de maneira totalmente distinta, não podem ser considerados equivalentes. A tradução de um pelo outro, apesar da forma idêntica, seria uma mera homonímia, pois teria função completamente diversa (cf. JAKOBSON apud LEVIN, 2010, p. 95 e Levý, 1969, p. 21). O verso iâmbico russo é mais fluente e confortável do que o iâmbico tcheco, que exige um nível de manipulação linguística que o torna "excepcional, solene, cerimonioso"33 (JAKOBSON apud LEVIN, 2010, p. 95). Sobre a máxima aproximação entre original e tradução e a manutenção da função poética e do efeito estético na tradução literária, especificamente de poemas, Jakobson afirma, no mesmo ensaio:

Portanto, quando traduzimos poesia russa em versos iâmbicos para o iambo em tcheco (ou ao contrário), trata-se de mera convenção e, de forma alguma, de uma aproximação ao original. Considero que nos aproximamos artisticamente ao máximo do original quando escolhemos, para a reprodução de uma obra poética em língua estrangeira, uma forma que, dentro das formas da poesia em questão, corresponda funcionalmente, e não exteriormente, à forma do original. (JAKOBSON apud LEVÝ, 1969, p.21)34.

A tentativa de definir a amplitude da responsabilidade do tradutor e de delimitar no que consiste a sua tarefa, dentro deste mesmo princípio de manutenção da função e do efeito do original como um todo, como um sistema, foi expressa pelo teórico polonês Zenon

33 Tradução minha para: "außergewöhnlich, feierlich, zeremoniell".

34 Tradução minha do original: "Wenn also eine russische jambische Dichtung in tschechische Jamben übersetzt

wird (oder umgekehrt), so ist dies bloße Konvention, keineswegs aber eine Annäherung an das Original. Ich meine, daß wir uns künstlerisch dem Original dann am meisten nähern, wenn für die Wiedergabe des fremdsprachigen Werks der Dichtung eine Form gewählt wird, die innerhalb der Formen der gegebenen Dichtersprache funktional, nicht jedoch äußerlich, der Form des Originals entspricht".

Klemensiewicz em 1955, em seu ensaio chamado Translation as a Linguistic Problem, da seguinte forma:

O original deveria ser considerado como um sistema e não como uma soma de elementos, como uma unidade orgânica e não como uma aglomeração mecânica de elementos. A tarefa do tradutor não consiste em reproduzir nem em transformar os elementos e estruturas do original, mas, sim, em captar a sua função e empregar elementos e estruturas na própria língua que possam ser, tanto quanto possível, seus substitutos e correspondentes, com a mesma competência e eficácia funcionais (KLEMENSIEWICZ apud LEVÝ, 1969, p. 21- 22).35

Ressaltamos aqui a ideia ampliada do original, ou seja, do texto como um sistema, e o incentivo para que a tradução se aproxime deste original não apenas a nível dos elementos linguísticos (semânticos e formais) do texto, mas também a nível de efeito e significado global do texto. Neste sentido, alguns poemas de Ernst Jandl, com um tipo específico de experimentação poética, exigem que, além dos elementos linguísticos, seja traduzido também o mecanismo de construção do poema, sem o qual a tradução formal e semântica não faz sentido.