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O conceito de patronage, a Manipulation School e os Estudos Descritivos da

2. PARÂMETROS TEÓRICOS PARA A PRÁTICA DA TRADUÇÃO

2.3. O conceito de patronage, a Manipulation School e os Estudos Descritivos da

A importância e as implicações do "patrocínio", ou iniciativa, da tradução, muito evidente nos exemplos históricos acima apresentados – como as traduções encomendadas e realizadas, em parte sob a proteção do Papa Dâmaso I, do que viria a ser a Vulgata, ou dentro de instituições como o complexo cultural de Alexandria, a Casa da Sabedoria ou a Escola de Toledo –, viriam a ser desenvolvidas sobretudo por André Lefevere através do conceito de patronage.

Lefevere argumenta que as traduções surgem dentro de um sistema de poder e sob uma visão de mundo, ou ideologia, estabelecida pelos "patronos", que podem ser pessoas ou instituições, que encomendam e/ou bancam as traduções e que "podem promover ou impedir a leitura, a escrita e a reescrita da literatura" (LEFEVERE, 1992, p. 15), (cf. HERMANS, 1998, p. 99; SNELL-HORNBY, 2006, 47-50; SHUPING, 2013, p. 57). Essa abordagem, de cunho sociocultural, analisa a tradução, por um lado, como processo entre sistemas sociais e literários e, por outro, como novo objeto (produto) inserido no sistema literário, ou no conjunto de textos, da língua alvo e determinado pelas condições históricas e culturais em que foi produzido. Ou seja, o fenômeno tradutório é observado retrospectivamente de uma "perspectiva descritiva, focada na língua/cultura alvo, funcional e sistêmica" (HERMANS,

1998, p. 97; HERMANS, 1985, p. 10-11 apud SNELL-HORNBY, 2006, p. 49 ), como é característico da linha teórica que ficou conhecida nos Estudos de Tradução como Manipulation School.

Ora, a abordagem da Manipulation School, apesar de ter seu foco de interesse sobretudo na tradução literária, por ser histórica, descritiva, focada em estudos de caso e na interação do texto traduzido em seu novo contexto – o que pressupõe uma recepção da obra traduzida – é absolutamente inapropriada para nortear a produção reflexiva de um corpus traduzido, o que realizamos neste presente trabalho. A natureza não prescritiva, o distanciamento dos aspectos linguísticos da tradução e, portanto, o distanciamento de aspectos focados na prática tradutória, sustentados por esta linha teórica, agregam-se aos já mencionados elementos que a tornam menos proveitosa para nortear e legitimar as decisões do tradutor durante o processo tradutório, sobretudo de poemas que se valem justamente de possíveis jogos linguísticos, como se vê na obra de Ernst Jandl. Lefevere (1992) chega a afirmar, de forma bastante polêmica, que a língua é o fator menos importante na tradução (apud HERMANS, 1998, p. 98). Hermans registra como uma lacuna da abordagem descritiva precisamente que ela não ofereça um padrão de "microanálise comparativa entre o texto de partida e o texto de chegada" (HERMANS, 1998, p. 99).

Sob alguns aspectos, porém, os Estudos Descritivos da Tradução e a Skopostheorie, a mais conhecida das teorias funcionalistas, se assemelham. Em comum ambos têm a ênfase nos aspectos funcionais do texto traduzido e no texto como produto na cultura de chegada, bem como no fato de considerarem "o texto como uma gestalt, uma estrutura multidimensional que é mais do que a mera soma das palavras e estruturas individuais que o compõem"28 (SNELL-HORNBY, 1996, p. 146). Coincidentemente Vermeer e Toury desenvolvem praticamente simultaneamente os princípios destas abordagens com foco na cultura de chegada no final dos anos 1970 (TOURY, 1995, p. 25). Os Estudos Descritivos da Tradução, porém, diferentemente da abordagem funcionalista, não têm nenhum interesse em postular critérios para uma avaliação crítica do produto que resulta do processo tradutório, isto é, o próprio texto traduzido, e nem assumem prioritariamente um papel na sistematização do fazer tradutório que pudesse estabelecer critérios norteadores para futuras traduções, enriquecendo o aspecto prático e didático da tradução. Consideram o produto do processo tradutório meramente como "um fenômeno histórico e cultural" (HERMANS, 1998, p. 97), com todos os erros e fraquezas que este novo texto possui, sem juízo de valor. Hermans

28 Tradução minha do original: [...] the text, as a gestalt, a multi-dimensional structure which is more then the

afirma que "entre os representantes dos Estudos Descritivos da Tradução praticamente não há interesse em questões da crítica de tradução ou da formação de tradutores." (HERMANS, 1998, p. 96).

Os seguidores da Manipulation School aceitam como tradução (no sentido de 'produto resultante do processo tradutório') qualquer texto que tenha sido historicamente produzido, publicado e recebido como uma tradução, sem questionar necessariamente se as relações intrínsecas do texto foram de alguma forma mantidas ou não (cf. TOURY apud HERMANS, 1998, p. 97-98). Os funcionalistas, ao contrário, estabelecem critérios de avaliação das traduções e parâmetros de "adequação", termo cunhado por Katharina Reiss e Hans Vermeer (1991) para descrever a relação de semelhança (anteriormente e por alguns autores ainda chamada de "equivalência") entre o original e a tradução.

A função da tradução para os descritivistas é observada exclusivamente do ponto de vista da cultura de chegada. Hermans resume o foco desta abordagem da seguinte forma:

Portanto, o pesquisador irá primeiro focar em quais textos são selecionados para tradução na cultura alvo, como, por quem e para qual finalidade eles são traduzidos, como as traduções são recebidas e de que maneira a tradução se insere em outras formas de produção de texto, etc. (HERMANS, 1998, p. 97, grifo meu)29.

Segundo esta linha de pesquisa, o texto de partida sozinho não oferece informações suficientes para a realização da tradução e para a forma que o texto traduzido irá adquirir. As forças que atuarão sobre o texto, e definirão a forma de traduzir, e as decisões tomadas dentro do texto ao ser traduzido são de outra natureza que não linguística. A Teoria dos Polissistemas, desenvolvida por Even-Zohar, descreve estas forças atuantes sobre a tradução como sendo basicamente uma polarização entre sistemas culturais e literários (e consequentemente econômicos) centrais e periféricos, entre funções inovadoras ou conservadoras da literatura e entre formas de literatura canônicas ou não canônicas (HERMANS, 1998, p. 96-100; PRUNČ, 2003, p. 226-236, especialmente 232-234.).

Os dois textos, o texto de partida e o texto de chegada, passam a ser equivalentes a partir do momento em que são simplesmente declarados e aceitos, em uma determinada cultura e em uma determinada época, como "original" e "tradução". Com isso, o conceito de

29 Tradução minha do original: Daher wird der Forscher sein Interesse zunächst darauf richten, welche Texte in

der Zielkultur zur Übersetzung ausgewählt werden, wie, von wem und zu welchem Zweck sie übersetzt werden, wie die Übersetzungen rezipiert werden und in welcher Art und Weise sich die Übersetzung in andere Formen der Textproduktion einfügt usw.

equivalência, que permeou durante séculos as questões relacionadas à tradução, passa a não fazer mais sentido. As soluções tradutórias seriam então pautadas pelas normas tradutórias existentes e aceitas na cultura de chegada naquele momento histórico, e o foco da investigação seria a descrição do fenômeno tradutório do ponto de vista transcultural e histórico, o que em nada, ou muito pouco, contribui para uma reflexão sobre o processo tradutório a nível linguístico. Existem algumas aplicações da abordagem descritiva à didática da tradução, mas outras abordagens, por exemplo a funcionalista, são muito mais produtivas na sistematização de procedimentos tradutórios (cf. TOURY, 1995, p. 25), pois contribuem tanto para o processo de tomada de decisões do tradutor, ou seja, para a prática tradutória, como estabelecem critérios para a crítica e o ensino da tradução.