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A história religiosa do Olho d’Água da Bica é reveladora de crenças, de lendas, fala de um mito fundante, de um herói religioso, tal como ocorre nas histórias que narram a fundação de outros santuários; não obstante, traz consigo algumas singularidades. Moisés do Espírito Santo (1990), afirma que o âmago das religiões não muda de um povo para outro, a mudança que de fato ocorre refere-se aos

atores, aos ritos e também à intensidade da vida religiosa de determinado grupo. Assim diz ele: “os símbolos fundamentais permanecem por toda a parte os mesmos, através das eras e das regiões” (p. 15).

A religião popular se aproxima da igreja católica no que se refere ao culto dos santos e de Maria, cujas capelas são muitas vezes edificadas nos montes, próximas a grutas ou fontes, pois o sagrado se fixa sobre elementos naturais. Moisés do Espírito Santo (1990) diz ainda que a imagem da Mãe funda a religião popular. O autor define a religião popular em função da oficial, afirmando que aquela não está associada apenas a uma classe social econômica e também cultural, mas sobretudo a um tipo de cultura transmitida através das relações de vizinhança e da memória coletiva. Ele a considera espontânea, sua criação é coletiva e desse modo, distingue-se do erudito, já que a religião católica e dominante obedece a esquemas intelectuais dogmáticos e rígidos. Assim sendo, afirma o autor:

O culto mariano, hoje como nos primórdios, conta de dois sistemas de valores e de ritos: um litúrgico institucional justificado pelos textos canônicos e pela teologia católica, e um sistema de ritos associados ao calendário rural, a uma simbólica cosmogônica e a um conjunto de arquétipos maternais. No fundo são dois cultos, o oficial e o popular; não se opõem, antes se interpenetram ou são complementares. São historicamente paralelos, sem serem

coincidentes (Moisés do Espírito Santo, 1993,p. 125).

Nas aldeias e vilas nas quais se desenvolveram centros de peregrinação religiosa, é comum se fazer alusão a um herói religioso ou mítico, responsável pela construção das igrejas ou fortaleza. A localização, a paisagem ou o nome são escolhidos por ele conforme as lendas que têm força e, desse modo, são vistas como dogmas locais, pois o que prevalece nesses lugares é a memória coletiva e o consenso simbólico, a história factual tem pouco valor. Geralmente essas histórias são transmitidas de geração em geração e em alguns casos podem ser esquecidas ou negadas por seus habitantes.

A localização, o nome e a paisagem da aldeia foram escolhidos por heróis míticos [...] Raras são as aldeias que não albergaram um herói religioso ou mítico construtor de igrejas e fortalezas [...] A história

factual tem pouco valor no interior da aldeia, onde é a memória coletiva e o consenso simbólico que importa [...] Todas as aldeias atribuem a si próprias uma origem sagrada [...] O mito é mais eficaz do que a história factual para a integração dos aldeães na comunidade, e por isso estas narrativas são transmitidas de geração em geração sem que suscitem a menor dúvida (Moisés do Espírito Santo, 1990 p. 26/7).

Nessas aldeias e vilas o espaço no qual o santuário é construído é fechado e seguro. Seus limites são definidos e marcados por uma fonte, uma cruz, uma igreja, ou por tudo isso simultaneamente, o que permite separar o espaço seguro do espaço ameaçador, como sugere Moisés do Espírito Santo (1990). Tais objetos, quando erigidos no centro, expressam a demarcação do espaço e constituem um eixo cósmico. A cruz simboliza a posse total, envolve o espaço e pode evocar tanto a vida quanto a morte; a igreja representa a comunidade inteira, e a fonte, através do ritual utilizando a água, evoca o contato com a Mãe.

O santuário é, pois, o lugar onde são celebradas as romarias, constituindo-se sempre de festas folclóricas e de peregrinações. Destaca-se das simples igrejas porque atrai fiéis de toda a região. Os rituais nele praticados são basicamente os mesmos e os interesses dos devotos se expressam através do cumprimento de uma promessa ou de uma visita ao santo. Para Moisés do Espírito Santo (1990), no santuário tradicional – aquele criado por camponeses – o poder não é exercido pelo clero, mas sim por uma confraria admitida por cooptação.

No que se refere a escolha do lugar para a construção de um santuário, as lendas mostram que tal lugar nunca foi escolhido pelos homens, mas sim, pelo santo tutelar, seja ao acaso ou arbitrariamente. Trata-se sempre de um lugar marcado pelo santo19: “onde este pau (ou esta espada cair), uma igreja será construída disseram santos ou heróis nacionais que erigiram sumptuosos monumentos” (p. 91).

19 Alguns exemplos citados por Moisés do Espírito Santo (1990) sobre a fundação dos santuários:

“São Gonçalo de Amarante, não sabendo onde construir um convento para se refugiar, ligou o seu destino ao acaso da queda do seu bordão atirado ao ar: Deter-me-ei onde fores cair. No entanto, recusou a primeira indicação e ainda uma segunda e acabou por aceitar a terceira, que é o lugar onde se encontra atualmente a vila e o santuário de Amarante. O santuário da Senhora da Peneda, um dos mais interessantes, está situado no local onde caiu o pau que a Senhora lançou ao ar. Por vezes sucede que são os bois, ao transportarem uma pesada imagem acabada de descobrir, que escolhem o sítio do santuário, ao interromperem a sua marcha: noutros casos, são as próprias estátuas que estiveram escondidas durante séculos a exprimirem o desejo de ficar numa capela a erigir num local” (p. 91/2).

O santuário muitas vezes não passa de uma simples capela. A grande maioria localiza-se nas depressões de uma montanha ou de uma colina, revelando sua dificuldade natural de acesso. O cenário pode ser belo ou não e desse modo atrai e também assusta a quem o visita, evidenciando dessa forma as contradições que estão na base de todo o sentimento religioso20.

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