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HIPÓTESES E QUESTÕES TEÓRICAS DA PESQUISA: A COEXISTÊNCIA DE SEMIOSES VERBAIS E NÃO VERBAIS NO PET

2.2 Fundamentação teórica da pesquisa

Esta pesquisa esteve teoricamente fundamentada em uma perspectiva sociocognitivista de filiação interacional (e, portanto, multimodal) da linguagem e da cognição (MONDADA e PEKAREK, 2000; MARCUSCHI, 2007; NORRIS, 2006; KOCH 2004; MORATO, 2010, 2004; TOMASELLO, 1999/2003; SALOMÃO, 1999; GOODWIN, 2003). No que tange às Artes Cênicas, tal perspectiva interacionista também fez ressaltar que, da herança de estudos sobre a dinâmica das interações, há ainda contribuições de relevância para o paradigma da linguagem que podem advir deste segmento.

Quanto à Neurolinguística (matéria sobre a qual também nos debruçamos nesta pesquisa) é uma disciplina inerente ao domínio da Linguística – e não apenas da Neurociência – como pondera Morato (2010a, p.18): “da tradição dos estudos da ciência da linguagem, a Neurolinguística preserva o foco e o interesse na descrição e na análise da estrutura, organização e funcionamento da linguagem”. A Linguística, como ressalta Marcuschi (2007), trata, também, do “estudo do signo expressivo, e da relação entre verbal e não verbal”.

Nosso fundamento e premissa é a de que outras semioses capitais, afora a fala, também atuam na construção dos sentidos. Marcuschi (2007) e Koch (2004) investem forças para evidenciar a integração entre verbal e não verbal, numa perspectiva sociocognitiva: “analistas do discurso frisam a relevância de todos os demais níveis linguísticos, tais como o da enunciação, modalidade, cognição, situacionalidade e assim por diante” (MARCUSCHI, 2007, p.106).

Goffman (2007), por exemplo, propõe a metáfora do drama, que concede especial importância aos papéis e às atividades dos atores sociais envolvidos – os participantes – na compreensão dos processos e da própria estrutura da interação. Na obra “A Representação do Eu na Vida Cotidiana”, analisa as várias representações que os indivíduos apresentam a si mesmos e às outras pessoas, os meios pelos quais estes regulam a impressão que formam a

seu respeito e as coisas que podem ou não fazer diante delas. De acordo com Goffman (2007, p. 63), “existem muitas razões (ou motivos) pelas quais as pessoas se engajam no gerenciamento de impressões”.

Conforme podemos depreender, para o autor, qualquer interação é dramática na medida em que implica inserir-se em uma moldura comunicativa e exercer dentro dela determinados papéis que não estão fixados, mas constituem-se através das múltiplas representações. A diferença entre o teatro e os papéis assumidos na interação, segundo o autor, é que nessa estamos representando para alguém que simultaneamente representa para nós. Esses papéis dinamicamente se alteram, de modo que cada participante pode representar múltiplos papéis em um contínuo reenquadramento discursivo. É nesse drama que se constituem, assim, os status dos participantes e suas faces (GOFFMAN, 1998).

O autor faz ressaltar ainda que a construção de sentido é um processo que envolve dinâmicas, jogos teatrais e interação de várias ordens (linguagem e cognição, linguagem e outros processos de significação). É o que nos ensina Augusto Boal quando diz que “atores somos todos nós, e cidadão não é aquele que vive em sociedade: é aquele que a transforma16”; a nosso ver, aquela construção de sentido é também ampliada, porque os processos semióticos do teatro ampliam e ritualizam – arquetipicamente, inclusive – os processos sociocognitivos, isto é, sociointeracionais, humanos e culturais. Por exemplo, em “Gota D´àgua”, peça escrita por Chico Buarque e Paulo Pontes em 1975, os autores recontam a história do mito grego de “Medéia”, tragédia escrita por Eurípedes no século V a.C., recategorizando-o e alocando-o no Rio de Janeiro dos anos 1970; o ponto de partida que motivou os autores foi uma matéria publicada no Jornal do Brasil, ainda na mesma década, sobre uma mulher “estrangeira” (de fora, não carioca), cujo marido a trocou por uma mulher mais nova e rica. Para se vingar, ela matou os dois filhos do casal e a nova mulher do marido, tal qual no ancestral mito grego.

O levantamento do problema teórico de nossa pesquisa esteve, ainda, dedicado à articulação do seu próprio construto teórico, que amparou uma prática empírica, por meio da qual procuramos observar a emergência das semioses coocorrentes através do trabalho teatral com afásicos, pelo viés de uma pesquisa interdisciplinar que contemplou (Neuro)linguística, Artes Cênicas e Semiótica. Blikstein (1983, p. 18) assinala a pertinência desta perspectiva epistemológica quando diz, acerca da interdisciplinaridade entre essas áreas, que “trata-se da relação entre língua, pensamento, conhecimento e realidade. Até que ponto o universo dos signos linguísticos coincide com a realidade ‘extralinguística’? Como é possível conhecer tal

realidade por meio de signos linguísticos? Qual é o alcance da língua sobre o pensamento e a cognição?”.

Desta forma, o pressuposto com o qual estamos lidando, que relaciona as práticas cotidianas e o fazer teatral, ancora-se em três eixos simultâneos que investigamos no escopo da presente pesquisa: i) interatividade; ii) coexistência/coocorrência de semioses verbais e não verbais e iii) intersubjetividade. Conforme Morato (1996):

A organização e estruturação da cognição humana são constituídas por nossas experiências socioculturais, corporais, cognitivas, linguísticas, afetivas – moduladas pela vida em sociedade. Segundo essa perspectiva, não há possibilidades integrais de processos cognitivos fora da linguagem e nem possibilidades integrais de linguagem fora de processos interativos humanos (Morato, 1996, p.18).

Estamos, pois, tratando de cognição social e não de uma cognição meramente ligada aos aspectos internos, neurobiológicos, do cérebro, como temos encontrado, de maneira geral, nas ciências da cognição.

A cognição social é abordada por Tomasello (1999/2003), autor no qual também nos embasamos teórica e metodologicamente. Antes mesmo de adquirirem a capacidade de se comunicar verbalmente com outros integrantes de sua cultura, segundo Tomasello (1999; 2003) os seres humanos transitam em contextos nos quais estão inseridos, por meio de ferramentas comunicativas, tais como ações e gestos. Esses instrumentos lhes possibilitam, através da interação social, desenvolver uma interpretação compartilhada de suas atividades conjuntas, através das trocas que se estabelecem com o outro, já no primeiro ano de vida. O autor, em seus estudos, tem verificado, por exemplo, uma imbricada relação entre atenção conjunta e cognição social infantil, a qual é investigada a partir de habilidades sociocomunicativas de bebês, desde a mais tenra idade. A cognição social humana – a partir da primeira infância – envolve, mais especificamente, a habilidade para compreender outras pessoas, abrangendo o conjunto de capacidades perceptivas que habilita o bebê a discriminar pessoas de objetos. Atenção conjunta, por sua vez, tem sido definida como a habilidade de coordenar a atenção entre um parceiro social e um objeto de interesse mútuo. Nesse sentido, envolve a coordenação mútua do adulto e da criança para um foco conjunto num terceiro elemento. Estas definições trazem a ideia de que comportamentos como seguir o apontar e o olhar do outro, imitar gestos, iniciar interações e alternar o olhar entre o parceiro e o objeto compartilhado seriam manifestações da compreensão dos outros como seres intencionais. Tomasello (1999; 2003), como vemos, cuja pesquisa tem filiação vygotskyana, investiga a

ciência das interações sociais, tema que nos fornece, também, base fundamental e teórica, conforme explicado nas palavras de Morato (2010):

Ao elegermos, com Tomasello e Vygotsky (dentre outros), as interações sociais como uma condição para a representação simbólica do mundo (intersubjetiva e perspectivada), estamos frente à importância radical da linguagem e da interação na constituição da cognição humana. (MORATO, 2010b, p.99)

Neste ponto de nossa reflexão cumpre salientar que tivemos, no âmbito desta pesquisa, uma preocupação epistemológica interdisciplinar centrada na relação entre linguagem, conhecimento da realidade, representação sígnica desenvolvida e verificada através do teatro e desenvolvimento sociocognitivo. Nosso interesse foi justamente a construção dos sentidos e aquelas três áreas interdisciplinares mencionadas, a (Neuro)Linguística, As Artes Cênicas e a Semiótica, debruçam-se sobre o tema, propondo a investigação dos processos verbais em relação com os não verbais.

Tendo em vista os movimentos teóricos expostos acima, consideramos que a arte teatral e os seus sistemas de significação foram, pois, ferramentas analíticas e modo de existência da aplicação do Programa de Expressão Teatral, conforme detalhamos no item a seguir.

2.3 Aprofundando o embasamento teórico (parte 1): abordagem empírica do PET