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3. PRINCÍPIOS TEÓRICOS

3.2 FUNDAMENTOS DE ENUNCIAÇÃO À LUZ DA SEMIÓTICA

Segundo Benveniste (1974, p. 80), “a enunciação é essa colocação em funcionamento da língua por um ato individual de utilização”.

Fiorin (2010, p.31) considera como primeiro sentido de enunciação o ato produtor do enunciado. O enunciado, portanto, é o produto da enunciação, e esta não se pode estudar no ato singular e específico de sua realização. O acesso à enunciação só é possível pelas marcas que ela deixa em seu produto, isto é, no enunciado. Os elementos da enunciação que constituem o objeto de nosso estudo teremos de buscar, então, nos textos em que eles se manifestam.

A enunciação é realizada por um enunciador que, por meio da produção de um

enunciado, se comunica com um enunciatário. Esse enunciador sempre enuncia num tempo e

num espaço. Enunciador e enunciatário, portanto, constituem a primeira instância da enunciação. É dela que trataremos de forma mais detalhada neste estudo, já que o sujeito da enunciação que queremos configurar no discurso é objeto de nossa análise.

Enunciador e enunciatário definem a relação eu/tu que se comunicam num tempo agora e num espaço aqui. A pessoa (eu/tu), o tempo (agora) e o espaço (aqui) são as categorias da enunciação, inerentes a qualquer ato de enunciação. Em toda enunciação, aquele que enuncia é sempre um eu que enuncia aqui e agora.

Diz-se que aquele que enuncia é o enunciador, ou seja, o enunciador seria o sujeito da enunciação. No entanto, como o enunciador (eu) sempre enuncia para um enunciatário (tu) e, por isso, precisa adequar a sua enunciação às competências deste, o enunciatário determina o

trabalho do enunciador, tornando-se coenunciador. Nesse sentido, o sujeito da enunciação é, na verdade, uma entidade complexa constituída por enunciador e enunciatário.

Dissemos que o enunciado, isto é, o texto, é o produto da enunciação. Na construção desse enunciado, o enunciador, por um mecanismo denominado debreagem, projeta no enunciado as marcas da enunciação.

Pode-se tentar definir debreagem como a operação pela qual a instância da enunciação* disjunge e projeta fora de si, no ato* de linguagem e com vistas à manifestação*, certos termos ligados à sua estrutura de base, para assim constituir os elementos que servem de fundação ao enunciado-discurso*. (GREIMAS; COURTÈS, 2012, p. 111).

A debreagem é um mecanismo fundamental do ato constitutivo do enunciado, pois através dela se pode identificar como o sujeito se projeta no ato da enunciação em relação ao espaço e tempo. Assim ela se desdobra em debreagem actancial (sujeito); espacial (lugar) e temporal (tempo).

Existem dois tipos de debreagem, a enunciativa e a enunciva. Na debreagem enunciativa instalam-se no enunciado os actantes da enunciação (eu-tu), o espaço (aqui) e o tempo (agora). Isto é, há a presença de um eu que se opõe a um não-eu, de um aqui que opõe a um não-aqui e de um agora que se opõe a um não-agora, pois só é possível pressupor um “eu/aqui/agora” no discurso enunciado, porque não se encontra o seu oposto um “não eu/não aqui/ não agora”. No exemplo a seguir será possível mostrar essa projeção (Figura 19):

Figura 19 – Turma do Whatsapp! Achei nosso candidato fake! Fonte: Simão (2014).

No exemplo acima, um actante/enunciador eu, projetado no enunciado na forma de um narrador em primeira pessoa (Achei) dirige-se a um enunciatário tu, representado no enunciado “Turma do WhatsApp!”. Nessa representação da relação narrador/narratário, evidencia-se a projeção do ato da enunciação no enunciado, o que caracteriza uma debreagem enunciativa. Essa projeção actancial, implica, por pressuposição, também a projeção enunciativa do agora e do aqui, já que toda enunciação acontece nessas circunstâncias de tempo e espaço.

Ao contrário da debreagem enunciativa em que se instauram no ato da enunciação um

eu/aqui/agora, na debreagem enunciva instaura-se, como actante do enunciado, um ele, como

espaço deste um (algures) e como tempo um (então). Cabe lembrar que “o algures é um ponto instalado no enunciado; da mesma forma, o então é um marco temporal inscrito no enunciado, que representa um tempo zero [...]” (FIORIN, 2010, pp. 44-45). Vejamos um exemplo (Figura 20):

Escândalo de espionagem dos EUA domina cúpula europeia 24/10/2013 16h25 - Atualizado em 24/10/2013 16h41

Chanceler alemã Angela Merkel diz que teve seu celular grampeado. França também teria sido vítima de espionagem telefônica.

Disponível em: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2013/10/eua-monitoram-telefonemas-de-35-lideres-mundiais- diz-jornal.html. Acesso em 09/12/2015.

Figura 20 – Notícias G1 Mundo Fonte: Globo.com (2013)

No exemplo acima, ocorre uma debreagem enunciva, pois a informação é dada em 3ª pessoa, por um editor, com objetivo de provocar um efeito de sentido de objetividade ao que está sendo dito. No enunciado encontramos marcas enunciativas que nos permitem ver quem são os actantes do enunciado, a Chanceler Alemã Ângela Merkel e França (no lugar de autoridade que a represente). O espaço enunciado, marcado a partir de um algures, é a Europa. Já o tempo, não-enunciado, mas pressuposto, é um marco ao então, anterior ao noticiado.

Do ponto de vista do enunciado, do texto, se nele estiverem projetadas as marcas da enunciação, ou seja, se ele for produto da debreagem enunciativa, esse texto é denominado de texto enunciativo. Se, porém, as marcas da enunciação nele estiverem apagadas, o denominamos texto enuncivo.

A presença ou a ausência das marcas da enunciação no texto implica a produção de diferentes efeitos de sentido. O texto enunciativo vai produzir efeitos de sentido básicos de subjetividade, de pessoalidade e de proximidade e outros efeitos decorrentes destes. Já o texto enuncivo produz efeitos de objetividade, de impessoalidade e de distanciamento que implicam, por sua vez, dependendo do tipo de texto, efeitos de verdade, de credibilidade e outros.

Um outro mecanismo de construção do enunciado é o denominado embreagem que, ao contrário da debreagem, retira da instância da enunciação a pessoa, o espaço e o tempo do

enunciado. A embreagem é “o efeito de retorno à enunciação” produzido pela neutralização das categorias de pessoa e/ou espaço e/ou tempo, tendo-se, assim, a embreagem actancial, a embreagem espacial e a embreagem temporal (Fiorin, 2010, p. 48).

Pode-se encontrar exemplos de embreagem actancial em muitos textos da Bíblia Sagrada, em que Deus fala ao povo, mas não diz - Eu falo -, isso é, não assume a primeira pessoa do discurso eu, mas antes, retira do enunciado a marca de pessoa, como no exemplo a seguir:

“E Deus disse mais a Moisés: Assim dirá aos filhos de Israel: O Senhor Deus de

vossos pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque, e o Deus de Jacó, me enviou a

vós; este é meu nome eternamente, e este é meu memorial de geração em geração”

(Êxodo, capítulo 3, verso 15). A embreagem espacial consiste em fazer o mesmo processo de substituição, somente no âmbito das categorias de espaço. Por exemplo, quando um professor interpela, em sala de aula, um aluno, dizendo, por exemplo, “Você lá do fundo, diga-me um afluente do Rio Amazonas!” Neste caso o uso da lá tem um valor de aí, que é a categoria espacial referente ao interlocutor, isto é, ao você. Ocorreu então, no exemplo, uma embreagem espacial.

E, por fim, na embreagem temporal ocorre a neutralização de categorias de tempo. É muito recorrente essa embreagem em manchetes de jornais. Por exemplo, na manchete “Ônibus bate em caminhão e mata professores e alunos”, o tempo presente dos verbos não corresponde ao tempo do ocorrido, ou seja, para efeitos de notícia, usa-se o presente com o valor de passado. Assim como a debreagem, as diferentes formas de embreagem produzem diferentes efeitos de sentido.

Por fim, considerando o processo de delegação de vozes na construção do enunciado, podem-se identificar ainda as debreagens de 1º grau e de 2º grau. Esse aspecto trata das instâncias da enunciação, conforme aponta este esquema (Figura 21):

Figura 21 – Quadro das instâncias da enunciação Fonte: Fiorin (2010, p. 69)

Já dissemos acima que a primeira instância da enunciação é a relação entre enunciador e enunciatário. Considerando essa instância em relação ao enunciado, ela é sempre pressuposta. Na medida em que o enunciador delega a sua voz ao narrador, fazendo uma debreagem de 1º grau, instala-se no enunciado a segunda instância da enunciação: a relação narrador/narratário. E, quando o narrador delega a sua voz a uma outra fonte enunciativa dentro do enunciado, o interlocutor, ocorre uma debreagem de 2º grau, o que resulta na terceira instância da enunciação: a relação interlocutor/interlocutário.

Nesta tese enfatizaremos a instância actancial na constituição do enunciado, ou seja, a relação enunciador/enunciatário, já que é nosso objetivo estudar o sujeito da enunciação. As duas outras categorias da enunciação, o tempo e o espaço, apresentaremos, na medida do necessário.

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