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A União é titular das competências relacionadas à indústria da eletricidade (vide art. 21, XII, b da Constituição Federal).24 Como tal, pode prestar diretamente as atividades inerentes ao funcionamento do respectivo setor ou delegá-los, aspecto este reforçado, em relação aos serviços públicos, pelo art. 175 da Constituição Federal.

Todavia, há diversos contextos em que o Estado percebe as vantagens, momentâneas ou duradouras, do exercício de tais competências por agentes privados. Esta situação pode decorrer, por exemplo, do fato de um ou mais grupos privados dominarem os conhecimentos técnicos necessários ao exercício da atividade desejada

24 Art. 21. Compete à União: XII - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou

permissão: b) os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos;

54 pelo Estado, sem que a Administração possa, por falta de conhecimentos técnicos, realizar diretamente a atividade. Assim, o Poder Público possibilita que o particular, detentor de tais conhecimentos especializados, preste a respectiva atividade.

Outro potencial fundamento para o recurso ao instituto da concessão é a possibilidade de realização de investimentos em patamar muito superior ao que o Estado poderia alcançar apenas com as inversões públicas e, ainda assim, ter ao final da concessão, a propriedade dos respectivos bens. Com a concessão, diversos particulares, interessados em obter retorno a um capital, realizariam consideráveis investimentos, obtendo como contrapartida um determinado valor por um período certo. A concessão seria o instituto que permitiria a elevação da capacidade de investimento estatal, mediante a inversão de recursos privados por concessionários.

Para ilustrar este mecanismo, vale transcrever as lições de Alfredo Valladão na Exposição de Motivos do Código de Águas de 1934 (BRASIL, 1980), expressamente embasadas nas considerações de Francesco S. Nitti (1905), em sua obra “La Conquista

della Forza”:

Recomendando a produção de energia elétrica pelo Estado, considerava Nitti que isto se podia obter, dentro de algum tempo, sem que o mesmo houvesse feito qualquer construção.

Para tal bastava que se seguisse prática diversa da consagrada até ali sobre a concessão, e que consistia em aumentar os créditos do Estado e fazer concessões longas.

Limitassem-se esses créditos a uma pequena importância, só para atestar o jus imperii, e se abreviassem as concessões nunca a mais de 20, 25 ou 30 anos.

Terminando o prazo da concessão, passaria para o domínio do Estado a construção feita.

Com fundamento em tais considerações, Valladão propôs no Código de Águas de 1934 a concessão pelo prazo máximo de 30 (trinta) anos, com a amortização completa de capital em tal período e a reversão para o Estado, sem indenização, das obras das centrais hidrelétricas e respectivas linhas de transmissão.

Ou seja, segundo esta ótica, a concessão era um meio de o Estado obter o que desejava (investimento no setor elétrico) sem o dispêndio de capital próprio. Um particular realizaria os investimentos, exploraria a atividade por um determinado período de concessão e todo este plexo de bens seria de propriedade estatal ao fim do prazo da mencionada exploração.

55 Um terceiro possível argumento para a concessão é o reconhecimento pelo Estado de que o particular seria, ao menos em tese, mais eficiente na gestão de recursos, tema este de forte conteúdo ideológico e bastante presente na arena política, em que se confrontam discursos de cunho liberal ou neoliberal – com fortes críticas ao Estado Providência, do Bem-Estar Social – e defensores de um maior grau de intervencionismo estatal.

Para os que sustentam a maior eficiência do particular na gestão de recursos (Mises, 1990, entre outros), a Administração teria conhecimento de que a atividade estatal possui diversos limitadores à eficiência, ao menos se considerados os patamares verificados em alguns agentes do setor privado.25

Nesse cenário, o Estado pode reconhecer as vantagens da realização de certas atividades por investidores privados, e pressupor que estes as prestariam, num ambiente de forte competição, a menor custo do que o decorrente da intervenção estatal direta. Partindo desta premissa (desvantagem natural da gestão de bens e serviços pela Administração), o Estado poderia, voluntariamente, alterar significativamente o seu papel: ao invés de prestar os serviços diretamente, os delegaria aos investidores privados e passaria apenas a ditar-lhes as regras, fiscalizar-lhes o cumprimento e aplicar-lhes sanções, se necessário.

Cada um dos fundamentos acima expostos está presente, em maior ou menor medida, na adoção do instituto da concessão (e também da autorização) ao longo da história do setor elétrico brasileiro.

Em relação ao recurso à concessão como um consentimento estatal para que o agente privado invista seu capital em atividades relacionadas a conhecimentos específicos de que o Estado não dispõe, é de se destacar que o início da evolução do setor elétrico foi realizada nesse cenário.26

25 Como exemplos das desvantagens da administração estatal, podem ser citados a existência de teto

remuneratório no setor público (que afastaria os melhores profissionais); o baixo grau de bonificação à remuneração do empregado eficiente (o que diminuiria o interesse deste pelo lucro da empresa); a dificuldade para a demissão de funcionários pouco produtivos; a obrigatoriedade de licitação para a aquisição de bens e serviços (que pode conduzir à sua aquisição por preços elevados e com menor agilidade); a disponibilidade de capital a taxas de juros mais elevadas do que as ofertadas a diversos agentes privados; entre outros fatores.

26 No início do Século XX, grupos privados internacionais, detentores de patentes e tecnologias em

desenvolvimento, obtinham do Estado a concessão para explorar determinadas atividades numa dada área geográfica. A Administração utilizava o instituto da concessão para permitir que um agente privado exercesse uma atividade que o Estado não tinha condições técnicas e econômicas de prestar diretamente. Atualmente, a utilização da concessão (ou autorização) sob este enfoque é bastante reduzida no cenário nacional. As diversas empresas estatais federais e estaduais com atuação no setor elétrico possuem capacidade técnica e econômica para a implantação de instalações de geração – a partir das mais variadas fontes, sobretudo a hidrelétrica –, como também de transmissão e de distribuição de eletricidade. Todavia, tal viés parece estar presente no Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica –

56 A segunda explanação para o recurso à concessão – o caminho para a estatização sem dispêndio de recursos públicos –, pautou uma ampla gama de delegações efetuadas a partir do Código de Águas, especialmente após o Estado Novo.

A partir das reformas da década de 1990, as concessões com previsão de reversão de bens são reservadas à geração hidrelétrica (porque abrange bem público, o potencial hídrico) e à transmissão e à distribuição de eletricidade (porque configuram monopólios naturais). Diversas modalidades de geração (eólica, térmica a combustíveis fósseis ou a biomassa, solar, etc.) são consentidas pelo Estado por autorização ou registro, sem previsão de reversão de bens. A outorga não é mais, assim, o caminho para a socialização dos bens da indústria da eletricidade, mas um instrumento necessário às delegações de uso de bem público (potencial hídrico) e de prestação de serviço público. A reversão não é mais o objetivo central da concessão, mas uma necessidade jurídico- regulatória restrita a casos específicos (uso de potencial hídrico e prestação de serviços públicos).

Qualquer que seja o fundamento do Estado para a utilização da concessão, ainda que tal lastro permaneça presente, é grande a controvérsia acerca da possibilidade da prorrogação de seus contratos, como se verá a seguir.