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Do funky ao funk: origens, crescimento e consolidação como manifestação artística

4. CÂNTICOS E MÚSICAS: O FUNK É NOSSO RITMO

4.1 Do funky ao funk: origens, crescimento e consolidação como manifestação artística

Nos anos 1960, surge nos EUA, como uma mistura do gospel americano negro e do rhythm and blues, a música soul. Tal estilo musical logo passou a servir como uma verdadeira trilha para a luta por liberdades civis para os negros ianques, tendo como grandes expoentes os astros James Brown e Ray Charles (VIANNA JÚNIOR, 1987, p. 45). Com versos como “Raise on up, get yourself together and drive

that funky soul71” e “Say it loud, I'm black and I'm proud72”, Brown, o artista afro-

americano mais bem-sucedido daquela época, trazia a política pra cultura.

Então, com a futura comercialização maior dessa sonoridade soul, os negros norte-americanos partiram para um som mais agressivo e pesado, chamado de funky music. Segundo Vianna Júnior (1987):

Em 68, o soul já tinha se transformado em um termo vago, sinônimo de “black music”, e perdia a pureza “revolucionária” dos primeiros anos da década, passando a ser encarado por alguns músicos negros como mais um rótulo comercial. Foi nessa época que a gíria funky (segundo o Webster Dictionary - “foul-smelling; offensive”) deixou de ter um significado pejorativo, quase um palavrão, e começou a ser um símbolo do orgulho negro. Tudo pode ser funky: uma roupa, um bairro da cidade, o jeito de andar e uma maneira de tocar música, que ficou conhecida como funk (VIANNA JÚNIOR, 1987, p.46).

Ao final dos anos 1970, o funk também passa por esse processo de comercialização excessiva e apropriação por parte da cultura branca, criando assim o gênero de disco music, que se tornou uma verdadeira febre no mundo inteiro. Novamente a comunidade negra se reinventa e anos depois da explosão da discotéque, uma nova reinvenção ocorre (VIANNA JÚNIOR, 1987). Surge no final dos anos 1970, em Nova York, no bairro do Bronx, um novo gênero, baseado em uma sonoridade funk e da própria disco. Através de misturas musicais, chamadas de mixagens, um novo jeito de dançar e de se expressar, surge o rap73. Os profissionais encarregados de executar

71 Levante-se, fiquemos juntos e vamos balançar essa alma funky (tradução nossa). 72 Fale alto, sou preto e orgulhoso! (tradução nossa).

73 “Rap music is a black cultural expression that prioritizes black voices from the margins of urban America. Rap music is a form of rhymed storytelling accompanied by highly rhythmic, electronically based music. It began in the mid-1970s in the South Bronx in New York City as a part of hip hop, an African-American and Afro-Caribbean youth culture composed of graffiti, breakdancing, and rap music. From the outset, rap music has articulated the pleasures and problems of black urban life in contemporary America. Rappers speak with the voice of personal experience, taking on the identity of the observer or narrator” (ROSE, p. 2). Ver também LOURENÇO (2010) sobre o surgimento do hip-hop no Brasil.

esse som eram chamados de DJs e estes trabalhavam inicialmente com as levadas de bateria e baixo da disco, o breakbeat, para tecer novas sonoridades favoráveis a dança break (dança do estilo hip hop). Durante os anos 1980, o hip hop foi crescendo, saindo de NY e ganhando o mundo, tornando-se um gênero famoso no mundo todo até os dias atuais.

E aqui no Brasil, onde estava o funk? Bem, segundo o antropólogo Hermano Vianna Júnior (1987), os primeiros bailes black no Rio começaram na Zona Sul, no espaço do restaurante Canecão, isso nos anos 1970. Eram os bailes da pesada. Contudo, a casa mudou de proposta afim de buscar um outro público mais “intelectualizado”, segundo um dos DJs da festa chamado Ademir Lemos, que aparece na pesquisa de Vianna Júnior (1987, p. 52). E com essa mudança os bailes passaram a ocorrer nos clubes de subúrbio, a cada domingo num bairro diferente, principalmente nos da Zona Norte carioca. O sucesso foi tão grande que até em outras cidades ocorreu, como em Brasília.

Essa cena evoluiu, com os donos de baile montando suas próprias equipes de som: Soul Grand Prix, Revolução da Mente, Black Power. Existia todo um sistema para que os discotecários conseguissem acessar o que estava sendo lançado no exterior, afinal, naqueles tempos, poucas lojas brasileiras traziam essas gravações. Quando algum disco de boa qualidade caía nas mãos desses produtores, logo faziam questão de rasgar o rótulo e colocar outro para que as pessoas não identificassem que disco era aquele (VIANNA JÚNIOR, 1987, p. 54). Futuramente, toda essa cena passou a ser chamada de Black Rio e passou a haver um investimento de grandes gravadoras no sentido tanto de importar sucessos internacionais, quanto de promover artistas brasileiros a cantar o estilo. Além disso, os bailes passaram a investir mais num caráter educativo e cultural:

Os bailes da Soul Grand Prix passaram a ter uma pretensão didática, “fazendo uma espécie de introdução à cultura negra por fonte que o pessoal já conhece, como a música e os esportes.” (Jornal da Música, Nº 30:4) Enquanto o público estava dançando, eram projetados slides com cenas de filmes como Wattstax (documentário de um festival norte-americano de música negra), Shaft (ficção bastante popular no início da década de 70, com atores negros nos papéis principais), além de retratos de músicos e esportistas negros nacionais ou internacionais. Os dançarinos que acompanhavam a Soul Grand Prix (e também a equipe Black Power) criaram um estilo de se vestir que mesclava as várias informações visuais que estavam recebendo, incluindo as capas dos discos. Foi o período dos cabelos afro, dos sapatos conhecidos como pisantes (solas altas e multicoloridas), das calças de boca estreita, das danças à la James Brown, tudo mais ou menos vinculado à expressão “Black is Beautiful”. Aliás, James Brown era o artista mais tocado

nos bailes. Suas músicas, principalmente Sex Machine, Soul Power, Get on The Good Foot, lotavam as pistas de dança (VIANNA JÚNIOR, 1987, p.56). Mesmo com esse sucesso em presença de público, muitos dos artistas de soul brasileiros que tentaram emplacar suas carreiras não obtiveram êxito. O movimento seguinte foi então o do abandono de gravadoras acerca da cultura funk e voltando-se especificamente para o que estava em voga no momento no mundo, que era a disco music. As equipes de som também acabaram enxergando a oportunidade e não perderam tempo:

Quando os filmes de John Travolta e a febre da discoteca chegaram ao Brasil, a maioria das equipes aderiu ao novo ritmo, para desespero dos fãs do soul. Esse foi um momento raro: a Zona Sul e a Zona Norte estavam dançando as mesmas músicas (VIANNA JÚNIOR, 1987, P. 62).

E então, com o final do auge da disco, logo as pessoas da Zona Sul passaram a ouvir outros estilos que estavam em voga nos anos 1980, como o new wave e o punk, enquanto que a Zona Norte permaneceu fiel ao black norte-americano, originando o que hoje é chamado no Rio de baile de charme. E isso, concomitantemente com o surgimento do hip hop no exterior e chegada desse estilo no Brasil. As rádios que tocavam charme passaram a inserir o hip hop em sua programação (VIANNA JÚNIOR, p.62) mais e mais.

Com isso, as equipes, como a Furacão 2000, passaram a organizar os chamados bailes funk, contudo, esses bailes de funk se diferenciavam do baile de charme (mais voltado para o soul americano e funk). Nesse baile, do chamado funk carioca, mesmo que até o final dos anos 1980 as músicas fossem internacionais, as coisas eram diferentes. O jeito de dançar era mais sensual e provocante, os DJs buscavam acentuar os graves das músicas e as batidas fortes, além disso, os nomes das músicas passavam por alterações para o português, adaptando para a forma como o público dos bailes cantavam. Isso fez com que se iniciasse esse processo de nacionalização do funk, que se concretizou na década seguinte, a de 1990 (FERREIRA; ARAGÃO; ARRUDA, 2010).

O processo de construção de um funk carioca e, portanto, brasileiro, teve início na década de 1980. As músicas em inglês, incompreendidas pelo público, passaram a ser substituídas por frases com sonoridade semelhante em português, embora com sentido completamente diferente. Nascia um produto híbrido; novas ancoragens eram postas em marcha. Esse tipo de apropriação criativa ficou conhecida como "melô" e os exemplos são muitos: "you talk too much" deu lugar a "taca tomate" (melô do tomate) e "I' ll be all

you ever need" transformou-se em "ravioli eu comi" (Herschmann, 2005). Mas foi a transformação do refrão "Whoomp! There it is" em "Uh! Tererê!", na primeira metade da década de 1990, que extrapolou o universo funk e ganhou as ruas. Virou hino de torcida de futebol ("Uh! Tererê! Sou Flamengo até morrer") e jingle de campanha política para a prefeitura do Rio de Janeiro em 1996 ("Uh, tererê, vote no PT"). (FERREIRA; ARAGÃO; ARRUDA, 2010, p. 40).

Desde meados da década de 80, a musicalidade do funk carioca era advinda do hip hop feito na região da Costa Leste norte-americana, mais especificamente na Flórida, o chamado Miami Bass (LOPES, 2010). As temáticas das músicas cantadas tinham por princípio, “quase sempre, longas narrativas que falavam de paixão e de desilusões amorosas, retratavam os prazeres e as dificuldades de se viver em uma favela ou pediam paz nos bailes” (LOPES, 2010, p. 133). Esse último pedido tem a ver com um formato que os locais de festa passaram a ter a partir dessa década. Com a chegada os anos 90, os bailes funk cariocas passam a ter uma nova configuração. A partir desse período, os bailes passaram a ser divididos em de comunidade, de corredor e normais.

Os bailes de corredor e os normais aconteciam em lugares semelhantes, e também “eram pagos e ocorriam em clubes, escolas de samba e CIEPS do subúrbio do Rio de Janeiro e Baixada Fluminense. Contavam geralmente com instalações precárias e área física incompatível com o número de frequentadores” (CYMROT, 2012, p. 171). O que diferenciava os dois, basicamente, era a proibição de brigas. Nos normais estas não eram toleradas. Nos bailes de corredor essa era a principal temática da festa e esse confronto era estimulado por produtores de equipes e DJs das festas. Contudo, havia uma quantidade reduzida de bailes normais que as permitia apenas no final da festa. Nesses bailes, os duelos só aconteciam nos últimos 15 minutos de festa, que era conhecido como “quinze minutos de alegria” (CYMROT, 2012, p.171). Os bailes de comunidade, por sua vez, costumavam ser gratuitos, realizados nas favelas mesmo e as brigas não eram permitidas também, para que a polícia não fosse atraída para o local. Normalmente, essas interdições partiam dos traficantes que comandassem a região (CYMROT, 2012; CUNHA, 2001).