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3 Morte-rito

3.4 Funus Imaginarium

Em Roma, numa demarcação ao culto egípcio do corpo como vaso único de sustentação da alma, surge um dos mais importantes elementos da imagética e estatuária, a imago, máscara de cera que representava o defunto. Construídas por molde da cara do falecido, do qual se poderiam fabricar cópias, deram origem ao funus imaginarium, funerais de corpo ausente, em determinados casos, a imago era queimada, muitas vezes numa recapitulação do funeral e da cremação em pira. Na Grécia temos o colossus21 e o eikon22, escultura em pedra que se esperava

encarnar o espírito do morto, que, embora com características indiciais diferentes, serviam o mesmo propósito (Vernant, 1993: pp. 27-29). Estes costumes das imago romanas do colossus e do eikon gregos, são remotos e não surgem inteiramente como uma substituição do cadáver como poderá parecer. Nos casos dos funus imaginarium, por vezes, mesmo quando o cadáver estava disponível, a imago era pintada num tom a assemelhar o rigor mortis, visitada pelos médicos e velada por sete dias ao fim dos quais era certificado o seu falecimento (Sumi, 2005: pp. 108-109). Por tal, a imago não era uma idealização nem uma abstração, ela permitia realizar culto funerário na ausência de corpo. A imago era uma presença real, operava por metonímia e não por metáfora. Buscavam não a parecença com o morto, mas a sua efetiva substituição. As máscaras, e o seu uso posterior por atores (por vezes descendentes dos próprios falecidos), são um meio antiquíssimo de corporização e Roma dá-lhe um caráter histórico, cívico e político em espetáculos que têm o

21 Estátua antropomórfica de corpo inteiro. 22 Estátua antropomórfica de um busto.

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sentido de manter o defunto genérico, normalmente um notável ou herói, no seio da comunidade (Belting, 2014: p. 222).

Há, no entanto, uma representação de morte já mencionada que é a mais habitual de todas na cultura católica do norte de Portugal. Cristo e a sua cruz. Com Cristo presente ou Cristo ausente esta simbologia evolui de uma carga de morte para, por interpretação, significar redenção e renascimento. Também como na interpretação da carta de tarot: A Morte, a cruz de Cristo transforma um pathos extremado numa ressurgência para a glória, funcionando a morte como um mecanismo de purgação do que de mal estava para trás (Kerrigan, 2007: p. 73). Portanto a morte de Cristo, representado muitas vezes num esquife, e levado na procissão das velas na quinta e sexta-feira santas, não é pura simbologia de morte, mas sim de redenção e esperança.

Este processo pelo qual o ritual Enterro do Rico Irmão é levado a cabo pode também ser entendido como uma forma de funus imaginarium. A substituição do real ou reais culpados nos rituais de sacrifício por um outro culpado, normalmente um animal, é aqui um antropomorfo que simboliza um irmão da comunidade, um comum. Uma espécie de imago de um herói que morreu e torna a morrer e é cremado em pira. A sua morte é a morte de um salvador, à imagem de Cristo, morre pela humanidade, cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo. O seu julgamento, morte por enforcamento, morte por esfaqueamento, morte por incineração, morte por afogamento e todo este misto de mortes e violências várias que é levado a cabo por uma justiça popular durante o cortejo fúnebre não deixam de ser uma miscelânea de situações e tradições de antanho sobre e justapostas. Há, nesta pantomima, nesta dramatização, um sentido de, a cada ano se reencenar, avivar e marcar na memória coletiva um funerário, uma morte que dá sentido e graças à vida, uma morte que é o ralo do pecado e do mal, uma morte que é uma morte heroica porque é ritual de passagem para outra época de um calendário solar que é agrícola, o pico do inverno que já lá vai e a primavera que já espreita. O funcionamento desta ritualização tem proximidades (é afim) ao que se faz no Dia de todos os santos, também um ritual de equinócio, num memorar (e comemorar) da morte que é avivada ciclicamente. Os paralelismos com o ritual do Rico Irmão são consonantes em termos genealógicos. Se por um lado temos: uma morte encarnada no corpo irmão de toda a comunidade, presente e passada, numa purificação e redenção de delitos, pecados e contendas de agora; por outro temos uma dramatização organizada, ritual, encenação com pé em vários rituais e tradições do passado, dum quase sempre.

Sendo um ritual de Entrudo e com características habitualmente jocosas e de inversão, de fazer ao contrário, ainda que efemeramente pode propor um mundo ao contrário, esta farsa

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fúnebre para além de ser um formato de expiação de alguma revolta, pode carregar alguma revolta, propor alguma mudança.

A história milenária do Carnaval desde a originária simbólica da relação entre a vida humana e a vida vegetal, através da recuperação de valências ético-expiatórias, desenrolou-se ao longo do fio inconsciente de uma conceção «pagã» do mundo que hipostasiava o mal fora do indivíduo em figuras cuja sorte se articulou desde a tragédia ritual originária até à farsa fúnebre da idade moderna. Ela constitui portanto um possível paradigma da tradição e aparece como uma instituição cuja historicidade era em parte jogada a nível inconsciente (a festa, a ciclicidade dos acontecimentos, o «mundo às avessas» ritualizado) e, em determinados momentos (no tempo das revoltas camponesas na Europa entre os séculos XVI e XVIII), caracterizada por tomadas de consciência coletivas que tenderam a romper a ciclicidade e a repetição para inaugurar, aliás sem resultado apreciável, um mundo às avessas não efémero ou, pelo menos, uma sociedade mais justa. (Prandi, 1997: p.187).

O facto de o referido mundo às avessas poder ser aproveitado para algum tipo de revolta, sendo ele próprio uma expiação de alguma revolta numa farsa ou pantomima parece ter a efemeridade do próprio ritual. Há, no entanto, no jocoso do julgamento e da leitura do testamento no ritual do Enterro do Rico Irmão um contínuo alerta e uma crítica sagaz ao que de melhor poderia ser administrativamente, politicamente, socialmente a comunidade. Há, portanto, um dar voz ao coletivo subalterno: povo, e que momentaneamente a tem.

No documento CATARSE COLETIVA OU A COMUNIDADE EM PIRA (páginas 86-88)

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