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Palimpsestos cíclicos

No documento CATARSE COLETIVA OU A COMUNIDADE EM PIRA (páginas 88-93)

3 Morte-rito

3.5 Palimpsestos cíclicos

À luz dum entendimento um pouco mais distante acerca deste ritual, que se escreve a fogo nas ruas da modesta aldeia do Touro a cada ano, tentar-se-á relacionar alguns elementos que possam estruturar e racionalizar de uma forma mais inteligível este excesso, visual e sensorial. Depois de uma caracterização da terra, do seu homem e também do seu ritual percebe-se que a original ligação, fruto da dependência à terra, ainda se inscreve no seus rituais e festividades, este Carnaval é disso exemplo. Há uma óbvia ligação entre o ritual, que atrás se descreve, às festas Saturnais, Lupercais, de oferendas a Ísis, eventualmente a rituais anteriores de fertilidade primaveril e que representavam um ritual de passagem para um novo ciclo agrícola. A caracterização um pouco insular do planalto serrano da Nave, a sua secular cultura mista de agricultor de subsistência e de caçador recolector, como afirma o já referenciado Aquilino, bem dentro do Séc. XX, levam a acreditar que a oikonomia desta comunidade tenha sido determinada pela natureza que o envolve. Estes ritos de passagem são, portanto, celebrações a esta natureza e por ela determinados.

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A ligação à estrutura trágica do teatro grego é óbvia: claramente dividida em atos, com personagens mascaradas mais ou menos rígidas, o palco e a plateia e até a sátira em formato tragicómico ou drama satírico, um híbrido da tragédia e da comédia, mas que mantém a estrutura trágica. Os elementos da tragédia grega, que não estão nem todos presentes nem particularmente desenvolvidos nesta dramaturgia popular, serão óbvios: o pathos, o conflito, a peripécia, a catástrofe e talvez, num tom constante durante todo o ritual, a catarse. Neste último elemento, encontramos a razão forte de toda esta pantomima, numa purificação das emoções e paixões, através do terror da morte e da (alguma) piedade que provoca nos espectadores sempre participantes (Freire, 1985: passim).

O caráter dionisíaco descrito por Nietzsche é facilmente apercebido em todo o ritual: o excesso, a embriaguez e talvez também o sentido geral dos acontecimentos são também sonantes na imagem dum Zaratustra velho:

Assim falou o mais Hediondo dos Homens, mas a Meia-Noite aproximava-se. E que julgais que sucedeu? Logo que os Homens superiores ouviram a sua pergunta, sentiram-se transformados e curados e recordaram-se daquele a quem deviam essa cura. E precipitaram-se para Zaratustra, agradecendo-lhe, adorando-o, beijando-lhe as mãos, cada qual a seu modo, uns rindo, outros chorando. Mas o velho profeta dançava de alegria. E se é verdade, como pensam alguns autores, que ele estava então cheio de vinho doce, estava certamente ainda mais cheio da doçura de viver e tinha esquecido qualquer melancolia. Alguns contam que também o burro dançou nesse dia; porque não fora debalde que o mais Hediondo dos Homens o tinha obrigado a beber vinho. Seja como for, se o burro não dançou nesse dia, viram-se dessa vez prodígios mais singulares do que a dança de um burro. Enfim, como diz o provérbio de Zaratustra: “Que importa!” (Nietzsche, 1985: p. 356-357).

Nietzsche, no seu Origem da Tragédia estabelece metaforicamente a ponte entre: o dionisíaco e a embriaguez; o apolíneo e o sonho; criando um paralelismo em que as duas componentes estão obviamente inclusas no ritual que até aqui se vem a descrever. O caráter de excesso e embriaguez e um óbvio sentido de falência da individuação (Nietzsche, 1988: p. 39) estão presentes num quase establishment dum inconsciente coletivo. Diz-nos Nietzsche, quase a descrever o ritual da Aldeia do Touro:

Graças ao poderio da beberagem narcótica era que todos os homens e todos os povos primitivos cantavam os seus hinos. Ou então era isso devido à força despótica de renovação primaveril, aquela que alegremente penetra em toda a natureza, que vai despertar a exaltação dionisíaca, que vai atrair o indivíduo subjetivo, para o obrigar a aniquilar-se no total esquecimento de si mesmo. (idem, 1988: p.39)

Continuando com a descrição, Nietzsche diz-nos que estas manifestações em multidão eram “movidas por um sopro báquico”, compara-as com o São João e às Janeiras na Alemanha e estrutura-as dentro de uma génese um pouco perdida desde os coros báquicos até às orgias sírias (idem, 1988: p. 40). Mas se aparentemente nesta multidão comunidade não temos uma presença

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do sonho apolíneo, Nietzsche oferece-nos algumas pistas para o encontrarmos. O sentido geral na caracterização do Inferno de Dante na sua Divina Comédia traz-nos um sentido da presença do espírito dionisíaco:

Assim naquele abismo se agitando As flamas via; em cada qual estava Uma alma, em seus fulgores se ocultando.

Para ver, lá da ponte, me inclinava: Se amparado da rocha eu não stivesse, Tombara ao fundo dessa hiante cava. (Allighieri, 2003: p. 222)

Nietzsche entende que, pese embora a demoníaca e sulfurosa descrição do inferno de Dante, o sonho apolíneo não comporta apenas “imagens agradáveis e deliciosas que o artista descobre dentro de si e estuda com absoluta nitidez” mas “também o severo, o sombrio, o triste e o sinistro” (Nietzsche, 1988: p. 37) e dá como exemplo disso o próprio Divina Comédia no

Fig. 19 – O Inferno, Os conselheiros do mal. Ilustração de Sandro Botticelli do Inferno de Dante.

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Inferno. Nietzsche tranquiliza o espectador com as suas frases “Isto não é mais que um sonho! Não me importo que continue! Quero mesmo que não cesse! Quero sonhar ainda mais!” (idem, 1988: p. 37)

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Há também o inevitável sonho de catarse pela morte, pelo fogo e pela redenção no jejuar da quaresma que se aproxima. Além de que o fogo é um dos elementos essenciais onde cresce o conforto apolíneo, e se acabam males e pecados, como em Dante: “Do fogo ali se extingue toda a sanha” (Allighieri, 2003: p. 128). Numa espécie de inevitabilidade indissociável, o dionisíaco, comporta em si, o sonho apolíneo, em duas faces da moeda que é esta dramaturgia popular em tragédia ática: O Enterro do Rico Irmão.

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