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GÊNERO E EXPANSÃO DO HIV/aids ENTRE AS MULHERES

A distribuição da epidemia de aids no Brasil está afetada por um conjunto de determinantes socioculturais, das quais nosso estudo recorta as relacionadas às assimetrias de poder de gênero.

Recentes dados oficiais sobre a aids no Brasil informam que, no período de 1980 até junho de 2009, foram identificados cerca de 550 mil casos de aids no país, sendo 65,4% no sexo masculino e 34,6% no sexo feminino. Entre homens, a taxa de incidência em 2007 foi de 22 casos por 100 mil habitantes. Nas mulheres, a taxa foi de 13,9 casos por 100 mil habitantes.

A razão de sexo (número de casos em homens dividido pelo número de casos em mulheres) no Brasil diminuiu consideravelmente do início da epidemia para os dias atuais: em 1986, a razão de sexo era de 15 casos de aids em homens para cada caso em mulheres; a partir de 2002, houve uma estabilização em 15 casos em homens para cada 10 em mulheres. Nestas, o predomínio da forma de transmissão é heterossexual, em toda a série histórica. Em 1997, essa forma de transmissão era responsável por 88,7% dos casos. Em 2007, esse percentual alcançou 96,9%.

A expansão da aids na população feminina vem sendo apontada desde a última década do século XX por pesquisas na área da Saúde Coletiva (BRASIL, 1995; PARKER e GALVÃO, 1996; BARBOSA e VILLELA, 1996; ÁVILA, 1999; BARBOSA, 1999; PAULILO, 1999).

Em seus estudos, GUPTA (2000, 2002) e GUPTA e WEISS (1996) afirmam que a disseminação da infecção entre as mulheres acontece basicamente pela

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via sexual, através de seus parceiros, e que as relações desiguais de poder no campo do gênero contribuem para aumentar a vulnerabilidade das mulheres em relação ao HIV/aids.

Na segunda metade dos anos 90, pesquisadoras e pesquisadores se debruçaram igualmente sobre a análise do tratamento que a mídia deu ao tema do HIV/aids, seja apontando para o teor amedrontador por ela adotado (PARKER e GALVÃO, 1996), seja salientando que os veículos de comunicação disseminavam a idéia de que a aids era uma “doença da imoralidade” (AYRES et al., 1999).

O trabalho de relacionar a doença a pessoas que tinham determinados comportamentos considerados “desviantes”, numa tentativa de responsabilizar principalmente o indivíduo pela infecção, ajudou a criar um imaginário no qual a pessoa soropositiva havia jogado com a própria sorte, ao desempenhar atos considerados “socialmente inaceitáveis” (VILLELA, 1999).

HEILBORN, 2003, refere achados da literatura sobre os nexos entre gênero e aids e sinaliza que entre os sentidos associados a essa epidemia está o de “pureza/poluição” dos parceiros,

(...) fazendo com que a idéia de „pessoa conhecida‟ – leia-se: aquela que, em princípio, compartilha o mesmo universo de valores – recaia fora do campo de um possível agente de contaminação (sic) (HEILBORN, 2003, p. 203).

A construção contemporânea da “pessoa poluidora” como sendo a infectada pelo HIV é igualmente mencionada por BUTLER (2003, p. 189), em seu livro Problemas de Gênero, na passagem em que discorre sobre as noções de “fronteiras do corpo”, “forças poluidoras” e “pessoas poluidoras” (Douglas apud BUTLER, 2003, p. 189; Watney, S. apud BUTLER, 2003, p. 189). Ao transgredir as “fronteiras do corpo” e estabelecer “permeabilidades corporais” não sancionadas pela ordem heterossexual hegemônica, a homossexualidade masculina estaria constituindo, segundo a visão androcêntrica dominante, “um

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lugar de perigo e poluição, anterior à presença da AIDS (sic)” (BUTLER, 2003, p. 190).

Acrescentaríamos aqui que, embora anterior à epidemia, a categoria “pessoa poluidora” associada ao contexto gay voltou a ser acionada pela ordem hegemônica androcêntrica e homofóbica, tão logo se tomou conhecimento da epidemia e à custa de não publicizar, por uma questão de gênero, a expansão desta entre as mulheres. Isto contribuiu para que elas, particularmente as “casadas”, ficassem em posições de vulnerabilidade ao HIV/aids, talvez porque não parecesse coerente a essa ordem dominante reconhecer publicamente a entrada do HIV na “casa”, esse espaço supostamente “feminino e puro”.

De maneira geral, a mídia, no princípio da doença, se ausentou da discussão sobre a disseminação do vírus nas mulheres, deixando de esclarecer a forma com que a transmissão da epidemia de fato acontecia (GONÇALVES e VARANDAS, 2005) e negligenciando a existência da transmissão por via heterossexual (PARKER e GALVÃO, 1996).

Em artigo divulgado na Folha de São Paulo10, por ocasião do dia 1º de

dezembro de 2008, dia mundial de luta contra a aids, o infectologista Caio Rosenthal e o ativista Mário Scheffer pedem que o Brasil assuma os fracassos da prevenção:

Dobrou em uma década a incidência entre homens e mulheres com mais de 50 anos. Aumentaram os registros de Aids entre a população escolarizada, com oito a 11 anos de estudo (ROSENTHAL; SCHEFFER, 2008).

Os autores do artigo alertam para o baixo número de testes anti-HIV na população como uma “grave falha na prevenção”. Outra falha “foi a tentativa de reduzir o sexo a ato antisséptico”. A prevenção, dizem eles, “exige mudanças

10 ROSENTHAL, C.; SCHEFFER, M. Aids: os fracassos da prevenção. Folha on line, São Paulo, 02 dez. 2008. Disponível em:

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radicais, que respeitem as escolhas individuais, mas também os contextos nos quais as pessoas estão inseridas” (idem).

Quando MANN e TARANTOLA (1996) importaram o conceito de vulnerabilidade do campo dos Direitos Humanos para o campo da Saúde, surgiu a possibilidade das intervenções relacionadas com a prevenção do HIV/aids superarem o horizonte normalizante que até então as limitava. Isto porque o conceito de vulnerabilidade deslocou o foco das ações, antes centradas no indivíduo, para o contexto onde se vive, criando a possibilidade de maior aproximação com outros campos de conhecimento, tais como o dos estudos de gênero.

Em seu livro Aids In The World II, que expõe o conceito de vulnerabilidade e o modo como deve ser operacionalizado no enfrentamento da infecção por HIV/aids, estes autores afirmam que a vulnerabilidade é maior ou menor dependendo de múltiplos fatores, tais como os socioculturais, evidenciados nas discriminações baseadas nas hierarquias de gênero. Neste sentido, o conceito de vulnerabilidade é útil para identificar as razões pelas quais algumas pessoas ou grupos estão em situação de maior vulnerabilidade diante do HIV e da aids do que outros.

Uma dessas razões reside na maneira como as sociedades organizam a dimensão do gênero. Naquelas onde predominam arranjos mais tradicionais, de visão androcêntrica, a dominação masculina - com sua intrínseca hierarquia que coloca homens e mulheres em posições assimétricas de poder e que legitima formas de violência e coerção – a desigualdade de gênero tende a ser vista como “natural” (BOURDIEU, 2003). Nestas circunstâncias, passa a ser mais difícil às mulheres conversarem com seus parceiros sobre o HIV e a aids (BARBOSA, 1999), assim como problematizarem com eles as linhas simbólicas que demarcam e separam o masculino e o feminino.

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OBJETIVOS