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A INSTABILIDADE DA CATEGORIA GÊNERO

Gênero é um termo saturado de definições e sentidos que se distribuem por uma gama de perspectivas teóricas que habitam distintos campos da produção de conhecimento, mas que ganhou força com estudos da antropologia que se afastaram do “modelo da influência cultural”, tido como essencialista, e em seu lugar propuseram um modelo de análise baseado na teoria da construção social (VANCE, 1995; Vance apud LOYOLA, 1998).

O gênero como categoria de análise emergiu com as críticas feministas às abordagens que explicavam a assimetria de poder, entre mulheres e homens, a partir das diferenças aparentes na anatomia sexual. Nestas críticas, o conceito de gênero se tornou útil para contestar o suposto “alicerce biologicamente determinado” que tem servido para justificar a relação hierárquica e historicamente instituída, entre mulheres e homens, que reserva às mulheres a condição de “ser reprodutivo” e a posição de “ser inferior ao homem” (SCOTT, 1995; BOURDIEU, 2003).

O conceito de gênero fortaleceu-se quando estudos acadêmicos explicitaram seu compromisso com uma nova história que incluísse a experiência das mulheres como mais um dos eixos organizadores das desigualdades de poder. De acordo com SCOTT (1995), o gênero é,

(...) um modo primeiro de significar as relações de poder (...); uma das referências pelas quais o poder político foi concebido, legitimado e criticado. Ele se refere à oposição homem/mulher e fundamenta ao mesmo tempo o seu sentido (...) a oposição binária e o processo social das relações de gênero tornam-se, ambos, partes do sentido do próprio poder. Colocar em questão ou mudar um aspecto ameaça o sistema por inteiro (SCOTT, 1995, p. 14-15).

A categoria social gênero remete não somente às disposições sociais sobre a divisão do trabalho de produção e de reprodução, biológica e social, bem como

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sobre a divisão dos espaços públicos e privados. Remete também à associação persistente da masculinidade com o poder, ou ainda ao fato de o masculino ser investido de mais valor em relação ao feminino. Essas questões, de acordo com Scott, nessa mesma obra, exigem que seja dada certa atenção aos,

(...) sistemas de significação, isto é, às maneiras como as sociedades representam o gênero, utilizam-no para articular regras de relações sociais ou para construir o sentido da experiência. Sem o sentido não há experiência; sem processo de significação não há sentido (SCOTT, 1995, p. 8).

BOURDIEU (2003), em seu livro A Dominação Masculina, analisa como os processos de socialização dão continuidade à produção de dois corpos, de mulher e de homem, e dois gêneros, o feminino e o masculino. O que o levou a essa análise foi, como ele próprio afirma, a lógica de sua pesquisa e o constante espanto frente ao seguinte:

(...) que a ordem estabelecida, com suas relações de dominação, seus direitos e suas imunidades, seus privilégios e suas injustiças, salvo em poucos acidentes históricos, perpetue- se apesar de tudo tão facilmente, e que condições de existência das mais intoleráveis possam permanentemente ser vistas como aceitáveis e até mesmo naturais (BOURDIEU, 2003, p. 7).

De acordo com BOURDIEU (2003), a definição social e diferencial dos corpos, dos órgãos sexuais e dos seus usos “legítimos”, é fruto de um longo trabalho coletivo, ideológico, de construção simbólica e prática, que produz um artefato social - o homem viril ou a mulher feminina – e que se reveste das aparências de uma lei da natureza (p. 33). Esse longo trabalho de socialização, difusa e contínua, produz o que Bourdieu denomina habitus, ou seja,

(...) um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de

ações – e torna possível a realização de tarefas infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas, que permitem resolver os problemas da mesma forma, e às correções incessantes dos resultados obtidos,

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dialeticamente, por esses resultados (BOURDIEU, 1994, p. 65, grifo do autor).

Na concepção bourdiana, esse sistema funciona como matriz das percepções, pensamentos e ações porque são partilhados por segmentos sociais e/ou por toda a sociedade9 criando condições para que a dominação masculina opere em seu pleno exercício:

(...) as próprias mulheres aplicam a toda a realidade e, particularmente, às relações de poder em que se vêm envolvidas, esquemas de pensamento que são produto da incorporação dessas relações de poder e que se expressam nas oposições fundantes da ordem simbólica (BOURDIEU, 2003, p. 45).

Para Bourdieu, a ordem simbólica se funda em oposições que derivam de princípios de visão e de divisão que organizam a representação do mundo em classes antagônicas; oposições que derivam também de princípios de visão e divisão sexualizantes que reduzem as coisas do mundo e as práticas à oposição entre o masculino e o feminino. Essa concepção é relevante para nossa pesquisa porque traz as oposições simbólicas na estrutura dos espaços da rua e da casa; na estrutura do tempo, mais curto para os homens e mais longo para as mulheres; no dito e no não-dito; nos sentimentos de paixão e de amor; na coragem e vergonha; na virilidade e fidelidade, para citar algumas oposições simbolicamente demarcadas.

Outra contribuição importante de Bourdieu para nosso estudo é que o habitus contempla ao mesmo tempo o princípio da continuidade/regularidade e o das transformações. O primeiro, constituído pelo “sistema de disposições do passado”, exterioriza-se por intermédio de práticas que exprimem a aquisição das estruturas (“práticas estruturadas”). O segundo refere-se à produção de uma resposta singular a alguma circunstância, cujos detalhes – até mesmo uma palavra – permitem perceber a ocorrência de uma transformação, deslocamento ou deslize.

9 Como afirma AUGÉ (1994a, p. 43)

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(...) por mais exata que seja a correspondência entre os processos do mundo material e os princípios de visão e divisão que lhes são aplicados, há sempre lugar para uma luta cognitiva sobre o sentido das coisas, principalmente das realidades sexuais (BOURDIEU, 2003, p. 22).

O conceito de habitus é útil ao nosso estudo, pois ajuda a compreender como a assimetria de gênero, com suas oposições simbólicas, se apresenta como mediação na produção de sentidos do lugar da recepção na comunicação e saúde.

Nossas leituras sobre gênero também nos aproximaram de análises que advertem para a necessidade de se evitar as posições teóricas “reducionistas” ao se trabalhar com a perspectiva de gênero (HEILBORN, 2003, p.198; 2006, p. 34) e de considerar que os corpos são postos em marcha por aparatos e metabolismos específicos da biologia da mesma forma que se projetam expressando processos de socialização que obedecem a prescrições de gênero e de classe social, histórica e culturalmente circunscritas.

Em relação ao gênero, BUTLER (2003) defende que ele não é um dado de realidade, mas a forma reificada da sedimentação de normas/leis reguladoras dessa ordem hegemônica que ao longo do tempo - e de práticas repetitivas no terreno da significação - teria o efeito de corpos e gêneros falsamente estabilizados que interessam à regulação heterossexual da sexualidade. A autora considera que somente a desestabilização do campo do corpo e do gênero denunciaria como os meios discursivos de regulação heterossexual engendram essas “fabricações manufaturadas” (BUTLER, 2003, p. 194, grifo da autora).

Se a verdade interna do gênero é uma fabricação, e se o gênero verdadeiro é uma fantasia instituída e inscrita na superfície dos corpos, então parece que os gêneros não podem ser nem verdadeiros nem falsos, mas somente produzidos como efeitos da “verdade” de um discurso (BUTLER, 2003, p. 195).

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