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A teoria de gêneros no contexto escolar

CAPÍTULO 2 – O GÊNERO NOTÍCIA DE JORNAL: COMPOSIÇÃO DO CORPUS E

2.2 A teoria de gêneros no contexto escolar

Se a literatura que trata do conceito de gêneros apresenta reflexões ora mais ora menos convergentes, considerando, é claro, o suporte teórico sobre o qual se sustentam, a transposição dos gêneros para a prática escolar parece ser o ponto de concordância daqueles que discutem o assunto. Ao modo de Rojo e Cordeiro (2004), afirmamos: se o modo de

pensar os gêneros é por vezes conflitante, o modo de fazer – ensino – tem se revelado um tanto promissor.

Schneuwly e Dolz (2004) afirmam que, no contexto escolar, o gênero, além de instrumento, torna-se objeto de ensino/aprendizagem, um megainstrumento, que atravessa e inaugura práticas de linguagem com fins de aprendizagem. Esses autores esclarecem que uma proposta de ensino embasada nos gêneros só se justifica se esses forem entendidos como “objeto e instrumento de trabalho para o desenvolvimento da linguagem” (SCHNEUWLY e DOLZ, 2004, p. 80), devendo tal ensino se orientar para os usos que deles são feitos em contextos específicos para atingir objetivos determinados.

Segundo os autores, o trabalho com os gêneros na escola tem revelado três abordagens: na primeira delas, tem-se uma inversão – o gênero deixa de ser entendido como instrumento de comunicação e passa a ser visto como “forma de expressão do pensamento” (Schneuwly e Dolz, 2004, p. 76). Desconectado da situação de comunicação, o gênero “perde” sua função sociocomunicativa, ou melhor, ela é apagada e esse se torna “uma pura forma lingüística, cujo domínio é o objetivo” (Schneuwly e Dolz, 2004, p. 76) (grifos do autor). Essa prática, conforme os autores, faz notar que a forma dos gêneros independe das práticas sociais nas quais eles funcionam.

A segunda abordagem de que falam os autores centra-se nos gêneros escolares, isto é, aqueles que resultam do funcionamento da instituição escola, na qual

a situação de comunicação é vista como geradora quase automática do gênero, que não é descrito, nem ensinado, mas aprendido pela prática de linguagem escolar, por meio dos parâmetros próprios à situação e das interações com os outros (SCHNEUWLY e DOLZ, 2004, p. 78).

Já na terceira abordagem, a situação de aprendizagem é concebida como coincidente com a situação de comunicação em que os gêneros são utilizados. Nesse caso, o objetivo de criar situações autênticas de comunicação obscurece as finalidades da própria escola, que, por sua vez, busca promover uma extensão dos gêneros das práticas sociais à escola. Os autores não pretendem condenar essa ou aquela abordagem, mas problematizam o modo pelo qual elas se orientam, uma vez que têm os gêneros como eixo do processo de aprendizagem.

A introdução dos gêneros nas salas de aula implica, segundo os autores, uma transformação desses instrumentos de comunicação, que, alçados à posição de objetos a aprender, não deixam de ser objetos para comunicar. Deixam entrever que não há como desconsiderar o lugar social em que o gênero foi produzido, bem como não é possível à escola

abdicar de suas funções: “trata-se de aprender a dominar o gênero, primeiramente, para melhor conhecê-lo ou apreciá-lo, para melhor saber compreendê-lo, para melhor produzi-lo na escola ou fora dela” (SCHNEUWLY e DOLZ, 2004, p. 80).

Acreditamos que, ao ser transposto das situações reais de uso para as salas de aula como objeto de ensino, o gênero, a notícia mais especificamente, NÃO perde sua identidade construída histórica e culturalmente para adquirir uma nova, “neutra”, de texto a ser ensinado, lido e produzido, um modelo a ser imitado. Reconhecemos que, nessa transposição, “há um desdobramento que se opera em que o gênero não é mais instrumento de comunicação somente mas é, ao mesmo tempo, objeto de ensino-aprendizagem” (SCHNEUWLY e DOLZ, 2004, p. 76) (grifos nossos). Nessa perspectiva, entendemos que propor um trabalho calcado nos preceitos teóricos dos referidos autores significa considerar essa duplicidade que perpassa o ambiente educacional, sob pena de se fazer dos gêneros textos naturalizados pela escola, ou, do contrário, textos não autênticos, mas autenticados.

Schneuwly, Dolz e Haller (2004) sugerem o ensino dos gêneros de comunicação pública formal, o que corresponde a dizer, segundo a teoria bakhtiniana, os gêneros secundários. Postulam ainda que os gêneros podem ser considerados “um ponto de referência concreto para os alunos” (SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J.; HALLER, S., 2004, p. 172), pois contribuem para torná-los eficientes nas práticas de produção e recepção de textos, podem ser facilmente integrados em projetos de classe e possibilitam um trabalho que para os alunos faz sentido.

Uma proposta de ensino de língua sustentada pela teoria de gêneros também é defendida por Dell’ Isola (2007), Lopes- Rossi (2006) e Bentes (2006).

Para Dell’Isola (2007), uma proposta de ensino centrada nos gêneros busca romper com práticas tradicionais engessadas – ensino com base em tipologias textuais –, já que considera a heterogeneidade dos textos que circulam na sociedade, bem como os propósitos aos quais eles se prestam. Essa autora reitera, insistentemente, que tal proposta deve objetivar a formação de leitores e produtores competentes de textos, isto é, deve, prioritariamente, possibilitar aos alunos o aprimoramento de sua capacidade de expressão em sua língua materna.

Dell’Isola (2007) enfatiza a relevância do investimento no trabalho com os gêneros textuais no contexto da sala de aula, haja vista que os considera como vias de acesso ao letramento, e, sob essa ótica, pondera que, diante da

urgência de se promover a formação de leitores e escritores capazes de compreender e interpretar as relações sociais; de se compreender identidades e formas de conhecimento veiculadas através de textos em variadas circunstâncias de interação; de se levar em conta a determinação sócio-histórica da interação escritor- texto-contexto-leitor; e de se desenvolver a capacidade de perceber a pluralidade de discursos e possibilidades de organização do universo (DELL’ISOLA, 2007, p. 11),

compete à escola promover situações de aprendizagem cujo foco seja o domínio dos gêneros textuais, de forma que os alunos aprendam a utilizá-los, quando deles, em circunstâncias determinadas, tiverem de lançar mão para atender a objetivos específicos.

A autora explicita que, embora a teoria bakhtiniana seja suporte das muitas discussões propostas sobre gêneros, é inegável que, se em certos enfoques predominam os propósitos comunicativos, em outros tantos a forma estrutural tende a prevalecer. Nesse sentido, adverte que há fortes indícios de que, nas aulas de Língua Portuguesa, os gêneros têm sido apresentados como modelos engessados, como língua em uso, porém presa por uma “camisa- de-força”. Dell’Isola (2007) assim se pronuncia: “a decisão de se trabalhar com os gêneros exige preparo e merece cuidados para não se cristalizar a idéia de que cada gênero tem uma forma fixa, imutável e circula em um único domínio discursivo” (DELL’ISOLA, 2007, p. 13). Esclarece que a diversidade de gêneros com a qual a escola pode e deve trabalhar irá refletir, certamente, ao invés de uma forma enrijecida, a relativa estabilidade que os caracteriza.

Um dos pontos positivos do trabalho com os gêneros em sala de aula pontuado pelos teóricos do Grupo de Genebra e destacado por Lopes-Rossi (2006) diz respeito à crescente autonomia dos alunos nos processos de leitura e produção de textos, o que resulta do domínio dos usos e do funcionamento da linguagem nas situações comunicativas. Essa autora enfatiza que o professor é responsável por “criar condições para que os alunos possam apropriar-se de características discursivas e lingüísticas de gêneros diversos” (LOPES-ROSSI, 2006, p. 74), deixando entrever que o tratamento dado aos gêneros na sala de aula é tão ou mais relevante que sua transposição para o contexto escolar.

Lopes-Rossi (2006) salienta que as atividades sugeridas para o trabalho com os gêneros discursivos devem permitir que o aluno perceba que a composição do gênero visa atender à sua função social, bem como aos seus propósitos. Postula que, na leitura de um determinado gênero, importam suas condições de produção e veiculação, haja vista que os gêneros não constituem produtos prontos, a-históricos, desconexos da cultura e da sociedade.

Nesse quadro de discussões, Bentes (2006) endossa o uso dos gêneros no ensino de Língua Portuguesa, afirmando que esse ensino não pode se restringir à análise das características composicionais e linguísticas dos gêneros, mas precisa trazer para o centro das

discussões as esferas comunicativas nas quais esses se originam e são compreendidos. Os gêneros, para essa autora, “por serem resultado de um trabalho coletivo e historicamente situado, não podem ser considerados como produtos acabados à disposição dos falantes” (BENTES, 2006, p. 104).

A defesa ao trabalho com os gêneros no ensino de língua materna é praticamente consensual na vasta literatura a eles dedicada, da qual são exemplo ainda os estudos de Pompílio et al. (2000) – expõem uma experiência de formação de professores cujo objetivo era promover uma reflexão sobre a proposta de ensino de língua postulada pelos PCNLP: o uso dos gêneros como objeto de ensino das aulas de Língua Portuguesa ; Magalhães-Almeida (2000) – relata uma transposição didática sobre gêneros do discurso realizada com alunos do Ensino Superior; Rosenblat (2000) – defende um ensino centrado nos gêneros como objeto de estudo, desde que seja proposto um ensino sistemático e articulado sobre esse objeto; Rodrigues (2000) e Bräkling (2000) – focalizam o ensino da produção escrita e defendem o trabalho com os gêneros da esfera jornalística, mas especificamente com o artigo de opinião; e Barbosa (2000) – expõe um relato de experiência com formação de professores, em que foram desenvolvidas sequências didáticas para o estudo das condições de produção dos gêneros, seu desenvolvimento sócio-histórico, etc.

A afirmação feita por Barbosa (2000) sintetiza e traduz a relevância do trabalho com os gêneros em sala de aula na perspectiva das autoras acima mencionadas:

os gêneros do discurso permitem capturar, para além de aspectos estruturais presentes em um texto, também aspectos sócio-históricos e culturais, cuja consciência é fundamental para favorecer os processos de compreensão e produção de textos (BARBOSA, 2000, p. 158).

Nesta pesquisa, damos ressonância aos postulados dos teóricos assinalados por entendermos que fazer uso dos gêneros, no contexto escolar, significa avançar na tarefa de ensinar língua materna numa época em que as teorias prescritivas foram questionadas pelos imperativos sociais que exigem cada vez mais a participação dos sujeitos nas situações de comunicação, sejam elas mais ou menos formais. Tais postulados orientaram a definição dos procedimentos metodológicos necessários à efetivação deste trabalho como também subsidiaram a análise realizada.