2 A CONSTRUÇÃO DO SUPORTE TEÓRICO: PRODUÇÃO, CORREÇÃO E
2.2 Gêneros do discurso
2.2.2 Gêneros do discurso e ensino de produção textual
Rojo (1996) resume a trajetória da prática docente da produção textual. A autora
conta que na década de 80, a noção de alfabetização foi sendo substituída pelas noções de
letramento e de (sócio) construção da escrita. Mesmo havendo uma alteração nas concepções,
o papel do outro e da interação com o outro ainda ficou em segundo plano, já que o foco
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histórica, questões de interesse da Lingüística Aplicada: leitura, produção de textos,
construções de conceitos. Essas questões passam a demandar uma revisão acurada dos
enfoques sobre a linguagem e a cognição em relação às teorias ditas “de processamento”.
Então, a investigação da produção de texto vai passar pela relação com outros campos do
desenvolvimento da língua escrita. A partir de um quadro de reformulações, começam-se a
adotar as perspectivas enunciativas bakhtinianas ligadas aos construtos psicológicos
vygotskianos, as quais se baseiam em produtos sociais, postos em circulação social, nas
situações de interações concretas. Por conseqüência Rojo (1996) diz que se mudam os
métodos de pesquisa, havendo novos conceitos interpretativos: plano enunciativo, dialogismo,
gênero, vozes, heterogeneidade, etc.
Em virtude desse breve retrato temporal, percebe-se que hoje há um novo olhar
sobre o ensino de produção de texto, como é, por exemplo, o de Antunes (2002), que diz não
ser difícil perceber que o ensino seria favorecido se, de fato, houvesse o desenvolvimento de
uma competência discursiva e textual. Além disso, considera que os gêneros seriam o ponto
orientador desse ensino. Uma das conseqüências benéficas dessa orientação seria “o ensino da
língua com o objetivo explícito e determinado de ampliar-se a competência dos sujeitos para
produzirem e compreenderem textos (orais ou escritos) adequados e relevantes” (ANTUNES,
2002, p.71). É através dessa concepção que a produção de textos escritos está tomando corpo
nos currículos e, por conseqüência, nos planos de aula.
Refletindo sobre as renovações teóricas que se têm dado principalmente ao
longo das últimas duas décadas, é interessante notar que a palavra “redação” foi sendo
substituída pela expressão “produção de textos”. Geraldi (1997) sugere essa substituição
porque entende que o texto é o lugar das correlações entre diferentes saberes, do diálogo entre
aluno e professor na interação de sala de aula, da busca de sentidos socialmente constituídos,
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– mais solitária – cederia espaço à interação, à produção de sentidos, isto é, daria espaço à
produção de textos. Já Ruiz (1998), apesar de concordar com Geraldi (1997), prefere não
fazer tal distinção em virtude de as “redações” ainda serem textos produzidos na escola.
A autora cita Athayde Júnior (1995) para concordar com a idéia de que a
redação escolar também é um gênero, já que não passa de um exercício artificial de um
sujeito-redator que se apropria dos diferentes gêneros em uso na sociedade. Dolz e
Scheneuwly (1999) tratam deste ponto, isto é, das práticas de linguagem que se tornam
objetos de ensino, e concluem que o gênero não precisa ser somente visto como um
instrumento de comunicação, mas, ao mesmo tempo, como um objeto de
ensino/aprendizagem. Quando ocorre esse desdobramento, deve-se evitar que o estudo da
língua também a partir dos gêneros chegue à pura abstração. Esta conseqüência inoportuna
pode vir a ocorrer da seguinte forma: “é produzida uma inversão em que a comunicação
desaparece quase totalmente em prol da objetivação e o gênero se torna uma pura forma
lingüística cujo objetivo é seu domínio”. (DOLZ; SCHNEUWLY, 1999, p.8). Como não se
procura um trabalho pedagógico de domínio dos gêneros que passe por essa visão
excessivamente objetificadora, supõe-se que a colocação dos autores serve de alerta para que
as aulas de produção de texto não tratem o gênero como apenas um objeto de análise a ser
dominado.
Em síntese, para este trabalho, adotar-se-á a noção de “produção de textos” em
virtude da concepção dialógica que se intentará criar para a correção e avaliação, bem como
devido a sentir-se que prevalece o ideal interacionista ao controle institucional do ambiente
escolar. De qualquer maneira, estabelece-se uma concordância com certos argumentos
expostos no parágrafo anterior, como o de que se cria uma artificialidade durante o ensino de
produção textual, porque a objetificação toma, de certa forma, o espaço da interação. Esta tem
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enfoque social, em objetos de ensino para produção textual. Todavia, percebeu-se que,
desenvolvidas as atividades de produção de texto a partir dos gêneros do discurso, o próprio
objeto de ensino tornou-se um dos propiciadores da visão interacionista devido ao processo de
condução dessa prática.
Outro problema na relação entre gêneros do discurso e produção de textos na
escola é registrado por Santos, Sandoval (2003). O autor preocupa-se com tomar-se um
conceito – no caso o de gêneros do discurso – que tem uma história de sentidos a ele
relacionados, e transpô-lo para o conjunto de práticas escolares a fim de incrementar o ensino
da escrita. O autor, então, expõe uma reflexão, a de que
o ensino da escrita vai além do ensino de tipologias textuais em geral tomadas como estanques, uma vez que passa pela atenção ao processo de produção escrita e aos modos como ele se constitui – isto é, aos gêneros discursivos, por meio dos quais são construídos os sentidos da prática escolar de produzir textos. (SANTOS, Sandoval, 2003, p.551).
Pode-se concluir que o ensino da produção de textos na escola não consegue
escapar da ação discursiva quando o objetivo é dedicar-se aos modos de produção de sentido.
Ainda no que toca ao ensino de produção de textos, Bonini (2001a) considera
que há dois princípios fundamentais e complementares a atuar sobre os gêneros, a
dialogicidade e a convencionalidade. Apesar de o autor definir-se por uma abordagem ligada
aos gêneros textuais, e não discursivos, reconhece-se que suas contribuições para a área de
ensino devem ser sempre apreciadas, tendo-se o cuidado de não contradizer nem os propósitos
aqui expostos nem os pressupostos teórico-práticos que o autor muito bem define. Bonini
(2001a), então, reforça que a criatividade de que trata tem a ver com a seleção, a
transformação e a criação de recursos genéricos “a partir de outros que estão na linguagem
dispostos heterogeneamente em diversos graus de estabilidade convencional”. (BONINI,
2001a, p.20).
O autor resume seus estudos e conclui que ensinar gênero compreende levar o
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a) reconhecer a relação entre gênero textual, identidade de grupo e social e ação social;
b) entender as regularidades genéricas como elementos para a percepção do fenômeno da interação humana e para a criatividade, seja reinvestindo este conhecimento para lidar com as novas situações de interação, seja subvertendo estas regularidades em função de um embate político-ideológico ou em função de obter prestígio em situações em que a criatividade lingüística seja uma condição essencial. (BONINI, 2001a, p.20).
Daí se absorveu o tratamento que se deu aos gêneros em sala de aula nesta
pesquisa. Os objetivos foram: estimular a percepção da dialogicidade, própria do caráter
enunciativo da linguagem, e entender a convencionalidade, resultante das condições de
produção e das esferas comunicativas nas quais os gêneros surgem e dentro das quais os
falantes guiam seus propósitos discursivos.
Quanto à escolha de gêneros a fazerem parte dos currículos escolares e para dar
coerência ao trabalho em sala, Bonini (2001a) propõe que sejam estabelecidos critérios para a
seleção dos gêneros e das atividades específicas para seu ensino, tais como atividades que
promovam a comparação entre os recursos de linguagem e que ampliem o conjunto de
experiências com ela. Sugere que os gêneros possam estar relacionados às vivências e gostos
dos alunos, de acordo com o grau de maturidade. Os gêneros selecionados, segundo ele,
devem propiciar uma ação social efetiva e apresentar crescente grau de complexidade. Esses
cuidados devem corresponder às habilidades que o aluno desenvolverá durante a apropriação
do gênero estudado. Marcuschi (2001) parece concordar com esse posicionamento. Ele se
indaga se há gêneros ideais para o ensino da língua. Considera que não, mas já adianta que “se
possam identificar gêneros com dificuldades progressivas, do nível menos formal ao mais
formal, do mais privado ao mais público” (MARCUSCHI, 2001, p.36).
Rodrigues (1999) também se manifesta a esse respeito. Com uma retomada
teórica a partir de Bakhtin, a autora afirma ser fundamental a compreensão e o domínio das
características específicas dos diferentes gêneros para um bom desempenho discursivo. Para
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sobre os gêneros, as quais podem servir de base para a análise deles enquanto objeto de
ensino; são elas: o tema e o estilo genérico. A primeira está relacionada à possibilidade de
“esgotamento” do sentido conforme as diversas esferas de comunicação discursiva. A
segunda está vinculada com a unidade temática, com a unidade composicional do gênero e
com os tipos de relações entre os interlocutores. Rodrigues considera que “o bom desempenho
na produção textual passa pela percepção e o domínio das estratégias, regularidades de
funcionamento estilístico-gramatical dos gêneros das diferentes esferas.”(RODRIGUES,
1999, p.97). Conclui-se, pois, que para o aluno apropriar-se do gênero estudado, ele precisa
envolver-se com essas duas peculiaridades resgatadas de Rodrigues (1999), ou os textos dos
alunos, conforme critica a autora, serão produções carentes de feições genéricas, de autoria.
Para resumir o que a autora sugere para a presença dos gêneros do discurso como elemento de
estudo da língua, traz-se a seguinte referência, a qual esclarece por que se torna importante, na
formação de um currículo, tomar como critério as diferentes esferas sociais.
[...] a possibilidade de trabalhar com diferentes aspectos notacionais e discursivos da produção textual, a reflexão sobre a relação linguagem x sociedade, sobre o funcionamento da língua, entre outros aspectos. [...] trabalha-se com um eixo organizador que, além de contemplar a variedade de gêneros, vincula-os com as diferentes práticas sócio-discursivas, estando em consonância com os pressupostos metodológicos de Bakhtin a respeito do estudo da língua [...]. (RODRIGUES, 1999, p.99).
Essas foram, portanto, orientações teóricas a serem analisadas. No ato do
planejamento das atividades de produção de texto a partir dos gêneros – que em outro capítulo
será tratado –, a percepção da dialogicidade e o entendimento da convencionalidade foram
propósitos vistos como pré-requisito para o envolvimento do aluno com as situações sociais
de interação e também para a manipulação da materialidade lingüística.
Ainda no que tange à seleção dos gêneros a servirem de estudo, Bonini (2001a)
alerta que se analisem os aspectos teóricos a serem selecionados, justificando-se as opções. É
o que se fará ao longo da construção deste referencial teórico: justificar as opções teóricas que
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Pelo recorte teórico já apresentado, destacaram-se dois objetivos para a produção
de texto escrito em sala de aula: (a) o aluno deve sentir e compreender que ele é um autor cujo
texto será destinado a pelo menos um interlocutor; (b) o professor deve dedicar tempo, através
de suas colaborações, para a ampliação da competência discursiva de seu aluno,
apresentando-lhe estratégias e procedimentos que tornem seus textos mais adequados aos
gêneros a que foi exposto. Oliveira (2003b) salienta, em coerência com o que foi resumido,
que se deve considerar a produção textual escrita uma atividade discursiva reveladora de uma
prática social e, portanto, portadora de valores; é esta a pedagogia que visa à formação do
cidadão crítico, consciente e participante. Dessa maneira, foi pela atenção ao “processo de
produção escrita” que se pôde orientar uma possibilidade de correção e avaliação de textos
sob a óptica bakhtiniana, considerando a interação verbal, o dialogismo, os gêneros do
discurso, a esfera escolar e a interação professor-aluno em sala de aula.