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CAPÍTULO 1: PERCURSO HISTÓRICO DOS ESTUDOS SOBRE OS

1. Gêneros na perspectiva sócio-histórica

1.2 Gêneros na poética

O estudo dos gêneros voltados para a produção literária, remonta, também, aos grandes filósofos, sendo tratada mais especificamente no livro III da República, de Platão, que se refere ao gênero como uma divisão tripartite da literatura:

Em poesia e em prosa, há uma espécie que é toda de imitação, como tu dizes que é a tragédia; outra de narração pelo próprio poeta – é nos ditirambos que pode encontrar-se de preferência; e outra ainda constituída por ambas, que se usa na composição da epopéia e de muitos outros gêneros. (PLATÃO, livro III, p. 85, 394-e, 2000)

Desse modo, o citado filósofo grego estabelece uma fundamentação e uma classificação dos gêneros que remeterá à divisão básica em épica, lírica e dramática, posteriormente, concebida como a divisão clássica da literatura. Esse evento pode ser tomado como um dos marcos fundamentais da genealogia da teoria dos gêneros literários.

Contudo, autores como Silva (1999), Moisés (1987) e Coutinho (1976), dentre outros, apesar de reconhecerem originar-se em Platão a epistemes genealógica da teoria dos gêneros, atribuem a Aristóteles o mérito de ser o introdutor dessa teoria. Foi a estética aristotélica a dispensar especial atenção às distinções referentes à arte, em especial à arte poética, e a formular um conceito de gênero literário em consonância com a filosofia, apoiando-se em fatos fornecidos pela literatura grega, à luz da observação, resultando o seu caráter empírico-racionalista.

Em sua obra Arte poética, escrita entre 335 e 323 a.C., Aristóteles aprofunda-se na caracterização dos gêneros narrativo e dramático. O primeiro caracterizado pela atuação do próprio narrador, identificado pelo discurso em primeira pessoa, e o segundo, pela atuação efetiva das personagens. Há de se considerar nesse preâmbulo o foco dos gêneros eminentemente voltados para a Arte Poética, sobre a qual Aristóteles se debruça, concebendo a poesia como imitação da realidade.

Pautando-nos em Silva (1993), compreendemos a mimese aristotélica como imitação da vida interior dos homens, suas paixões, seu caráter, seu comportamento e percebemos que, apesar de a imitação ser o elemento comum a todos os textos poéticos, ela é o princípio distintivo desses textos, visto consolidar-se a partir de diferentes meios, objetos e modos empregados.

Os meios se configuram na poesia ditirâmbica4 e nos nomos5, nos quais o poeta emprega simultaneamente o ritmo, o canto e o verso, enquanto na comédia e na tragédia

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Canto de louvor ao deus grego Dioniso (o Baco dos romanos); mais tarde foi acrescido de dança e música de flauta; no século VII a.C., com a introdução do coro de 50 elementos e um solista (corifeu), que com ele dialogava, gerou os primeiros elementos da tragédia (e do drama em geral); a partir dos V a.C., focalizava não só Dioniso, mas também outros deuses e mitos e, por fim, temas profanos (Dic. Eletrônico Houaiss, 2001).

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Poema cantado pelos antigos gregos em honra a Apolo, deus da poesia (Dic. Eletrônico Houaiss, 2001). Canto monódico que podia ter acompanhamento de cítara ou de flauta.

esses elementos são empregados parcialmente; o canto, por exemplo, é empregado apenas nas partes líricas. A variedade dos objetos diz respeito às ações dos homens, no que se refere ao comportamento dos mesmos do ponto de vista moral, sendo classificado numa escala de valor em superiores, inferiores ou semelhantes à média humana.

Visando a um melhor entendimento, Silva (1993, p. 341) revela que os poemas épicos de Homero, as obras de Cleofonte e as paródias de Hegemão de Taso representam respectivamente os melhores, os semelhantes e os piores homens. Explica, ainda, o autor citado, que a tragédia confere mais qualidades aos homens do que eles possuem na realidade, contudo a epopéia assemelha-se à tragédia por ser uma imitação de homens superiores; por outro lado, a comédia imita-os piores do que eles são.

Os modos pelos quais se processam a imitação podem ser ainda mais variados do que os meios e os objetos, haja vista o poeta poder utilizar distintos modos de mimese para os mesmos objetos, assim como empregar meios idênticos. Isso pode ser observado no gênero narrativo e no gênero dramático. Nesse último, todos os imitados são representados pelo poeta como operantes e atuantes. Em suma, os gêneros, na visão aristotélica, fundamentam-se na forma, no conteúdo e na hierarquia dos textos. Vale salientar que a divisão triádica encontrada no livro III de A República não se apresenta na poética aristotélica, contudo a lírica é reconhecida como elemento constitutivo da poesia narrativa e da poesia dramática.

Indiscutivelmente, Aristóteles assentou a doutrina dos gêneros literários e, posteriormente, outros autores dedicaram-se ao tema, reportando-se à teoria aristotélica para alicerçar suas teses. Nesse contexto, merece destaque a obra Epístola ad Pisones, ou Ars Poetica, de Horácio que, recorrendo à tradição da poética aristotélica e incluindo o gênero lírico, retoma, também, as idéias de Platão. Segundo Silva (1993), A Epístola de Horácio desempenhou um papel de destaque na evolução e classificação dos gêneros, exercendo influência na poética e na retórica dos séculos XVI, XVII e XVIII. Corroborando, Coutinho (1976) afirma que os gêneros, na perspectiva horaciana, eram concebidos como entidades fixas e fechadas, subordinadas, incondicionalmente, às regras arroladas nos tratados de artes poéticas, que tiveram larga difusão e influência nos três primeiros séculos modernos em toda a literatura ocidental.

Sem dúvida, a teoria dos gêneros literários fundamenta-se na poética de Aristóteles, mas, longe de se chegar a um consenso, atravessa todo o percurso histórico- literário como objeto de discussão fundamentada em seus prolegômenos. Daí as escolas ou os movimentos literários que vão do Renascimento ao Neoclassicismo a conceberem como

um dos fatores mais relevantes da metalinguagem do sistema literário.

A partir do século XVIII, a doutrina neoclássica dos gêneros e das regras imutáveis sofreu severas críticas pela dificuldade de se classificar várias obras antigas, medievais e modernas, com base no esquema proposto pela teoria dos gêneros. A oposição, iniciada há algum tempo por Bruno, Du Boss, Voltaire, Diderot, Metastasio,Vico, dentre outros, culminou com o Romantismo, liderado por Victor Hugo (1827).

Segundo Coutinho (1979), aliados às idéias oposicionistas em prol da evolução da ciência estética moderna, encontravam-se Frederico Schlegel e Francisco De Sanctis, além do crítico francês Brunetière, que tentou uma reabilitação do conceito de gêneros, acrescentando-lhe a filosofia evolucionista. Coutinho declara que

a doutrina romântica a respeito dos gêneros estabelece à base do conceito de literatura como produto exclusivo da individualidade criadora e da inspiração subjetiva, a tese da individualidade da obra literária como organismo autônomo, criadora de suas próprias leis e razão de ser, de sua forma específica, uma para cada obra (1979, p. 19).

A partir desse posicionamento, percebemos que a estética romântica contribuiu para que se ampliasse o conceito de gênero, pois gêneros repudiados pela estética neoclássica passaram a ser reconhecidos como o drama, a tragicomédia, o romance, bem como outros gêneros mistos; passou-se a falar de ‘arte’, e de unidade da arte.

Nesse contexto, enquanto Victor Hugo buscava mostrar as impropriedades da doutrina e classificação dos gêneros, Brunetière procurava, à luz da teoria evolucionista, demonstrar que os gêneros tinham vida própria e, por isso, estavam sujeitos às leis da evolução. Essa postura desencadeou a reação de Benedetto Croce que em sua obra Estética (1902) negava de modo veemente o conceito de gênero, defendendo o seu completo abandono. Posteriormente, esse crítico literário reconsiderou seu posicionamento e reconheceu o “caráter instrumental, no âmbito da crítica e história literária, na classificação de várias literaturas, bem como em história social e moral” (COUTINHO, 1979, p. 20).

Toda essa reação contrária aos gêneros literários, desencadeada no século XVIII, atingiu seu auge com as teorias crocianas, completando a reação oposicionista aos gêneros literários, que se processara com mais veemência no século XIX. Essa repulsa, porém, longe de anular o conceito formulado, culminou, na primeira metade do século XX, com o III Congresso Internacional de História Literária, voltado inteiramente ao problema dos gêneros.

Da polêmica criada até então, resultou a concepção de que os gêneros literários são ilimitados; estão sujeitos a transformações; podem alguns desaparecer e novos surgir; podem se configurar numa mesma obra; alguns podem atender mais a exigências estilísticas da época do que outros; às vezes, tornam-se de difícil classificação numa obra; seus arquétipos são seguidos parcialmente por alguns escritores; alguns ressurgem ou renascem ao contato com diferente manifestações literárias.

Do ponto de vista epistemológico, torna-se indiscutível que a mais antiga concepção de gênero – voltada para a Arte Literária – advém da antiguidade clássica e perdura até a atualidade, obviamente, sob nova perspectiva. Sendo assim, Coutinho (1976, p. 23) ratifica ao declarar que “para a poética atual, a literatura é uma arte, a arte da palavra e, como tal, somente lhe pertence o que for produto da imaginação criadora”.

Partindo dessa compreensão, o autor citado declara que produções jornalísticas, históricas, filosóficas, bem como as conversações, dentre outras originadas em diferentes instâncias, extrapolam a abrangência dos gêneros literários, pois, em primeiro plano, mobilizam mais a inteligência, o raciocínio lógico-formal, a razão especulativa, do que a imaginação.

Convém pontuar que os gêneros da Retórica eram definidos em função do auditório a que o orador se dirigia, enquanto os gêneros da Poética eram caracterizados em função do discurso literário de uma obra. Evidentemente, ambas as formas de enunciação ignoraram as práticas discursivas sociais, que impulsionam as atividades humanas e são responsáveis pelo dinamismo da língua. Essas práticas discursivas passam a ser reconhecidas posteriormente, em conseqüência da nova concepção de língua, advinda dos postulados bakhtinianos, que concebem a língua como uma ação social, manifestada por intermédio dos gêneros do discurso.

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