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Gêneros orais e implicações pedagógicas

No documento Download/Open (páginas 50-56)

Retomando Paviani (2011, p. 64) e o ISD, adotamos a concepção de gêneros “como formas comunicativas. Esses discursos, também chamados de “sequências”, são formas linguísticas que compõem o texto e traduzem o efeito de sentido”. Tomando como referência a obra de Bakhtin (1953/1979), Schneuwly (2004, p. 23), resume as discussões feitas por aquele teórico da seguinte forma:

(...) cada esfera de troca social elabora tipos relativamente estáveis de enunciados: os gêneros; três elementos os caracterizam: conteúdo temático – estilo – construção composicional; a escolha de um gênero se determina pela esfera, as necessidades da temática, o conjunto dos participantes e a vontade enunciativa ou intenção do locutor.

Tomado como referência, essa posição generalizou-se no domínio da retórica e da literatura e, posteriormente, nos estudos de linguística textual e linguística aplicada ao ensino

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Comprovado através de levantamento de dados efetivada durante fase diagnóstica desta pesquisa. Mais detalhes encontram-se na seção denominada de análise de dados da fase diagnostica.

da Língua materna. Schneuwly (2004, p. 23), segue então, caracterizando o gênero, com base no posicionamento citado acima:

Mesmo sendo “mutáveis, flexíveis”, os gêneros têm uma certa estabilidade: eles definem o que é dizível (e, inversamente: o que deve ser dito define a escolha de um gênero); eles têm uma composição: tipo de estruturação e acabamento e tipo de relação com os outros participantes da troca verbal. (...) eles têm uma certa estrutura definida por sua função; eles são caracterizados por aquilo a que chamamos, (...), um plano comunicacional. Essas considerações são referendadas por teóricos brasileiros (Marcuschi, Rojo, Bentes, Travaglia, entre outros) e também se fazem presentes nas orientações teórico- metodológicas sobre o ensino de língua materna, a exemplo dos PCNs de língua portuguesa. Há muita literatura disponível a respeito da classificação e da diferenciação entre gênero e tipos de textos. Trata-se de uma lista longa, cujos limites são, frequentemente, postos em evidência por numerosos autores, segundo Schneuwly (2004). Nesse estudo interessa-nos a divisão entre os gêneros orais e escritos, cujos limites também não são estanques conforme aponta Marcuschi (2007). Esse teórico sugere, então, que ambas as modalidades sejam consideradas: “(...) dentro de um quadro de inter-relações, sobreposições, gradações e mesclas” (...) e que assim concebidas “as relações entre fala e escrita recebem um tratamento mais adequado, permitindo aos usuários da língua maior conforto em suas atividades discursivas”. (p. 9). Considerando-as nessa perspectiva e para facilitar nossa reflexão a respeito do ensino de gêneros orais no contexto escolar, vamos classificar como gêneros orais ensináveis, o oral formal, e não aqueles ocorrentes na vida privada cotidiana. De um modo geral, fazem parte dessa classificação os seguintes gêneros: conferência, homilia, entrevista profissional, seminário, relatório de experiência, debate, entre outros. Também podem ser considerados como fazendo parte da classificação gêneros orais formais, aqueles que:

(...) têm uma versão escrita, mas que têm uma realização prioritariamente oral, usando a voz como suporte. Estariam neste caso, entre outros gêneros, os seguintes: representação de peças teatrais, telenovelas e filmes que têm um roteiro ou script; as notícias faladas em telejornais e no rádio que geralmente estão previamente redigidas; recontos etc. (TRAVAGLIA, 2013, p. 4).

Como se pode perceber, a relação entre os gêneros orais e escritos não pode ser considerada como dicotômica, pois situam-se numa relação de complementaridade, conforme aponta Marcuschi (2007).

Uma outra divisão que é interessante aqui é a que foi feita por Bakhtin (2011, p. 263) entre os gêneros discursivos primários e secundários. Para esse teórico, os gêneros discursivos primários são os formados “nas condições da comunicação discursiva imediata” e

estão relacionadas à interação verbal cotidiana, enquanto “os gêneros discursivos secundários (...) surgem nas condições de um convívio cultural mais complexo e relativamente muito desenvolvido e organizado”. Com base nessa classificação, ao precisarmos escolher que gêneros devem ser priorizados e ensinados, concordamos com a posição de Dolz, Schneuwly e Haller (2004, p. 146) quando afirmam que “(...) em vez de abordarmos os gêneros da vida privada cotidiana, [os gêneros discursivos primários], é preciso que nos concentremos no ensino dos gêneros da comunicação pública formal”, a exemplo do debate regrado público, seminário que, segundo Bakhtin (2011), situam-se na esfera dos gêneros discursivos secundários.

No espaço escolar e no âmbito desse trabalho, essa distinção é importante para a organização do percurso de ampliação do desenvolvimento da linguagem oral do aluno, passando dos gêneros mais privados, utilizados no cotidiano (diálogos, relato familiar, conversa, discussão... normalmente orais) para esferas mais formais de utilização da língua (SCHNEUWLY, 2004; GOULART, 2005).

Embora haja toda uma base teórica consolidada e estratégias metodológicas de ensino da língua materna bem fundamentada sobre os gêneros orais e escritos e a importância de atribuir igual espaço pedagógico de reflexão sobre eles, a escola tem dado ênfase praticamente exclusiva ao ensino da linguagem escrita em detrimento da linguagem oral, idealizando a “escrita como forma perfeita da língua e logo, da expressão da realidade e do pensamento” (SCHNEUWLY, 2004, p. 112), considerando a linguagem oral como cotidiana e, consequentemente, sem “cidadania no espaço escolar” (p. 113). Essa conceituação da linguagem oral, embasando a primazia do ensino da escrita em relação ao ensino dos gêneros orais é também constatada nos livros didáticos, cujas orientações encontradas, geralmente, são ordens como “converse com seu colega”, “exponha sua opinião” e “discuta em grupo”, sem qualquer sistematização ou justificativa sobre essas ações comunicativas.

Além disso, como ressaltam Assunção, Mendonça e Delphino (2013, p. 176)

(...) no ensino, só recentemente a competência oral começou a ser aceita ou compreendida como objeto de abordagem escolar. E quando o é, costuma não passar de ponte para o aprendizado da escrita, muito mais respeitada que a expressão oral, em virtude de valores tradicionais.

Desta forma, podemos aferir que a oralidade está presente em sala de aula, nos comandos existentes no livro didático, nas conversas entre os alunos, entre alunos e professores e entre os demais atores da comunidade escolar, como veículo para o repasse de instruções, explicações de como realizar as atividades propostas, correção de atividades, sem

muito monitoramento ou planejamento. Segundo pesquisa realizada por De Pietro e Wirther (1996, apud DOLZ; SCHNEUWLY e HALLER, 2004), ela funciona, nesse contexto, como meio de aprendizagem da escrita, para análise do escrito, também com parâmetros na escrita e para a oralização do texto escrito. Isso demonstra, segundo os autores citados acima, uma incompreensão em relação ao oral como objeto de estudo escolar.

Em suas considerações sobre o estudo dos gêneros orais, Goulart (2005, p. 65) defende que o oral que se pretende ensinar é o da “tomada da palavra pelo sujeito, com o objetivo de ensinar-lhe a se comunicar, trocar opiniões, apresentar suas ideias, defender seus pontos de vista, ter acesso às informações ou protestar”. Esse posicionamento da autora também ratifica a nossa escolha pelo ensino de um dos gêneros orais formais, o do debate regrado público, pois buscamos habilitar os alunos da escola referida, anteriormente, para o exercício da cidadania, do protagonismo perante as situações sócio-discursivas de que já fazem parte cotidianamente, além de intervir e pôr em prática o que sugerem os PCNs/LP para o ensino da língua materna, conforme colocações que faremos a seguir.

Os PCNs/LP (BRASIL, 2001, p. 25) reconhecem a importância do estudo dos gêneros orais na escola, como meios de habilitar os alunos para os contextos sociais em que o uso deles poderá determinar sua inclusão ou exclusão social, fora dos muros escolares, afinal:

(...) nas inúmeras situações sociais do exercício da cidadania que se colocam fora dos muros da escola - a busca de serviços, as tarefas profissionais, os encontros institucionalizados, a defesa de seus direitos e opiniões - os alunos serão avaliados (em outros termos, aceitos ou discriminados) à medida que forem capazes de responder a diferentes exigências de fala e de adequação às características próprias de diferentes gêneros do oral.

Pode-se perceber, então, que o ensino dos gêneros orais fornecerá ao aluno subsídios para que ele tenha consciência da necessidade de adequar seu discurso às diferentes instancias públicas e formais necessárias à formação do aluno/cidadão. Outros espaços podem favorecer essa formação interacional, porém é a escola o espaço que deve assegurar de forma mais sistemática essa habilidade (GOULART, 2005).

Dolz, Schneuwly e Haller (2004, p. 150) ressaltam que, quando transpomos um gênero oral público para a escola, como o debate regrado, por exemplo, que habitualmente ocorre em rádio, televisão e espaços da política, esse passa a ser “um outro contexto comunicativo, somente ficcionalmente ele continua o mesmo, por assim dizer, sendo a escola, de certo ponto de vista, um lugar onde se finge, o que é, aliás, uma eficiente maneira de aprender”. Essa transposição/vivência dos gêneros escritos, como preparação do letramento escolar para o indivíduo atuar além dos muros escolares, já é prática comum entre os professores e sua

ampliação para os gêneros orais pode representar um salto qualitativo em relação à funcionalidade do ensino de língua materna, nos espaços escolares e além desses.

Os gêneros orais têm características e particularidades que são próprias da oralidade como, por exemplo, a prosódia, posturas, gestos corporais, local de realização, interlocutores. São classificados como meios não linguísticos da comunicação oral, por Dolz, Schneuwly e Haller (2004, p. 134). Eles caracterizam esses meios da seguinte forma:

Quadros 1 - Meios não linguísticos da comunicação oral

MEIOS PARA- LINGUÍSTICOS MEIOS CINÉSICOS POSIÇÃO DOS LOCUTORES ASPECTO EXTERIOR DISPOSIÇÃO DOS LUGARES Qualidade da voz: melodia, elocução e pausas, respiração, risos suspiros,... Atitudes corporais: movimentos, gestos, troca de olhares, mímicas faciais, ... Ocupação de lugares/espaço pessoal: distancias, contato físico Roupas Disfarces Penteado Óculos Limpeza Lugares/ Disposição: Iluminação; Disposição das Cadeiras: Ordem, Ventilação, Decoração, ...

Fonte: (DOLZ, SCHNEUWLY, HALLER, 2004, p. 134)

Esses fatores complementam, interferem e/ou enriquecem a prática da oralidade e apresentam níveis mais ou menos formais que os diferenciam, como é possível perceber, de uma discussão ou de um debate regrado público, por exemplo. Para esses autores “os gêneros formais públicos constituem as formas de linguagem que apresentam restrições impostas do exterior e implicam, paradoxalmente, um controle mais consciente e voluntário do próprio comportamento para dominá-las” e concluem que “essas formas do oral, (...) dificilmente são apreendidas sem uma intervenção didática” (DOLZ; SCHNEUWLY; HALLER, 2004, p. 147).

Para que o ensino dos gêneros formais orais se efetive de forma satisfatória, nas escolas, e atenda às diversas situações comunicativas, Schneuwly (2004, p. 115), aponta alguns princípios norteadores:

- levar os alunos a conhecer e dominar sua língua, nas situações as mais diversas, inclusive em situações escolares; para chegar a cumprir esse objetivo;

- desenvolver, nos alunos, uma relação consciente e voluntaria com seu próprio conhecimento linguístico, fornecendo-lhes instrumentos eficazes para melhorar suas capacidades do escrever e do falar; e

- construir com os alunos uma representação das atividades de escrita e de fala, em situações complexas, como produto de um trabalho, de uma lenta elaboração.

Como existe uma quantidade significativa de gêneros orais formais, a escola deve priorizar aqueles gêneros que contribuam para que os alunos consigam “resolver com relativa desenvoltura os problemas existentes na esfera social e burocrática da vida pública” (GOULART, 2005, p. 59). Como os alunos já dispõem de conhecimento sobre as formas de expressão orais cotidianas, ou gêneros primários, conforme Bakhtin (2011) adquiridos através da convivência cotidiana, acreditamos que a escola poderia eleger os gêneros orais públicos como seminários, entrevistas, exposição oral e o debate, classificados como gêneros secundários, de acordo com Bakhtin (2011) como objetos de estudo sobre os gêneros orais. Acreditamos que, dessa forma, a escola poderá contribuir para a ampliação do letramento social e escolar dos alunos.

Pela necessidade de delimitação que exige esta pesquisa, escolhemos, como objeto de estudo representativo dos gêneros orais formais, o debate regrado público. A escolha buscou atender a alguns requisitos básicos:

a) ser um gênero presente e necessário no contexto de lutas do reassentamento, lócus da pesquisa: pelo contexto de assembleias, manifestações, reuniões para a luta pela conquista e manutenção de direitos, os reassentados precisam desenvolver, constantemente, argumentos bem fundamentados para convencer seus opositores ou para tomarem decisões coletivas (debate deliberativo e debate de opinião de fundo controverso);

b) ser um gênero conhecido pelos participantes deste estudo: o gênero debate regrado público é comum aos alunos-participantes, tanto daqueles que ocorrem na comunidade, quanto o debate televisivo político;

c) o uso da oralidade, em situações formais: o debate exige dos participantes um monitoramento da fala e de postura, pela sua ocorrência ser, predominantemente, em ambientes formais públicos e, no contexto social de que fazem parte, esse conhecimento pode ser decisivo, em momentos de discussão;

d) contribuir para o fortalecimento do protagonismo juvenil: o desenvolvimento da habilidade de argumentar de maneira adequada ao contexto poderá trazer confiança e autonomia para os jovens e, essa condição poderá motivá-los a participarem das discussões da comunidade, defendendo suas ideias e valores; e) propiciar o conhecimento e valorização da história da comunidade local: uma vez

regrado público oportunizará a pesquisa de dados e informações a serem coletadas na comunidade para fundamentar os argumentos;

f) oportunize o fortalecimento do letramento social dos alunos-participantes: por ser um gênero ancorado em situações contextuais que ocorrem fora dos muros escolares, o estudo do gênero debate regrado público poderá contribuir para que os eles adquiram segurança e autonomia e, assim constituídos, poderão participar com mais propriedade em situações sociais que necessitem defenderem seus posicionamentos e opiniões e respeitando, também, os direitos dos demais.

Esses critérios, aliados à constatação da pouca participação dos alunos-participantes deste estudo, nas situações de vivência do gênero debate regrado público, na comunidade, foram decisivos para que escolhêssemos esse gênero para o planejamento e execução da sequência didática que aplicamos e avaliamos neste estudo de intervenção. Temos como hipótese que, esta escolha, com vistas à vinculação do letramento social ao escolar e ao desenvolvimento das habilidades que este gênero pode propiciar, através do estudo sistemático dele, contribuirá para a melhoria da aprendizagem dos alunos-participantes, como um todo. Além disso, irá proporcionar, a eles, um espaço para que aprendam a agir politicamente, isto é, como protagonistas de sua história, com participação colaborativa plena e, em sendo assim, poderão agir como transformadores de sua realidade, tendo, também, como referência o conhecimento de seu contexto social (argumentos) e pela adequação do seu discurso e conhecimentos sobre o temática em discussão, os modos de debatê-la adequada às situações sociodiscursivas de que participam.

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